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terça-feira, 30 de junho de 2020

Jean Sibelius


“(Tavastehus, 1865 - Järvenpäa, 1957) Compositor finlandês, iniciador da escola moderna de composição musical de seu país. Órfão de pai desde os três anos de idade, pertencia a uma família de ascendência sueca, pelo que em seu lar se falava neste idioma. Mais tarde aprendeu finlandês na escola e se interessou mais profundamente por diversos aspectos da cultura de seu país, que até 1917 pertencia à Rússia.
Adquiriu suas primeiras noções de piano por meio de sua tia Júlia, e mais tarde, em 1885, começou seus estudos de direito na Universidade de Helsinki, para abandoná-los um ano mais tarde e assim poder concentrar-se na música. Estudou composição com Wegelius e violino com Csillag na capital finesa até 1889. Wegelius descobriu rapidamente os grades dons musicais do jovem Sibelius, que por aqueles anos já havia composto obras entre as quais se encontram um Trio para piano em dó maior e uma Sonata para violino em fá maior. Durante sua época como estudante no Conservatório de Helsinki, Sibelius entrou em contato com algumas das pessoas que mais tarde influiriam tanto em sua vida como em sua obra: o pianista e compositor Ferruccio Busoni e o também compositor Armas Järnefelt, com cuja irmã se casaria Sibelius anos mais tarde.
Foi seu professor Wegelius quem o animou a pedir uma boisa de estudos para Berlim e, ao ser-lhe concedida esta, se transladou à cidade alemã em setembro de 1889. Ali estudou composição de forma privada com Albert Becker e, se bem não ficou muito contente com os ensinamentos que recebeu dele, desfrutou intensamente da vida cultural berlinense. No verão do ano seguinte voltou à Finlândia, onde escreveu seu Quarteto de cordas em si bemol menor. De novo obteve uma ajuda do governo de seu país para estudar no estrangeiro, e desta vez foi Viena a capital escolhida. Ali se formou com Robert Fuchs e com o húngaro Karl Goldmark, e foi na capital austríaca onde começou a centrar-se na escrita para orquestra graças à influência das obras de Bruckner e Wagner.
Seu primeiro projeto de ressonâncias nacionalistas foi Kullervo, uma composição de idéias melódicas finlandesas e de tom escuro e grave. A obra foi concebida em Viena e finalizada após regressar a seu país natal em 1891. Sua exitosa estréia se deu no ano seguinte em Helsinki. Nessa época Sibelius se uniu ao movimento carelianista, um grupo de artistas interessados em se aprofundar nas raízes da Finlândia por meio do estudo da epopéia nacional, o Kalevala. Em 1892 compôs outra obra de inspiração finesa: o poema sinfônico En saga. Nesse mesmo ano se casou com Aino Järnefelt e realizou uma viagem à região da Carélia, onde teve oportunidade de transcrever melodias populares do local. Na década dos anos noventa nasceram suas primeiras três filhas e em 1892, devido às necessidades econômicas de sua família, Sibelius começou a dar aulas de música no Instituto Musical de Helsinki. Afortunadamente, o governo de seu país concordou em conceder-lhe em 1897 uma pensão vitalícia de 3.000 marcos anuais que lhe proporcionou certa folga econômica, pelo menos durante os primeiros anos.
Após a estréia em 1898 da obra teatral Kung Kristian II de Adolf Paul, cuja música incidental compôs Sibelius, surgiram-lhe ofertas para publicar sua obra tanto em seu país como na Alemanha, onde firmou um contrato com a prestigiosa editora Breitkopf. Em julho de 1900 realizou uma exitosa turnê pela Europa (Escandinávia, Alemanha, Holanda e França) que lhe serviu para adquirir fama e prestígio nestes países.
Apesar dos sucessos musicais obtidos, Sibelius continuava bebendo até extremos preocupantes; sua esposa Aino decidiu adquirir uma casa de campo no bosque de Järvenpää e assim distanciar o compositor da vida urbana de Helsinki. Em setembro de 1904 se transladou junto com sua mulher e suas quatro filhas à nova vivenda, chamada Ainola, na qual residiu durante o resto de sua vida.
No ano seguinte conseguiu publicar sua obra na editora Schlesinger de Berlim, propriedade de Robert Lienau. Assinou com ele um contrato no qual se comprometia a entregar vários trabalhos por ano. O primeiro que veio à luz na editora foi Pélleas e Mélisande, uma partitura de música incidental. Também em 1905 se deu sua primeira viagem à Inglaterra, onde regeu várias de suas obras e adquiriu grande popularidade. Continuou compondo e em 1907 terminou sua Terceira sinfonia em dó maior, uma obra mais recatada que suas duas sinfonias anteriores. Nesse mesmo ano esteve em Helsinki com Gustav Mahler, e pôde conversar com ele sobre temas musicais.
Após o nascimento de suas duas últimas filhas, em 1908 e 1911 respectivamente, Sibelius afundou em uma crise pessoal e econômica na qual o álcool se tornou seu companheiro inseparável. Neste período se deu sua aproximação à música de câmara, que fica refletida em seu Quarteto em ré menor de 1909 e em obras vocais como as Oito canções op. 57 baseadas em textos do escritor sueco Ernst Josephson ou as Dez peças para piano op. 58.
Em 1909 e de novo em 1912 voltou à Inglaterra. Ali continuava sendo um compositor admirado, enquanto na Europa central começava a haver opiniões que o relegavam a um segundo plano, já que haviam surgido grandes figuras da música, como Claude Debussy ou Arnold Schoenberg, que apresentavam propostas estilísticas mais avançadas. Sua Quarta sinfonia foi um fracasso de público na Alemanha e na França, mas ele continuou explorando a linguagem composicional que vinha realizando até o momento, resistindo a adotar as tendências musicais do restante da Europa.
Em 1914 teve lugar um acontecimento importante para sua carreira musical: realizou uma viagem aos Estados Unidos da América convidado pelo também compositor Horatio Parker. Ali estreou seu poema sinfônico As Oceânidas, composto a pedido do Festival de Música de Norfolk, e recebeu um doutorado honorífico que lhe concedeu a prestigiosa Universidade de Yale.
Uma vez de volta à Finlândia acabou de escrever a Quinta sinfonia em mi bemol, que revisou meticulosamente até dá-la por terminada em 1919. Em 1921 rejeitou o posto de diretor da Eastman School of Music dos Estados Unidos que lhe foi oferecido e, lamentavelmente, continuou bebendo em excesso até o ponto de chegar a reger ébrio sua Sexta sinfonia em um concerto celebrado em Göteborg (Suécia) durante a primavera de 1923. No ano seguinte concluiu sua Sétima sinfonia, uma obra prima do gênero escrita em um só movimento; e em 1926, a pedido da Sociedade Filarmônica de Nova York, acabou o poema sinfônico Tapiola, baseado em um personagem mitológico finês chamado Tapio.
Após a citada obra, Sibelius afundou numa depressão que o impediu de compor grandes obras. Sua oitava sinfonia, na qual aparentemente trabalhava até 1933, nunca chegou a ver a luz. Em 20 de setembro de 1957 faleceu devido a uma hemorragia cerebral. O Museu Sibelius de Turku conserva diversos materiais sobre a vida e obra do compositor finlandês, assim como a biblioteca da Universidade de Helsinki, que guarda um grande número de manuscritos e esboços de suas obras.
Obras de Jean Sibelius
A obra de Sibelius bebe diretamente da grande epopéia literária de seu país, o Kalevala, cujos textos e motivos rítmicos lhe serviram como material para sua música. Sua obra destila amor pela natureza, é algo sombria e harmonicamente conservadora, embora empregue nela acordes convencionais com grande liberdade. Na década de 1890 compôs três poemas sinfônicos de matiz nacionalista: Finlândia, O cisne de Tuonela e En saga. Este último utiliza o tema principal de um octeto de cordas composto quando era estudante e gerou grande controvérsia após sua estréia em Berlim em 1902. Apesar da influência da música popular finesa na obra de Sibelius, não é fácil encontrar em suas composições melodias folclóricas reconhecíveis. A influência de compositores como o norueguês Edvard Grieg, o russo Borodin ou mesmo Tchaikovsky se escuta em suas primeiras partituras.
A partir de sua estada em Viena centrou seu interesse na música orquestral, campo no qual desenvolveu seu talento com maior facilidade. A primeira de suas sete sinfonias foi publicada em 1899 e a última em 1924. Desde a publicação de Tapiola no ano seguinte, o compositor finês não voltou a realizar uma obra de envergadura. Apesar disso, continuou sendo um compositor reconhecido em seu país. Sua Primeira sinfonia em mi menor (1899) mescla seu próprio estilo com certos matizes românticos procedentes de Tchaikovsky. A Segunda, composta em 1902 na tonalidade de ré maior, contém ressonâncias folclóricas especialmente na parte final, e nela aparecem já os motivos melódicos breves tão característicos do estilo de Sibelius.
Suas sinfonias terceira e quarta estão escritas em uma linguagem que combina o modernismo com o clássico, e foi a partir de sua Quarta sinfonia (1911) quando decidiu afastar-se de certa maneira das estruturas musicais dependentes da música tradicional. Fruto destes avanços é sua Quinta sinfonia em mi bemol maior, de caráter triunfalista e majestoso. A obra foi revisada em várias ocasiões; sua versão definitiva data de 1919.
Sua penúltima sinfonia, a Sexta (1923), possui rasgos claramente finlandeses e um temperamento pastoral e meditativo. Está composta em quatro movimentos e nela encontramos escalas modais como a Dórica. Mas sua obra mais audaciosa é sem dúvida a Sétima sinfonia (1924); escrita em um só movimento, nela Sibelius consegue uma grande expressividade através do desenvolvimento sinfônico sem interrupções.
Seu Concerto para violino em ré menor é uma das obras que mais popularidade lhe deu, e que continuou interpretando-se amiúde ainda quando sua figura havia caído em certo olvido devido ao interesse que despertava na Europa a música de vanguarda. Nele tratou de fundir o virtuosismo próprio de uma obra para instrumento solista com a profundidade carente de ostentação pela qual se caracterizava sua música. O concerto foi revisado em diversas ocasiões com a minuciosidade própria de Sibelius, até que em outubro de 1905 estreou em Berlim sob a batuta de Richard Strauss.
Além de seu interesse pela música sinfônica, também dedicou parte de seu tempo à criação de obras vocais. Escreveu canções para soprano com textos em sueco, com frequência interpretadas pela cantora finlandesa Ida Ekman. Alguns exemplos deste tipo de obras são suas Sete canções de Runeberg op. 13, publicadas em 1892 e baseadas em textos do poeta finês Johan Ludvig Runeberg, ou suas canções dos op. 36, 37 e 38. A linguagem musical de Sibelius influiu na obra de alguns compositores britânicos do século XX como Ralph Vaughan Williams, além de servir de inspiração para o movimento minimalista, integrado por compositores como Philip Glass ou Steve Reich."

