quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Do Coral Gregoriano à Ars Nova


“Nossa literatura, nossas artes plásticas, nossa filosofia seriam incompreensíveis sem o conhecimento dos seus fundamentos greco-romanos. Mas não acontece o mesmo com a nossa música. Esse produto autônomo da civilização ocidental moderna não tem suas origens na Antiguidade que se costuma chamar clássica. Quando muito, alguns germes da evolução posterior ficam escondidos num outro fenômeno musical, à maneira de documentos sepultados nos fundamentos de uma catedral ou outra construção multissecular. Esse fenômeno, de importância realmente fundamental, é o Coral Gregoriano, o cantochão, o canto litúrgico da Igreja Romana.
Sem dúvida, escondem-se nas melodias do cantochão fragmentos dos hinos cantados nos templos gregos e dos salmos que acompanhavam o culto no Templo de Jerusalém. Não podemos, porém, apreciar a proporção em que esses elementos entraram no cantochão. Tampouco nos ajuda, para tanto, o estudo das liturgias que precederam a reforma do canto eclesiástico pelo Papa Gregório I: das liturgias da Igreja oriental; da liturgia galicana, já desaparecida; da liturgia ambrosiana, que se canta até hoje na arquidiocese de Milão; e da liturgia visigótica ou mozárabe que, por privilégio especial, sobrevive em algumas igrejas da cidade de Toledo. A única música litúrgica católica que conta para o Ocidente é o Coral Gregoriano, a liturgia à qual Gregório I o Grande (590-604) concedeu espécie de monopólio na Igreja Romana.
O Coral Gregoriano não é obra do grande Papa. A atribuição a ele só data de 873 (Johannes Diaconus). Então, o que se cantava na Schola Cantorum de Roma já não era exatamente o mesmo como no fim do século VI. O cantochão sofreu, durante os muitos séculos de sua existência, numerosas modificações, quase sempre para o pior. Aos monges do mosteiro de Solesmes e a outros beneméritos da Ordem de São Bento deve-se, porém, em nosso tempo, o restabelecimento dos textos originais. São estas as melodias litúrgicas que se cantam, diariamente, em Solesmes e em Beuron, em Maria Laach e em Clervaux e em todos os conventos beneditinos do Velho Mundo e do Novo; e se cantarão, esperamos, até a consumação dos séculos. É a mais antiga música ainda em uso.
As qualidades características do Coral Gregoriano são a inesgotável riqueza melódica, o ritmo puramente prosódico, subordinado ao texto, dispensando a separação dos compassos pelo risco, e a rigorosa homofonia: o cantochão, por mais numeroso que seja o coro que o executa, sempre é cantado em uníssono, a uma voz. Nossa música, porém, é muito menos rica em matéria melódica; procede rigorosamente conforme o ritmo prescrito; e, a não ser a música mais simples para uso popular ou das crianças, sempre se caracteriza pela diversidade das vozes, sejam linhas melódicas polifonicamente coordenadas, sejam acordes que acompanham uma voz principal. Nossa música é, em todos os seus elementos, fundamentalmente diferente do cantochão, que parece pertencer a um outro mundo. Realmente pertence, histórica como teologicamente, a um outro mundo; é a música dos céus e de um passado imensamente remoto.
Outra força “subversiva” foi a presença da música profana: a poesia lírica aristocrática dos Troubadours, cantada nos castelos, e a poesia lírica popular, cantada nas aldeias. Uma canção popular inglesa, guardada num manuscrito do começo do século XIII, o Cuckoo-Song (“Sumer is i-cumen in...”), é um cânone a 6 vozes, isto é, as 6 vozes entram sucessivamente, à distância de poucos compassos, com a mesma melodia. Evidentemente havia mais outras canções assim: ao cantochão Gregoriano, rigorosamente homófono, opõe o povo a polifonia; e esta entrará nas igrejas. Aquele cânone é, não por acaso, uma canção de verão. Assim como nos célebres murais do Campo Santo de Pisa os eremitas e ascetas saem dos seus cubículos para respirar um ar diferente, assim começa também na música contemporânea o verão da alta Idade Média.
Essa música foi, mais tarde, chamada de Ars Antiqua. Mas “antiga” ela só é em relação a outra, posterior: a Ars Nova. No século XIII, Ars Antiqua era nova; é a arte que pertence à chamada “Renascença do século XIII”, florescimento das cidades e construção das catedrais, vida nova nas Universidades, tradução de Aristóteles e de escritos árabes para o latim e elaboração da grande síntese filosófica de São Tomás de Aquino.