Original em: https://www.biografiasyvidas.com

quinta-feira, 5 de julho de 2018

O vinho causou a surdez e a morte de Beethoven


"Ludwig van Beethoven: a sua obra musical imensa, a sua terrível surdez... e as discussões sem fim sobre as causas da sua morte e das suas doenças. Quase dois séculos depois do seu desaparecimento, a 27 de Março de 1827, aos 56 anos de idade, o caso médico do compositor alemão continua a intrigar médicos e investigadores. E é com alguma regularidade que novas teorias são publicadas em revistas médicas e científicas.
É certo que, neste domínio, o autor da Nona Sinfonia e do Hino à Alegria está longe de rivalizar com o seu compatriota Wolfgang Amadeus Mozart, que morreu algumas décadas antes dele (em 1791), aos 35 anos. Pelo menos 140 causas foram avançadas como estando na origem da morte do compositor de A Flauta Mágica e de Don Giovanni. Mas não faltou imaginação aos especialistas para tentarem explicar os sintomas crônicos - a começar pela surdez - de que sofria Beethoven e identificar a doença que provocou a sua morte.
Retrospectivamente, e tendo fé nas descrições do seu relatório de autópsia, da sua correspondência (excessiva), dos escritos dos seus amigos e dos seus médicos, o ilustre compositor padecia de sífilis, de uma doença inflamatória do intestino, de tuberculose, da doença de Paget (uma patologia de remodelagem dos ossos que pode levar à surdez) e de alcoolismo... É sobretudo a partir das cartas do músico e de documentos dos seus próximos que foi reconstituída, de forma bem precisa, a evolução da sua surdez, cujos primeiros sintomas começaram antes dos 30 anos, acabando por o atirar para o silêncio nos últimos anos da sua vida.
O alívio do álcool
Os escritos de Beethoven e dos seus médicos também se revelaram preciosos para documentar outros problemas de saúde (problemas digestivos e depressão, entre outros), e sobretudo a sua tendência imoderada para a bebida. A correspondência de Beethoven é rica em alusões ao prazer e o alívio que o álcool lhe proporciona, em particular o vinho. No leito da morte, numa altura em que se encontra num estado físico deplorável, com um quadro clínico que indica a falha das funções renais (dores abdominais, icterícia, ascite e edema dos membros), ele ainda quer mais um remédio. "Como poderei agradecer-vos por este excelente champagne, como ele me restaurou, como ele me vai restaurar ainda mais!", escreve o compositor ao barão Johan Pasqualati, naquela que será umas das suas últimas cartas, datada de Março de 1827 (extrato do livro Les Lettres de Beethoven, Actes Sud, 2010).
A autópsia realizada, ao que tudo indica a pedido do próprio, confirma que os seus órgãos estavam minados pelo álcool.
"A cavidade abdominal está cheia a quatro quartos de um líquido avermelhado e turvo. O tamanho do fígado está reduzido a metade. Está compacto e tem uma consistência enrugada, de cor verde azulado, e a sua superfície está coberta de nódulos do tamanho de feijões", está escrito no relatório da autópsia, traduzido do latim por François Martin Mai, cujo artigo foi publicado no Journal of the Royal College of Physicians of Edinburgh em 2006. O baço é descrito como muito inchado, bem como o pâncreas. Os rins estão muito danificados...
Mesmo na ausência de exames dermopatológicos (análise ao microscópio de tecidos), que não existiam na altura, o diagnóstico não deixa margem para dúvidas. Foi uma falha do fígado provocada por cirrose alcoólica, complicada por uma peritonite, que levou Beethoven à morte, concluiu François Martin Mai. A lesão do pâncreas também pode ser explicada pelo excesso de álcool. "Alguns autores sugeriram uma origem viral. Mas as hepatites B e C não eram conhecidas antes do século XX, e a hepatite A não se complica por causa da cirrose", sublinha este médico canadiano.
"Estas lesões apontam para uma fase terminal de cirrose hepática nodular, como aquela que é possível observar nos alcoólicos", confirma o médico Frédéric Maître, dermopatologista do Instituto de Medicina Legal de Paris. "A peritonite é uma complicação clássica nestes doentes, já que o líquido presente na cavidade abdominal infecta facilmente, a partir de uma infecção pulmonar, por exemplo."
Os médicos que realizaram a autópsia descrevem também, muito minuciosamente, a anatomia das partes externa, média e interna das orelhas do compositor surdo. "Não há argumento a favor de uma otosclerose, um diagnóstico em tempos evocado para Beethoven. A lesão principal é a degeneração dos nervos cocleares, que atrofiaram", resume Frédéric Maître. O especialista sublinha igualmente que a autópsia do compositor alemão foi a primeira efectuada por Karl von Rokitansky, que se irá tornar um famoso patologista e que estará na origem da criação de protocolos para estes exames post mortem.
De onde vem o chumbo?
Beethoven seria portanto um alcoólico que, como tantos outros, sucumbiu a uma cirrose? Não apenas. Os exames feitos ao longo da última década aos seus cabelos e mais recentemente a ossos do seu crânio estabeleceram que o compositor sofria também de saturnismo, ou seja, uma intoxicação crônica de chumbo. A história destas "relíquias" é ela própria edificante, como conta o médico de urgências Patrick Pelloux, no seu livro publicado em Março, On ne meurt qu'une fois mais c'est pour si longtemps.
As mechas de cabelo foram cortadas por um jovem admirador, que ajudou a preparar o corpo de Beethoven depois da sua morte. E, após um longo périplo, esses cabelos reapareceram num leilão da Sotheby's. A origem dos fragmentos de crânio é bem mais sórdida. "Durante a autópsia, os médicos esconderam-se atrás das cortinas. Depois esmagaram o crânio e roubaram pedaços de ossos, como um bando de ladrões a pilharem um local histórico", escreve Pelloux.
Mas de onde vinha todo aquele chumbo e que sintomas pode ele explicar?
Em 2007, um médico austríaco, Christian Reiter, avançou com a hipótese que foram as compressas embebidas com chumbo aplicadas pelo seu médico, Andreas Wawruch, cada vez que fazia uma punção para retirar líquido da cavidade abdominal do doente.
A explicação é bem mais trivial, considera a equipa de Michael Stevens (universidade de Utah). "Embora o chumbo possa ser proveniente de numerosas fontes externas, como a louça, as garrafas de vinho, o cristal e a água das estações termais, pensamos que, no caso de Beethoven, a fonte mais provável é o próprio vinho", escrevem eles num artigo publicado em Maio na The Laryngoscope, revista da Sociedade americana de Otorrinolaringologia. "É bem conhecido que naquela época o chumbo era acrescentado ilegalmente aos vinhos baratos para melhorar o seu sabor. Beethoven apreciava particularmente os vinhos adulterados da Hungria."
Para apoiar a sua teoria, estes autores americanos insistem no longo passado de consumidor de álcool de Beethoven, que terá começado a embebedar-se aos 17 anos para afogar a mágoa provocada pela morte da sua mãe. E sublinham também o caráter familiar deste vício, notando que o pai e a avó do músico também morreram de complicações ligadas ao álcool.
A intoxicação de chumbo, que começou bem cedo na vida de Beethoven, pode estar na origem das lesões dos nervos auditivos e, portanto, da sua surdez, considera a equipe de Stevens. E esse saturnismo poderá explicar um bom número de sintomas: as suas alterações de humor, a falência do fígado, dos rins... as suas crises de dores abdominais. Direta ou indiretamente, foi sem dúvida a sua queda para o vinho que matou Beethoven.”

http://www.publico.pt

sábado, 9 de julho de 2016

A derrota da morte

“Pela primeira vez na história musical, a música interroga-se a si própria sobre as razões de sua existência e sobre sua natureza… é uma música do conhecimento, com a mesma consciência trágica como Freud, Kafka, Musil”.
Hans Werner Henze
“Sou três vezes sem casa: um nativo da Boêmia na Áustria; um austríaco entre os alemães; um judeu através do mundo todo”.
Gustav Mahler

“As sinfonias de Gustav Mahler exigem do ouvinte algo quase impossível nos dias de hoje: uma audição espiritual. Claro que isso já é evidente quando escutamos Bach, Mozart e Beethoven, mas Mahler representa uma exigência maior, não só porque utiliza-se dos procedimentos da paródia e do kitsch em sua obra (característica própria da modernidade), e sim porque ele abusa de toda uma tradição melódica e orquestral, chegando ao ponto de transformar a música em uma narrativa incomum – no caso, a narrativa de um espírito que luta, é derrotado, renasce, luta mais uma vez, até a morte calma e silenciosa. Pierre Boulez captou bem esse aspecto de romancista de Mahler, ao afirmar que sua música “descreve quase literalmente o mito da fênix”. “A visão e a técnica de Mahler possuem a dimensão épica da narrativa”, escreve Boulez, com sua habitual perspicácia. “Ele é como um romancista no método e no uso do material. Continuava a chamar suas peças de sinfonias; conservava a nomenclatura dos movimentos (adagio, scherzo, finale), embora seu número e ordem variassem de obra para obra. A intrusão ocasional de elementos vocais em diversos pontos da sinfonia e o emprego de efeitos teatrais, como a instalação de instrumentos fora do palco, foram duas das inovações de Mahler que destroem a noção de gêneros musicais distintos. Só o romancista trabalha de forma suficientemente elástica para fazer tais jogos com seus materiais”.
Esta implosão do gênero sinfônico e do ciclo de canções que Mahler fez é comparável, por exemplo, à revolução cromática de “A Paixão Segundo São Mateus”, de Bach, ou a Nona de Beethoven, em que o adágio (pelo menos na versão gravada por Sir Georg Solti) insinua ao ouvinte abismos metafísicos sequer imaginados. Mas há um método nesta loucura: a música de Mahler é também o sinal de um fim de um mundo, e o próprio Mahler – por ser um judeu exigente como maestro, e um compositor virtuoso com domínio total de suas ferramentas – se considerava como o exilado exemplar, o homem que, castigado por Deus a ser um banido na Terra, tinha sua obra como âncora para dar sentido à vida, paradoxalmente, ao mundo que o rejeitara.
Não é à toa que a personalidade de Mahler, marcada por tantas rejeições, perdas e lutas, terminaria numa auto-confiança gigantesca. “Meu tempo há de chegar!”, ele berrou uma vez, quase no final de sua vida. Era uma frase de efeito, e, como toda frase de efeito, só vale o momento em que foi dito, pois a obra de Mahler ultrapassa o meramente temporal. Não é o sucesso de uma época, a melodia da moda – é um som que inquieta, acalma, exalta, entristece. A música de Gustav Mahler provoca as mais exaltadas reações porque ninguém pode compreendê-la sem entender e sentir o que é o exílio, o que é a esperança, o que é a perda e o que é a vitória que se faz sobre esta perda. Enfim, quem não comprende Mahler, não compreende a vida em toda a sua intensidade e profundidade. A maior prova disso está na Sinfonia N°2, conhecida como Ressurreição, uma verdadeira jornada do espírito em busca da vida eterna, na esperança de derrotar sua maior inimiga: a morte.
Mahler era judeu, mas tinha uma atração estética incansável pela liturgia cristã, em especial a católica. Foi graças a ela – e ao poeta alemão Klopstock – que resolveu o problema estrutural que o atormentava durante a elaboração de sua segunda sinfonia. O ano era 1894, e Mahler estava na missa em homenagem ao maestro Hans von Bülow, que morrera no Cairo. Ambos haviam se desentendido por causa de uma obra de Mahler – a Totenfeier, que seria depois a abertura da segunda sinfonia. A admiração de Bülow por Mahler era apenas na sua figura de maestro, não como compositor. Atormentado pela amizade perdida, e obcecado pela sua nova obra, Mahler teve seu insight justamente na missa do falecido amigo, como explicou em uma carta no dia 17 de fevereiro de 1897:
“Procurei de fato em toda a literatura mundial, inclusive na Bíblia, para encontrar a palavra redentora… Foi então que Bülow morreu e assisti a um ofício comemorativo. O estado de espírito em que estava ali, pensando no defunto, correspondia exatamente ao da obra, que me preocupava permanentemente. Nesse momento preciso, o coro entoou o coral de Klopstock, ‘Ressurreição’! Fui fulminado como por um raio, tudo se tornara límpido, evidente. O criador vive à espera desse raio: é sua ‘Anunciação’. Só me restava transpor para a música aquela experiência. No entanto, se eu já não trouxesse essa obra dentro de mim, como teria podido vivê-la?”.
Sem dúvida, Mahler não só levava dentro de si a sua segunda sinfonia, como também as oito restantes que criaria nos cinquenta anos de vida, junto com três ciclos de canções. Nascido em 7 de julho de 1860, Gustav Mahler era um judeu na Boêmia, filho de Bernard Mahler e Marie Hermann, uma família marcada pela tragédia de ter seis filhos mortos prematuramente. Gustav já era um prodígio musical quando garoto, e seu pai tratou de incentivá-lo na carreira de maestro, inscrevendo-o no Gynasium de Praga, onde foi severamente maltratado: seus sapatos e suas roupas lhe foram tirados e outros de pior qualidade lhe foram entregues para usar, e sua alimentação beirava o regime de fome. “Aceitei tudo isso como coisa natural”, disse Mahler à sua futura esposa, Alma. Essa constante resignação frente à condição de exilado parece fazer parte de sua mystique, mas ela permeia sua obras do início ao fim. De fato, é o que marca, por exemplo, a sua primeira sinfonia, a Titã, aparentemente inspirada no romance de Jean Paul (fato nunca confirmado por Mahler). Se o ouvinte perceber que a música mahleriana é a biografia de um herói titânico que luta sem parar contra as forças do destino e, principalmente, busca vencer a morte pelo meio mais digno e dolorido possível, a unidade em suas sinfonias se apresenta como algo quase cristalino. O próprio Mahler fazia questão de ver este aspecto nas cartas que enviava aos amigos para explicar a segunda sinfonia, para ele uma continuação da Titã:
“Chamei o primeiro movimento de ‘Totenfeier’ (Dança da Morte). Se faz questão de saber por quê, trata-se do herói da minha Sinfonia em ré [a Titã] que levo ao túmulo… Paralelamente, coloca-se a questão central: Por que você viveu? Por que você sofreu? Tudo não é, afinal de contas, apenas uma enorme e trágica piada? Precisamos resolver essa questão de um modo ou de outro, para podermos continuar a viver, ou mesmo morrer! Quem já percebeu essa questão, mesmo que uma só vez, está em condições de responder a ela: dou essa resposta no último movimento…O segundo movimento, uma lembrança! Um raio de sol na vida desse herói… A vida torna a nos animar; pode acontecer que, em sua vã agitação, ela nos cause horror; é o caso, num salão de baile bem iluminado, das silhuetas móveis e dançantes que, ocultos na noite, observamos de longe sem ouvir a música! A vida aparece, então sem objeto, repugnante! Assim é o terceiro movimento! O que se segue, o senhor conhece”.
Mesmo com sua escrita hiperbólica - igual à sua orquestração bombástica e cheia de súbitos pontos de exclamação –, Mahler revela em sua obra uma intenção que só Beethoven queria de maneira tão autoconsciente: unir música e filosofia, tornando a sinfonia uma espécie de melodia do pensamento, explorando todas as suas fraturas, ambigüidades e suspiros de última hora. Esta desigualdade que a música tenta exprimir nos movimentos internos de uma alma, é exprimida através dos cinco movimentos da Sinfonia N° 2, cada uma com uma escala diferente:
1. Allegro moderato em dó menor (ex-Totenfeier);
2. Andante moderato em lá bemol;
3. Scherzo em dó menor, baseado nos Wunderhorn Lieder que Mahler havia composto nos tempos de estudante;
4. Urlicht (Luz original) em ré bemol, para contralto e orquestra, também inspirados nos Wunderhorn Lieder;
5. Finale, Ressurreição, terminando em mi bemol menor, para solistas, orquestra e coro.
Somados os cinco movimentos, são mais de 75 minutos de música densa, compacta e redentora. Mahler exige até demais do ouvinte: ninguém é obrigado a ouvir a jornada de um espírito que, após a morte, busca sua renovação na vida eterna. Mas depois de escutar os primeiros compassos da Totenfeier, somos agarrados pelo pescoço e temos de ir com este herói até o fim, um fim que, por incrível que pareça, será um triunfo completo. A salvação da alma é algo que preocupa Mahler e, para ele, é um assunto essencial para a arte que todo o artista digno deveria se preocupar. Não é à toa que a segunda sinfonia está intimamente ligada à oitava sinfonia, também conhecida Sinfonia dos Mil, em que o seu final é o som da redenção em todo o seu esplendor. Mas se, na oitava, o que está em jogo é a alma de um Fausto em seu confronto com a Morte e o demônio, na segunda Mahler quer sentir o poder de ressuscitar depois que a luta o consome por inteiro. “Um grande exemplo para todas as pessoas criativas é Jacó”, afirmava ele em várias entrevistas para explicar sua obra, tão incompreendida aos seus contemporâneos, “que luta com Deus até que Ele o abençoe. Deus tampouco quer conceder-me Sua benção. Somente através das terríveis batalhas que tenho de travar para criar a minha música recebo finalmente a Sua benção”.
Nesse sentido, a música de Mahler é a testemunha (e o resultado) de um embate entre Deus e o homem, que tenta saborear um pouco da Graça que lhe é renegada o tempo todo. O resto da vida de Gustav Mahler tratou de demonstrar tal fatalidade com todas as letras: um casamento tumultuado (com direito a atendimento personalizado de Freud que, explicou, explicou, mas nunca resolveu o problema do casal, colocando toda a culpa em Mahler, como se ele fosse um maníaco compulsivo por perfeição – o que não era nenhuma novidade), a morte de uma filha, Marie, e a descoberta de uma doença rara no coração, que o mataria num sanatório em 1910. Num desses fenômenos de sincronicidade que nem Jung explica, Mahler antecipou as três tragédias que marcariam o fim de sua vida na sexta sinfonia, apelidada de “Trágica”, por ter um dos finais mais sombrios da música orquestral – três bumbos macabros que marcam a derrota do herói mahleriano.
Ainda assim, ele volta – de novo! Na sétima sinfonia e depois na oitava, Mahler reencontra aquilo que já sentira na segunda sinfonia – a emoção indecifrável de vencer a morte com a alma dilacerada, mas intacta. Dessa vez, contudo, é um Mahler diferente, pois a morte suspira em sua boca. A vitória definitiva da redenção da alma com seu Veni Creator Spiritus!, mostra um homem com total domínio de seus meios artísticos, um homem que dominou a sua arte frente ao Deus que o tentava. A partir de agora, o que era exílio se transforma em adeus, e o que era esperança se torna a eternidade – duas realidades que se amalgamam na Das Lied von Der Erde (A Canção da Terra), o ciclo de canções que nem Schubert sonhou fazer; na nona sinfonia, em que a eternidade é conquistada a ferro e fogo, e a décima, inacabada, mas com um adágio tão desesperador, tão mortífero, que não resta nada mais a fazer senão aceitar o fim tal como ele é.
Contudo, é provável que o coração de Mahler estivesse no final de Ressurreição, com seu coro silencioso que sobe aos poucos até a orquestra tomar conta com suas notas épicas, o órgão ocupar as frestas da melodia para não deixar a harmonia fugir de sua intenção redentora, e então, um súbito silêncio, como se a derrota fosse a única verdade absoluta, ecoando os versos de Klopstock – “Oh! acredita, meu coração… não nasceste em vão, não sofreste em vão…”. Mas é apenas um curto repouso antes da ressurreição definitiva – marcada por um espantoso soco orquestral em mi bemol no melhor estilo de Mahler: majestoso, apoteótico, a orquestra e o coro captando as alturas que só a luta e a guerra da vida do espírito nos dão de presente.
Pois, para Mahler, isso era a Graça de Deus: a arte em sua plenitude máxima, com toda a dignidade do sofrimento que lhe foi imposta para confirmar tal obra. Um verdadeiro artista nunca foge da dor: ele a trata como uma boa companheira. A Morte só é vencida depois que o homem a respeita por seus meios pouco comuns, em que ele se verga a um poder maior, um poder que ele sabe existir, mas não pode compreender. Este saber não compreendido é o mistério da Ressurreição, algo que, na verdade, realizamos todo dia, após acordar e ver o primeiro raio de luz. O horror continua a nos perseguir, mas quem disse que ele é eterno? Para muitas pessoas, as sombras podem até ser confortáveis. Para outras que escolheram o desafio de fazer de cada dia uma nova Páscoa, a Ressurreição é a chaga que arde no peito, que faz o sangue ser expelido a cada minuto, mas é a que mantém o espírito afiado, preparado para a morte que não mata, aquela que, através da nossa aparente derrota, está o único triunfo.”
(Martim Vasques da Cunha, A Derrota da Morte)