Houve, dentro do Coral Gregoriano, o germe de uma evolução: a contradição entre a obrigação de acompanhar fielmente o texto litúrgico, à maneira de recitativo, e, por outro lado, a presença de tão rica matéria melódica, os “melismos” que se estendem longamente quase como coloraturas, sem consideração do valor da palavra. Essa contradição levaria à divisão das vozes: uma, recitando o texto; outra, ornando-o melodicamente. São essas as origens das primeiras tentativas de música polifônica, do Organum e do Discantus, detidamente estudados e descritos pelos historiadores; mas não nos preocuparão.
Os primeiros textos da Ars Antiqua foram encontrados na biblioteca da igreja de Saint-Martial, em Limoges. Mas o desenvolvimento dessa nova arte realizou-se na Schola Cantorum da catedral Notre-Dame de Paris. Registra-se a atividade de um magister Leoninus. Mas o grande nome da Ars Antiqua é seu discípulo e sucessor na direção daquela escola parisiense por volta de 1200, o magister Perotinus; na história da nossa música, é o primeiro compositor que sai da obscuridade do anonimato. Várias obras de Perotinus encontram-se no manuscrito H196 da biblioteca da Faculdade de Medicina de Montpellier e no Antiphonarium Mediceum da Biblioteca Laurenziana em Florença. São obras de uma polifonia rudimentar, blocos sonoros rudes como as pedras nas fachadas românicas de catedrais que mais tarde foram continuadas em estilo gótico. A impressão pode ser descrita como “majestosamente oca”. A ligação rigorosa da segunda voz à melodia gregoriana não permite a diversidade rítmica. Algumas dessas peças curtas, Quis tibi, Christe e Sederunt principes, foram modernamente gravadas em discos.
O “imobilismo” da Ars Antiqua explica-se pela insuficiência do sistema de notação atribuído ao monge Guido (ou Guittone) de Arezzo: todas as notas tinham o mesmo valor, a mesma duração, sem possibilidade de distinguir breves e longas. O primeiro grande progresso da Ars Nova, dos séculos XII e XIV, é o sistema mensural, que já se parece com o nosso sistema de notação: permite distinguir notas longas e menos longas, breves e mais breves; permitiu maior e, enfim, infinita diversidade do movimento melódico nas diferentes vozes. É um progresso que lembra as descobertas, naquela mesma época, da ciência matemática, pelas quais são responsáveis eruditos como Oresmius e outros grandes representantes do nominalismo, dessa última e já meio herética forma da filosofia escolástica.
A Ars Nova não é, simplesmente, o equivalente do estilo gótico na arquitetura. Precisava-se de séculos para construir as grandes catedrais. Quando estavam prontas (ou quando as construções foram, incompletas, abandonadas), já tinham mudado muito o estilo de pensar e o estilo de construir. A Ars Nova já corresponde à elaboração cada vez mais sutil do pensamento filosófico e das formas góticas. Os grandes teóricos da Ars Nova, o Bispo Philippus de Vitry e os outros, elaboram com precisão matemática as regras da arte de coordenar várias vozes diferentes sem ferir as exigências do ouvido por dissonâncias mais ásperas. São as regras do contraponto.
Eis a teoria. Na prática da Ars Nova influiu muito a música profana, inclusive a italiana do Trecento, de interesse histórico, mas sem possibilidades de ser hoje revivificada. O grande compositor da Ars Nova é Guillaume de Machaut (c. 1310-1377), que foi dignitário eclesiástico em Verdun e Reims, enfim na corte do Rei Charles V da França. Seu nome só figurava, durante séculos, na história literária da França: como poeta fecundo, autor de ballades, rondeaux e outras peças profanas. Machaut também escreveu para essas poesias a música: a 3 ou 4 vozes, da mesma maneira e no mesmo estilo em que escreveu motetes para 3 ou 4 vozes sobre textos litúrgicos. Uma obra de vulto e importância excepcionais é sua Messe du Sacre, escrita em 1367 para a coroação daquele rei na catedral de Reims. É uma data histórica. Machaut foi, parece, o primeiro que escolheu cinco partes fixas do texto da missa para pô-las em música: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus (com Benedictus) e Agnus Dei. Criou, dessa maneira, um esquema, uma forma musical de que os compositores se servirão, durante séculos, com a mesma assiduidade com que os músicos do século XIX escreverão sinfonias e quartetos. A Missa, naquele sentido musical, é a primeira grande criação da música ocidental; e a Messe du Sacre de Machaut é o primeiro exemplo do gênero. É a obra exemplar da Ars Nova, empregando as regras complicadas da arte contrapontística, sem evitar, porém, certas discordâncias sonoras que nos parecem, hoje, arcaicas ou então estranhamente modernas. É uma arte medieval, na qual se descobrem, porém, os germes da arte renascentista: é uma música que será autônoma. É o começo do ciclo de criação que em nossos dias acaba.”
(Otto Maria Carpeaux, Uma Nova História da Música)

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