http://www.dicta.com.br

sábado, 5 de dezembro de 2015

Simbologia maçônica na Flauta Mágica de Mozart

"Dedicada aos mistérios de Ísis e Osíris, a Flauta Mágica, ópera de Wolfgang Amadeus Mozart, é uma das obras mais ricas em conteúdo iniciático da história da música. Escrita para crianças de 9 a 90 anos, não por acaso o próprio Johann Wolfgang Goethe afirmou: “O grande público encontrará deleite ao assistir ao espetáculo, enquanto que, ao mesmo tempo, seu alto significado não escapará aos Iniciados”.
Malkuth: Representado por Papageno, metade homem, metade pássaro, vive numa floresta sob os domínios da Rainha da Noite. Seu trabalho é caçar pássaros e entregá-los às Três Damas em troca de guloseimas. Seu nome deriva de uma palavra grega que significa “engendrar, gerar”, pois o personagem encarna a multiplicidade dos desejos perante a unidade espiritual de Tamino. Uma alusão a Papegeai, papagaio, designação de um grau elementar da Ordem dos Iluminados. Preso ao materialismo, Papageno só pensa em tagarelar, fugir, comer, beber e encontrar sua Papagena.
Yesod: Cobertas com véu preto e armadas com uma azagaia de prata, representando o ato certo no momento certo, as Três Damas são as sacerdotisas da Lua. Residem no templo da Rainha da Noite e simbolizam a purificação do corpo físico, do corpo de desejos e da mente, seus véus pretos referem-se à Ísis Velada. Elas salvam Tamino da serpente e lhe oferecem a flauta mágica, símbolo dos poderes latentes do espírito, da divindade adormecida no homem.
Hod: Os três Gênios, os três seres de luz, os três Reis Magos, os dois Vigilantes e o Guardião da Maçonaria. Estes guiam Tamino, ajudam-no em suas escolhas e atitudes. São crianças, pois representam a pureza do Eu Superior.
Netzach: Pamina representa a natureza espiritual do ser humano, a “musa inspiradora” de Tamino. É com ela que Tamino realiza o Casamento Alquímico. “A imagem é bela e fascinante, como olho algum jamais viu antes… Será amor tal sensação? Sim, amor! Não outra emoção” (Tamino ao ver Pamina pela primeira vez).
Tiferet: De origem nobre, Tamino representa os Iniciados que realizam a Grande Obra, a Magnus Opus. No início da ópera Tamino é perseguido por uma serpente, símbolo dos desejos inferiores, representa a sua sexualidade, sua libido. As três Damas matam a serpente indicando que Tamino alcançou a vitória sobre a natureza inferior. Disposto a lutar, a enfrentar desafios, a fim de conquistar a fraternidade e o amor, Tamino encarna a via longa da alquimia, semeada de provas.
Geburah: Monostatos, além de traidor e perverso, é um escravo forte e rude. Quem assistiu à ópera com atenção verá em Monostatos a exata representação de alguém que faz o mal uso da energia agressiva de Marte.
Chesed: Os três Sacerdotes são os principais guias de Tamino. São eles que propõem o Isolamento, a Solidão e o Silêncio, cobrem o seu rosto com um capuz e o conduzem à iniciação.
Binah: Representante da força das trevas, a Rainha da Noite manipula sua filha Pamina, para assassinar Sarastro, e posteriormente destruir seu templo.
Hochma: Sarastro governa o templo da Sabedoria. Sábio, humilde e servidor, seu personagem é uma referência clara a Zoroastro.
Kether: Templo do Sol ou Templo da Luz, local sagrado onde ocorrem as iniciações e as transmutações, onde Tamino e Pamina são purificados pelos quatro elementos e realizam o Casamento Alquímico, a Grande Obra.
O Tarot
Vocês já devem ter notado algumas semelhanças entre os personagens da ópera e o tarot. Pois bem, Mozart dividiu a ópera em 22 grandes sessões (incluindo a abertura), cada sessão representa um dentre os 22 arcanos maiores do Tarot.
O Arcano XXI, O Mundo, mostra uma mulher no centro, rodeada por quatro animais, que simbolizam quatro signos do zodíaco (aquário, escorpião, touro, leão), ou seja, o Leão (Sarastro), o Anjo (Tamino), a Águia (Papageno), e o Touro (Monostatos).
O Arcano VIII, A Força, contém a mandíbula de um Leão sendo aberta por uma mulher. Algumas de suas características são: virtude, coragem, controle, espírito que domina a matéria, a inteligência que doma a brutalidade. Este Arcano é claramente representado no momento em que as damas dominam a grande serpente.
Alguns biógrafos sustentam a idéia de que na primeira versão, ao invés de uma serpente, Tamino seria perseguido por um Leão. No entanto, faltando 18 dias para estréia, o Imperador Leopoldo II proibiu uma sátira chamada “Biografia do RRRR Leão”, cujo título era uma brincadeira com o nome do próprio imperador. Logo, Mozart e Schikaneder perceberam que iniciar a ópera matando um leão no palco não agradaria muito vossa majestade.
A Maçonaria
Conduzi os dois estrangeiros ao templo, onde serão provados. Cobri suas cabeças primeiro, pois devem ser purificados.” Assim, o orador e o segundo sacerdote trazem capuzes, com os quais cobrem as cabeças de Tamino e Papageno.
Se a Virtude e a Justiça espalharem a glória no caminho dos Grandes, então a Terra será um reino celeste e, os mortais, semelhantes aos deuses.”
A esta altura do texto, fica óbvio dizer que Mozart e Schikaneder eram maçons e que a ópera é uma elaborada alegoria dos simbolismos, dos rituais e dos ideais maçônicos.
Três coisas nos chamam a atenção nesta ópera, a música, a história e a recorrência do número três: três gênios, três sacerdotisas, três sacerdotes, três altares, três caminhos, três conselhos, três instrumentos musicais, três casais (Papageno – Papagena, Tamino – Pamina, Sarastro – Rainha da Noite), três templos (Razão, Sabedoria e Natureza), uma alusão à sagrada geometria e aos três graus fundamentais da maçonaria: Aprendiz, Companheiro e Mestre. Além disso, a ópera foi desenvolvida por três pessoas, o compositor Mozart, o libretista Schikaneder e o alquimista Ignaz von Born.
E o número três não para por aí, a tonalidade predominante na ópera é Mi bemol maior (Três bemóis), segundo Jacques Chailey, seria a tonalidade maçônica por excelência. A “sinfonia” de abertura é marcada pelos Três poderosos acordes em tutti, segundo Philippe A. Autexier, nas lojas vienenses do século XVIII, o ritual empregado nessa época continha ritmos característicos para cada Grau.
Não apenas os três graus fundamentais (Rito de São João) são homenageados, mas de maneira sutil e oculta, todos os trinta e três graus do Rito Escocês Antigo e Aceito estão lá. O mais “óbvio” deles é o 18º Grau, o Cavaleiro Rosa-Cruz.
Ó Ísis e Osíris, que ventura! A luz do Sol ofusca a noite escura. Vida nova esse jovem há de abraçar; logo, a nosso serviço há de estar. Sua alma é pura, o gênio audaz, dignos de nossos ideais.” (A Flauta Mágica)
O hino acima possui um total de dezoito compassos e abre a 18ª cena do segundo ato. Nesta cena há dezoito sacerdotes em dezoito assentos dispostos em triângulo. Sarastro, o Sumo Sacerdote (ou seja, Venerável Mestre da Loja) aparece pela primeira vez no I Ato, na cena 18. Quando os três gênios superiores aparecem suspensos no palco numa máquina ela está “coberta de rosas”. Além de todas estas “coincidências” o número dezoito é formado por seis vezes três, o número simbólico crucial e básico da ópera."
(Fábio Almeida, A Flauta Mágica e a Kabbalah)

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Compositor britânico John Tavener morre aos 69 anos‏

“O compositor britânico John Tavener, um dos mais importantes do último século no Reino Unido, morreu em sua casa de Dorset (sudoeste da Inglaterra) aos 69 anos, informou nesta terça (12) seu selo fonográfico, Chester Music. O prestigiado músico, cuja "Song for Athene" foi interpretada no funeral, em 1997, da princesa Diana, morreu "tranquilamente" em seu domicílio na cidade de Child Okeford, segundo um comunicado.
O diretor-gerente da Chester Music, James Rushton, descreveu o artista, conhecido por sua grande espiritualidade e suas obras de música sacra, como "uma das mais inspiradas e únicas vozes na música dos últimos 50 anos".
"Seu trabalho é uma das contribuições mais significativas à música clássica em nossos tempos", afirmou Rushton. "Para todos aqueles afortunados que o conheceram, John era um homem de profundas crenças, enorme calidez pessoal, lealdade e humor", acrescentou.
Tavener teve uma saúde delicada durante boa parte de sua vida e em 2007 sofreu um infarto que o obrigou a passar quatro meses na Unidade de Terapia Intensiva. Em 1979, o músico sofreu um acidente vascular cerebral, enquanto em 1990 foi diagnosticada a síndrome de Marfan, uma doença hereditária que afeta o coração.
Tavener começou sua carreira nos anos 60 com o selo Apple Records, dos Beatles, e logo se transformou em um dos poucos compositores clássicos contemporâneos cuja música foi popularizada entre um público mais amplo.
Em 1992, "The protecting veil", uma composição para violoncelo e cordas, se manteve durante várias semanas no topo das listas de sucessos. Outros trabalhos muito populares são "A new beginning", que foi tocada para dar as boas-vindas ao novo milênio na festa de Nochevieja de 1999 na cúpula do Milênio, em Londres, e "Eternity's sunrise".
Ele foi indicado duas vezes, em 1992 e 1997, aos prêmios Mercury da música e recebeu o título de Sir no ano 2000. Tavener se converteu em seguidor da Igreja ortodoxa russa em 1977 e via sua música como uma maneira de chegar a Deus, segundo declarou.
Apesar de sua frágil saúde, o músico, que deixa mulher, Maryanna, e três filhos, seguiu compondo e neste ano estreou três novas peças no festival internacional de Manchester, no norte da Inglaterra.”

http://g1.globo.com/musica/noticia/2013/11/compositor-britanico-john-tavener-morre-aos-69-anos.html

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Richard Wagner e a maçonaria

“Embora não fosse maçom, ele quis ser. Teve muitas influências maçônicas em sua vida, inclusive de sua família e amigos. Seu cunhado, Prof. Oswald Marbach, foi uma das personalidades mais importantes da maçonaria na época de Wagner, e considerando os aspectos maçônicos de seu Parsifal, especula-se que ele aprendeu muito das idéias e rituais maçônicos de Marbach. Marbach ocupou a presidência do capítulo Baiduin zur Linde de Leipzig durante mais de 30 anos e foi membro honorário de mais de 50 lojas. Outro de seus grandes amigos foi o banqueiro Feustel em Bayreuth, que de 1863-69 foi grão-mestre da loja Zur Sonne em Bayreuth. Em 1847 Feustel propôs que a loja abolisse as restrições a não-cristãos se tornarem membros. Ao que parece, Wagner informou Feustel de seu desejo de se tornar membro da loja Eleusis zur Verschwiegenheit em Bayreuth, mas foi aconselhado a não submeter uma petição formal pois havia membros que censuravam Wagner por sua vida pessoal. Feustel sugeriu a Wagner que sua admissão à loja fortaleceria a oposição dos clérigos bávaros se soubessem que ele era um membro do Ofício.”
(William R. Denslow, 10.000 Famous Freemasons)

sexta-feira, 25 de maio de 2012

As mortes míticas dos grandes compositores

“A morte ocupa um lugar de destaque na mitologia dos grandes compositores. A rebeldia existencial foi um tema favorito dos compositores que morreram no século XIX. Beethoven morreu aos 56 anos de idade, supostamente elevando o punho cerrado ao ribombar do trovão como se o elevasse a Deus. Schumann ficou louco e pulou no Reno tentando se afogar; a tentativa falhou. Investigações recentes e controversas parecem apoiar a idéia de que Tchaikovsky, que por muito tempo se acreditou ter morrido de cólera contraído acidentalmente, teria cometido suicídio ao descobrir a própria homossexualidade. A verdade sobre sua morte ainda precisa ser esclarecida acima de qualquer dúvida.
O número de compositores que morreram jovens é ainda maior do que o dos poetas. Além disso, os modos como morreram foram diversos e muitas vezes inquietantemente coloridos ou misteriosos. O caso mais famoso é o de Mozart. As teorias sobre a morte de Mozart, cada vez mais numerosas, tornaram-se parte da identidade do compositor. A mais famosa delas, de que Mozart foi assassinado pelo rival Antonio Salieri, serviu de enredo para uma peça de Alexander Pushkin e uma ópera de Nikolai Rimsky-Korsakov, quase um século antes de tornar-se o enredo da peça de Peter Shaffer (que mais tarde deu origem a um filme de grande sucesso), Amadeus.
Mozart tinha trinta e cinco anos quando morreu em 1791. Franz Schubert tinha trinta e um anos quando morreu em 1828, provavelmente de sífilis. Tanto Chopin quanto Mendelssohn morreram antes de completar quarenta anos. O prêmio duvidoso de mais jovem compositor a morrer deixando obras que ainda hoje são tocadas vai para o belga do século dezoito Guillaume Lekeu, que sucumbiu na idade de vinte e cinco anos a uma infecção intestinal causada por uma sobremesa contaminada. Charles Valentin-Alkan, um compositor francês do século dezenove que escreveu música exorbitantemente difícil para o piano, foi também um estudioso do Talmude que morreu quando suas prateleiras caíram e os pesados volumes de sua biblioteca o esmagaram. A Segunda Escola Vienense de Arnold Schoenberg e seus estudantes era obcecada por números. Quando o grande aluno de Schoenberg, Alban Berg, sofreu a picada de um inseto que o infectou, Berg calculou suas chances baseado numa numerologia pessoal e morreu no dia que havia previsto.
Em 1937 o musicólogo Alfred Einstein propôs a teoria de que os grandes compositores morrem com uma “canção do cisne”, uma obra-prima final antes da morte. Ele defendeu essa idéia com numerosos exemplos, inclusive Bach, cuja magistral Arte da Fuga foi deixada inacabada quando de sua morte, e Mozart, que deixou para trás o torso de um Réquiem começado pouco antes de morrer. A teoria não tem aplicação universal, contudo, e é irônico notar que a única obra terminal realmente intitulada “Canção do Cisne” foi uma compilação de canções de Schubert reunidas desleixada e postumamente por um editor que buscava fazer dinheiro com o sensacionalismo.
Embora Frideric Handel, Franz Josef Haydn, Franz Liszt e Giuseppe Verdi tenham todos vivido e trabalhado além dos setenta, compositores que passaram dessa idade são raros antes de 1900. Compositores do século vinte que viveram e prosperaram até os oitenta anos incluem Igor Stravinsky, Aaron Copland, Leos Janacek, Ralph Vaughan Williams e Elliott Carter.”
(Kenneth Lafave, Death Myths of the Great Composers)

quinta-feira, 3 de maio de 2012

A Escola de Mannheim

“A Escola de Mannheim floresceu principalmente durante o reinado (1743-78) do Eleitor Palatino Karl Theodor. Durante a segunda metade do século XVIII Mannheim, residência de Karl Theodor, foi uma das mais florescentes sedes das artes e ciências.
Os principais centros alemães de composição sinfônica de 1740 em diante foram Mannheim, Viena e Berlim. O fundador da Escola de Mannheim foi o músico boêmio Johann Stamitz, que lá trabalhou de 1741 em diante; sob sua liderança, a orquestra de Mannheim tornou-se famosa em toda a Europa pela virtuosidade (Burney a chamava de “exército de generais”), pela até então desconhecida variedade dinâmica que ia do mais suave pianissimo até o mais alto fortissimo, e pelo som sensacional de seu crescendo. O uso cada vez maior do crescendo e do diminuendo na metade do século foi sintoma de uma tendência à obtenção de variedade dentro de um movimento por meio de transições graduais; os movimentos barrocos ou tinham mantido um nível dinâmico uniforme ou introduzido contrastes distintos, como no concerto.
A orquestra não foi fundada por Stamitz; ela foi montada em 1720 quando os músicos das orquestras eleitorais desfeitas de Innsbruck e Düsseldorf juntaram-se em Mannheim. Foi a reunião de artistas que haviam herdado as tradições da antiga Kapelle (orquestra) silesiana do Conde Palatino Carl Philipp. Em 1723 a Hofkapelle (orquestra da corte) de Mannheim consistia de 55 músicos, entre os quais dezesseis haviam trabalhado em Innsbruck e não menos de vinte e seis em Düsseldorf. Nem todos vinham da Europa oriental; alguns eram da Bélgica e da Áustria, outros da Itália. Foi, portanto, um conjunto genuinamente europeu que se reuniu em Mannheim em 1720.
No entanto, seu caráter pan-europeu não foi, obviamente, o único fator ao qual essa orquestra deveu a fama que chegou a adquirir. Durante mais de vinte anos, a orquestra de Mannheim só gozou de reputação local. Essa situação mudou rapidamente depois que Stamitz se juntou à orquestra. Ele possuía autoridade e grandes poderes de sugestão; ele tinha, ao que parece, um talento natural para inspirar os que estavam ao seu redor a darem um passo decisivo à frente, depois de um período de desenvolvimento hesitante; um passo que levou a uma nova era da música de concerto. Não há dúvida de que a transformação da Hofkapelle de Mannheim em uma verdadeira orquestra deve-se acima de tudo a Johann Stamitz.
A Escola de Mannheim de compositores foi de grande significância para o desenvolvimento do estilo clássico vienense e da técnica orquestral. O mais velho dos muitos compositores na orquestra do Eleitor era outro compositor da Boêmia, Franz Xaver Richter. Ignaz Holzbauer, nascido em Viena, foi contratado por Karl Theodor em 1753 como Kapellmeister da corte, após ter trabalhado numa posição semelhante em Stuttgart. O sucessor de Johann Stamitz como diretor da orquestra do Eleitor foi Christian Cannabich, considerado por muitos como um dos melhores sinfonistas da Mannheim tardia. Karl Philipp Stamitz, filho mais velho de Johann Stamitz, foi o mais popular entre os compositores de Mannheim.
Quando aquele governante amante das artes herdou o trono da Baviera em 1778, muitos membros da Hofkapelle de Mannheim seguiram-no a Munique e a ex-orquestra de Mannheim se fundiu com a Hofkapelle de Munique. Essa orquestra mista estava à disposição de Mozart, que havia conhecido alguns dos músicos durante suas visitas a Mannheim em 1777-78, quando Idomeneo foi apresentado pela primeira vez, em Munique, no ano de 1781.”
(Chris Whent, The Mannheim School)

sábado, 30 de julho de 2011

A reação do primitivismo

“O primitivismo em música foi uma reação ao refinamento exacerbado de compositores como Debussy e Ravel. Seus partidários eram a favor de melodias simples, de contorno nítido e caráter folclórico, que giravam ao redor de uma nota central e se moviam dentro de um compasso estreito; harmonias maciças, baseadas em acordes em bloco, movendo-se em formação paralela, com efeito severamente percussivo; e um forte impulso em direção a um centro tonal. Muito em evidência eram os ritmos ostinati repetidos com efeito quase obsessivo e uma orquestração áspera produzindo sonoridades pesadas que contrastavam agudamente com as sutilezas colorísticas dos impressionistas.
Os compositores do século vinte inspiraram-se não somente na música africana, mas também nas canções e danças das fronteiras da cultura ocidental – sudeste da Europa, Rússia asiática e Oriente Médio. Da música folclórica incorrupta e vigorosa dessas regiões vieram ritmos de um poder elemental que abriram as comportas de novos sentimentos e imaginações. Os marcos nesse desenvolvimento foram peças como o Allegro Barbaro de Bartók e Le Sacre du Printemps de Stravinsky.”
(Joseph Machlis, Introduction to Contemporary Music)

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Uma observação sobre a música de Albéric Magnard

Magnard não sabe para onde ir com o brucknerismo que adotou. É o caso em que um atavismo coletivo se choca com o gosto individual. Parece colocar os tutti nos lugares mais errados, seus pianíssimos não convencem e não tem o senso dramático que o mestre austríaco expressa em suas obras com tanta solidez. Seu espírito francês prefere ficar rodopiando ao redor de idéias desinteressantes até que passado tempo suficiente ele cria uma coda fácil e fecha o que já devia há muito ter terminado. Não sente que deva haver uma teleologia na obra musical, como há em todo discurso humano. Deve haver uma orientação em direção a um fim, um encadeamento lógico rumo a uma peroração. Magnard gira em torvelinhos falsamente agônicos: sua escrita clama aos céus por uma resolução que nem a coda é capaz de dar. O resultado é muita atividade sem propósito, muito cromatismo gasto em vão. Os contrastes não contrastam, as passagens supostamente líricas não encantam e os trechos rítmicos não chamam a atenção porque há um problema fundamental escondido por trás de toda essa movimentação inútil. O maestro e compositor austríaco Karl Rankl dizia que, quando compunha, ele procurava ter sempre uma idéia definida de para onde se dirigia sua obra, e só colocava as notas no papel quando essa imagem de totalidade já estivesse bastante clara diante de seus olhos; um exemplo que infelizmente parece ter escapado totalmente ao espírito de Magnard e que explica em parte porque os franceses preferiram, em seu modernismo, adotar as meditações extáticas e descritivas do impressionismo.

domingo, 15 de maio de 2011

As catedrais sonoras de Anton Bruckner

“Assim como Brahms e César Franck, Bruckner pode ser considerado um “evolucionário” da sinfonia, gênero que consolidou com seu traço pessoal, com a vontade de dominar e estruturar a matéria sonora. Erige amplas construções onde os planos se respondem – uns originando-se dos outros -, onde ainda transparece a arte barroca que ele contemplou desde jovem em Sankt Florian e cujo desenho em volutas chama e conduz o olhar para infinitas linhas de fuga submissas a um centro brilhante. Dessa forma, as sinfonias de Bruckner apegam-se, sobretudo, à idéia de Deus, articulando-se em torno de um ponto culminante, como, por exemplo, no coral do Finale da Quinta Sinfonia, nas perorações da Quarta e da Oitava, e no retorno do tema no Adagio da Sétima.
No plano formal, Bruckner se mostra menos reservado que Brahms, embora menos audacioso que Franck. O que não o impede de abrir caminhos aos músicos expressionistas e particularmente a Gustav Mahler.
Essa atitude, adotada e desenvolvida por Bruckner ao longo de sua existência, condiciona, em certa medida, a sua linguagem musical. E aqui, ainda, a Sétima Sinfonia é o perfeito exemplo, tanto no plano da temática como da rítmica ou da harmonia.
A escritura de Bruckner é, antes de tudo, polifônica e seu contraponto resulta da forma sinfônica pré-escolhida – que implica uma linguagem determinada e sutis relações harmônicas -, bem como da vocação de organista, habituado a superpor grandes planos sonoros nos diferentes teclados de seu instrumento.
Nessas imensas catedrais que são suas sinfonias, os temas funcionam como pilares de sustentação de edifícios iluminados pela harmonia, como o raio de luz que se filtra através dos vitrais. Esses temas geradores, cujo desenho é preciso e vigoroso, freqüentemente estão reunidos no que se pode chamar de “grupos” – o inicial, chamado “grupo de cabeça” ou “rítmico”; o segundo, “grupo de canto” ou ”melódico”; o terceiro, “conclusivo” ou “harmônico”.
Bruckner foi também um geômetra, com imperiosa necessidade de se mover em espaço sonoro amplo, mas de contornos delimitados: daí a preocupação que o anima e o leva a polir seus temas com o mesmo cuidado que ao conjunto do edifício, ao ponto em que eles podem ser naturalmente construídos em movimento direto ou inverso.
Aliás, os motivos das sinfonias são geralmente compostos de oito compassos, em longos períodos que atingem 24 ou 32 compassos. Essas longas confissões funcionam como a expressão de um fôlego profundo que é preciso seguir passo a passo, sem perder o fio do discurso, sob pena de sucumbir. Para evitar a monotonia que poderia resultar de semelhantes melopéias, Bruckner multiplicou as pesquisas tonais e, assim, sua escritura ganhou mobilidade.
Raramente monotonal, muito modulante, a escritura de Bruckner é igualmente submissa ao ritmo de vários séculos de danças camponesas. Fórmulas obstinadas, alternâncias de notas marcadas e fluidas, superposição de ritmos binários e ternários, redução dos temas até sua essência rítmica dada pelo tímpano ou trompetes em uma mesma nota, breve anacruse, marcando vigorosamente o ataque da nota longa seguinte (na Quarta Sinfonia, por exemplo) são ainda procedimentos característicos de Bruckner.
Esses motivos poderosos trabalhados por uma dinâmica interna, Bruckner os engasta em uma harmonia sempre quente, elástica e mesmo sensual, freqüentemente fundada sobre o acorde perfeito ou o acorde de sétima.
Nesse sentido, Bruckner é bem o filho de seu século. Herdeiro de Schubert, admirador de Wagner, recolheu em seu cadinho todos os princípios que lhe foram legados pelo Romantismo musical alemão. Mas acrescentou-lhes audaciosos encontros contrapontísticos.
Transformando em princípio a alternância maior/menor, Bruckner infundiu em suas partituras uma espécie de claro-escuro pictórico, que concentra em direção ao principal grupo de temas a essência do que diz, graças a súbitas modulações enarmônicas ou cromáticas.
Sua orquestração, muito pessoal, também o distingue de seus contemporâneos. Mais densa, embora, talvez, mais colorida que a de Brahms, a orquestra de Bruckner desenvolve-se como uma floresta virgem, cheia de vida, capaz dos mais formidáveis crescendos, como dos mais tênues pianíssimos. Ávido de contrastes, procedendo, como com seu órgão, pela superposição de vastos planos, Bruckner sabe solicitar aos metais – e mais particularmente aos trombones – essa cor, essa intensidade no recolhimento (Adagio pianissimo da Sétima Sinfonia), que só pertence a ele e que sua fé glorifica por meio de vibrantes corais.
Bruckner jamais viu o mundo sob outro ângulo além daquele ditado por dezenove séculos de cristianismo. E assumiu como poucos a tarefa de honrar o Criador por meio de sua arte. Assim, jamais teve para com ela um comportamento utilitarista e tampouco fez concessões à moda. Apesar disso, a luta em que se viu envolvido – à sua revelia – entre admiradores de Wagner (e Bruckner foi um deles) e os de Brahms custou-lhe parte da segurança material e da possibilidade – que só conheceu nos últimos anos de vida – de se consagrar integralmente à composição. E de ser aceito. Foi então em duplo isolamento – afetivo e social – que se desenvolveu sua trajetória.
Apesar de sua vida ter sido um aglomerado de dificuldades, e seu refúgio, a música, raros são os momentos pessimistas na obra de Bruckner. O mais significativo deles é o primeiro movimento da Oitava Sinfonia. E, no entanto, o compositor é genuinamente romântico, na medida em que sua obra guarda um caráter confessional e quase autobiográfico, respondendo à profunda necessidade de expressão.
Nela, a música profana e a sacra se interpenetram, a ponto de um mesmo tema fornecer matéria para um movimento sinfônico e para um verseto de missa. A partir disso, a opinião de Langevin de que “a mais bela missa escrita por Bruckner foi, na realidade, a Quinta Sinfonia, ou então a Nona”, significa muito mais que um dito espirituoso.
No entanto, por mais rica que tenha sido a obra sacra de Bruckner, sua glória repousa essencialmente em nove sinfonias, cujo caráter distintivo é o de exprimir por meio da orquestra um dado que até então só fora traduzido nos serviços divinos.
Bruckner compôs, ao todo, onze sinfonias, das quais as nove últimas contam como o que há de mais importante em sua produção profana – se é que se pode chamá-las profanas, sem contradizer Langevin. A maioria delas é conhecida hoje em diferentes versões, uma vez que o compositor revisou-as profundamente durante várias fases de sua vida. E, jamais inteiramente confiante no resultado final de uma sinfonia, Bruckner permitia que regentes e editores cortassem trechos das partituras, acertassem certos detalhes da orquestração e até mesmo da harmonia. Ele mesmo, com freqüência, chegou a recompor movimentos inteiros de algumas de suas sinfonias, depois de sua primeira execução e/ou publicação.
No que diz respeito às sinfonias, merecem especial destaque a Quarta, a Quinta, a Sétima e a Nona.
A Quarta Sinfonia, uma de suas composições mais luminosas, é também uma das mais populares. Isso se deve à perfeição plástica de seus temas, à amplitude arquitetural, assim como a sua aparência descritiva, próxima do poema sinfônico (Bruckner batizou-a de “Romântica”). No plano da técnica, confirma a segurança e a riqueza de expressão das obras anteriores. Primeira sinfonia em tonalidade maior, é também a primeira em que Bruckner mistura tonalidades de maneira intensiva.
Composta entre 1875/76 e revisada mais tarde, a Quinta Sinfonia, em Si Bemol Maior, é suntuosa. Sua lógica não tem falhas, seus desenvolvimentos são amplos e sua unidade é perfeita. Obra-prima de arquitetura e de luz, seu caráter majestoso mede-se efetivamente pelos temas grandiosos, pelo coral de plástica severa, por suas inflexões ora religiosas ora elegíacas, pela escritura soberana, enfim.
Assim como Bruckner procurou depurar sua linguagem ao passar da Primeira para a Segunda Sinfonia, da mesma forma essa linguagem evolui da Quarta para a Quinta. Esta última, apesar dos intensos arroubos, do colorido fortemente contrastado, das múltiplas pesquisas técnicas, surge, paradoxalmente, mais sóbria, mais severa, mais secreta – enfim, mais clássica que a anterior.
A Quinta Sinfonia encaminha a criação de Bruckner para novos horizontes. Ainda partindo da própria solidão e fé, Bruckner inicia com ela a escalada que, com a Nona Sinfonia, chegará ao último dom de si.
A Sétima – juntamente com a Quarta – é uma das mais populares e alcançou enorme sucesso quando Bruckner ainda era vivo. Obra-prima de uma arte que chegava ao apogeu no final de um longo caminho, a Sétima é, ao mesmo tempo, a síntese e o resultado de uma forma musical, assim como o resumo de toda a criação sinfônica de Bruckner. Sua arquitetura é sabiamente elaborada: pelo número de temas e planos tonais, o primeiro movimento se constrói segundo a estética bruckneriana. Apesar disso, a ausência deliberada de qualquer grupo rítmico lhe confere uma maneira de ser peculiar. O Adagio – uma das mais belas páginas da sinfonia, inspirada no sentimento da morte iminente de Wagner – está escrito em forma de rondó, com a alternância de dois temas. O Scherzo vivace é o primeiro segmento essencialmente rítmico e difere dos anteriores pelo desenho nítido dos elementos do tema; o Trio central inicia-se por uma figura rítmica, uma frase aparentemente clara e lenta, perturbada pelo trompete, pela flauta e pelo tímpano. Apesar da força e das grandes proporções, o Finale – Allegro ma non troppo – apresenta uma arquitetura simples, como um movimento de sonata com dois temas. Se o desenvolvimento obedece às leis tradicionais, a reexposição diminui para simular entradas – como em um stretto de fuga – e imprimir ao final uma pulsação interior que atinge seu paroxismo na coda, com a retomada do tema inicial do primeiro movimento.
No plano da construção, a Sétima Sinfonia testemunha a preferência de Bruckner pelos vastos moldes, intensamente elaborados: separações iniciais em três temas que se refletem na estrutura mais ou menos semelhante à do último movimento, onde ressurgem as tonalidades, o coral e pelo menos um dos motivos principais do início da obra; adagios em forma de lied; e, enfim, scherzi com violentos saltos, embora de execução simples e cujos paroxismos rítmicos são compensados pela serenidade do trio, onde dominam as inflexões populares do laendler.
Na Nona Sinfonia, finalmente, Bruckner quis concretizar sua concepção arquitetônica e sua linguagem sinfônica. Em seu último esforço para encontrar o absoluto das coisas antes de oferecê-lo ao Absoluto dos Seres, Bruckner partiu em busca do eu mais profundo para, uma vez tendo-se reconhecido totalmente, ultrapassar os limites da própria alma e, assim, transcender a si mesmo. Mais do que qualquer outra, essa sinfonia é obra essencialmente religiosa: longo canto à glória do Senhor, que ultrapassa o limite das palavras, expressando-se pelo quase imaterial da música. Bruckner pretendia encerrar sua última sinfonia com uma enorme fuga a duas vozes. Mas suas forças não o permitiram e a Nona ficou inacabada. Mesmo assim, ela é o coroamento de sua criação e configura a serenidade conquistada em meio ao assustador pandemônio acima e além do qual sua alma de músico se elevou.”
(J. Jota de Moraes, Bruckner)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Do Coral Gregoriano à Ars Nova


“Nossa literatura, nossas artes plásticas, nossa filosofia seriam incompreensíveis sem o conhecimento dos seus fundamentos greco-romanos. Mas não acontece o mesmo com a nossa música. Esse produto autônomo da civilização ocidental moderna não tem suas origens na Antiguidade que se costuma chamar clássica. Quando muito, alguns germes da evolução posterior ficam escondidos num outro fenômeno musical, à maneira de documentos sepultados nos fundamentos de uma catedral ou outra construção multissecular. Esse fenômeno, de importância realmente fundamental, é o Coral Gregoriano, o cantochão, o canto litúrgico da Igreja Romana.
Sem dúvida, escondem-se nas melodias do cantochão fragmentos dos hinos cantados nos templos gregos e dos salmos que acompanhavam o culto no Templo de Jerusalém. Não podemos, porém, apreciar a proporção em que esses elementos entraram no cantochão. Tampouco nos ajuda, para tanto, o estudo das liturgias que precederam a reforma do canto eclesiástico pelo Papa Gregório I: das liturgias da Igreja oriental; da liturgia galicana, já desaparecida; da liturgia ambrosiana, que se canta até hoje na arquidiocese de Milão; e da liturgia visigótica ou mozárabe que, por privilégio especial, sobrevive em algumas igrejas da cidade de Toledo. A única música litúrgica católica que conta para o Ocidente é o Coral Gregoriano, a liturgia à qual Gregório I o Grande (590-604) concedeu espécie de monopólio na Igreja Romana.
O Coral Gregoriano não é obra do grande Papa. A atribuição a ele só data de 873 (Johannes Diaconus). Então, o que se cantava na Schola Cantorum de Roma já não era exatamente o mesmo como no fim do século VI. O cantochão sofreu, durante os muitos séculos de sua existência, numerosas modificações, quase sempre para o pior. Aos monges do mosteiro de Solesmes e a outros beneméritos da Ordem de São Bento deve-se, porém, em nosso tempo, o restabelecimento dos textos originais. São estas as melodias litúrgicas que se cantam, diariamente, em Solesmes e em Beuron, em Maria Laach e em Clervaux e em todos os conventos beneditinos do Velho Mundo e do Novo; e se cantarão, esperamos, até a consumação dos séculos. É a mais antiga música ainda em uso.
As qualidades características do Coral Gregoriano são a inesgotável riqueza melódica, o ritmo puramente prosódico, subordinado ao texto, dispensando a separação dos compassos pelo risco, e a rigorosa homofonia: o cantochão, por mais numeroso que seja o coro que o executa, sempre é cantado em uníssono, a uma voz. Nossa música, porém, é muito menos rica em matéria melódica; procede rigorosamente conforme o ritmo prescrito; e, a não ser a música mais simples para uso popular ou das crianças, sempre se caracteriza pela diversidade das vozes, sejam linhas melódicas polifonicamente coordenadas, sejam acordes que acompanham uma voz principal. Nossa música é, em todos os seus elementos, fundamentalmente diferente do cantochão, que parece pertencer a um outro mundo. Realmente pertence, histórica como teologicamente, a um outro mundo; é a música dos céus e de um passado imensamente remoto.
Outra força “subversiva” foi a presença da música profana: a poesia lírica aristocrática dos Troubadours, cantada nos castelos, e a poesia lírica popular, cantada nas aldeias. Uma canção popular inglesa, guardada num manuscrito do começo do século XIII, o Cuckoo-Song (“Sumer is i-cumen in...”), é um cânone a 6 vozes, isto é, as 6 vozes entram sucessivamente, à distância de poucos compassos, com a mesma melodia. Evidentemente havia mais outras canções assim: ao cantochão Gregoriano, rigorosamente homófono, opõe o povo a polifonia; e esta entrará nas igrejas. Aquele cânone é, não por acaso, uma canção de verão. Assim como nos célebres murais do Campo Santo de Pisa os eremitas e ascetas saem dos seus cubículos para respirar um ar diferente, assim começa também na música contemporânea o verão da alta Idade Média.
Essa música foi, mais tarde, chamada de Ars Antiqua. Mas “antiga” ela só é em relação a outra, posterior: a Ars Nova. No século XIII, Ars Antiqua era nova; é a arte que pertence à chamada “Renascença do século XIII”, florescimento das cidades e construção das catedrais, vida nova nas Universidades, tradução de Aristóteles e de escritos árabes para o latim e elaboração da grande síntese filosófica de São Tomás de Aquino.
Houve, dentro do Coral Gregoriano, o germe de uma evolução: a contradição entre a obrigação de acompanhar fielmente o texto litúrgico, à maneira de recitativo, e, por outro lado, a presença de tão rica matéria melódica, os “melismos” que se estendem longamente quase como coloraturas, sem consideração do valor da palavra. Essa contradição levaria à divisão das vozes: uma, recitando o texto; outra, ornando-o melodicamente. São essas as origens das primeiras tentativas de música polifônica, do Organum e do Discantus, detidamente estudados e descritos pelos historiadores; mas não nos preocuparão.
Os primeiros textos da Ars Antiqua foram encontrados na biblioteca da igreja de Saint-Martial, em Limoges. Mas o desenvolvimento dessa nova arte realizou-se na Schola Cantorum da catedral Notre-Dame de Paris. Registra-se a atividade de um magister Leoninus. Mas o grande nome da Ars Antiqua é seu discípulo e sucessor na direção daquela escola parisiense por volta de 1200, o magister Perotinus; na história da nossa música, é o primeiro compositor que sai da obscuridade do anonimato. Várias obras de Perotinus encontram-se no manuscrito H196 da biblioteca da Faculdade de Medicina de Montpellier e no Antiphonarium Mediceum da Biblioteca Laurenziana em Florença. São obras de uma polifonia rudimentar, blocos sonoros rudes como as pedras nas fachadas românicas de catedrais que mais tarde foram continuadas em estilo gótico. A impressão pode ser descrita como “majestosamente oca”. A ligação rigorosa da segunda voz à melodia gregoriana não permite a diversidade rítmica. Algumas dessas peças curtas, Quis tibi, Christe e Sederunt principes, foram modernamente gravadas em discos.
O “imobilismo” da Ars Antiqua explica-se pela insuficiência do sistema de notação atribuído ao monge Guido (ou Guittone) de Arezzo: todas as notas tinham o mesmo valor, a mesma duração, sem possibilidade de distinguir breves e longas. O primeiro grande progresso da Ars Nova, dos séculos XII e XIV, é o sistema mensural, que já se parece com o nosso sistema de notação: permite distinguir notas longas e menos longas, breves e mais breves; permitiu maior e, enfim, infinita diversidade do movimento melódico nas diferentes vozes. É um progresso que lembra as descobertas, naquela mesma época, da ciência matemática, pelas quais são responsáveis eruditos como Oresmius e outros grandes representantes do nominalismo, dessa última e já meio herética forma da filosofia escolástica.
A Ars Nova não é, simplesmente, o equivalente do estilo gótico na arquitetura. Precisava-se de séculos para construir as grandes catedrais. Quando estavam prontas (ou quando as construções foram, incompletas, abandonadas), já tinham mudado muito o estilo de pensar e o estilo de construir. A Ars Nova já corresponde à elaboração cada vez mais sutil do pensamento filosófico e das formas góticas. Os grandes teóricos da Ars Nova, o Bispo Philippus de Vitry e os outros, elaboram com precisão matemática as regras da arte de coordenar várias vozes diferentes sem ferir as exigências do ouvido por dissonâncias mais ásperas. São as regras do contraponto.
Eis a teoria. Na prática da Ars Nova influiu muito a música profana, inclusive a italiana do Trecento, de interesse histórico, mas sem possibilidades de ser hoje revivificada. O grande compositor da Ars Nova é Guillaume de Machaut (c. 1310-1377), que foi dignitário eclesiástico em Verdun e Reims, enfim na corte do Rei Charles V da França. Seu nome só figurava, durante séculos, na história literária da França: como poeta fecundo, autor de ballades, rondeaux e outras peças profanas. Machaut também escreveu para essas poesias a música: a 3 ou 4 vozes, da mesma maneira e no mesmo estilo em que escreveu motetes para 3 ou 4 vozes sobre textos litúrgicos. Uma obra de vulto e importância excepcionais é sua Messe du Sacre, escrita em 1367 para a coroação daquele rei na catedral de Reims. É uma data histórica. Machaut foi, parece, o primeiro que escolheu cinco partes fixas do texto da missa para pô-las em música: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus (com Benedictus) e Agnus Dei. Criou, dessa maneira, um esquema, uma forma musical de que os compositores se servirão, durante séculos, com a mesma assiduidade com que os músicos do século XIX escreverão sinfonias e quartetos. A Missa, naquele sentido musical, é a primeira grande criação da música ocidental; e a Messe du Sacre de Machaut é o primeiro exemplo do gênero. É a obra exemplar da Ars Nova, empregando as regras complicadas da arte contrapontística, sem evitar, porém, certas discordâncias sonoras que nos parecem, hoje, arcaicas ou então estranhamente modernas. É uma arte medieval, na qual se descobrem, porém, os germes da arte renascentista: é uma música que será autônoma. É o começo do ciclo de criação que em nossos dias acaba.”
(Otto Maria Carpeaux, Uma Nova História da Música)