“Assim como Brahms e César Franck, Bruckner pode ser considerado um “evolucionário” da sinfonia, gênero que consolidou com seu traço pessoal, com a vontade de dominar e estruturar a matéria sonora. Erige amplas construções onde os planos se respondem – uns originando-se dos outros -, onde ainda transparece a arte barroca que ele contemplou desde jovem em Sankt Florian e cujo desenho em volutas chama e conduz o olhar para infinitas linhas de fuga submissas a um centro brilhante. Dessa forma, as sinfonias de Bruckner apegam-se, sobretudo, à idéia de Deus, articulando-se em torno de um ponto culminante, como, por exemplo, no coral do Finale da Quinta Sinfonia, nas perorações da Quarta e da Oitava, e no retorno do tema no Adagio da Sétima.
No plano formal, Bruckner se mostra menos reservado que Brahms, embora menos audacioso que Franck. O que não o impede de abrir caminhos aos músicos expressionistas e particularmente a Gustav Mahler.
Essa atitude, adotada e desenvolvida por Bruckner ao longo de sua existência, condiciona, em certa medida, a sua linguagem musical. E aqui, ainda, a Sétima Sinfonia é o perfeito exemplo, tanto no plano da temática como da rítmica ou da harmonia.
A escritura de Bruckner é, antes de tudo, polifônica e seu contraponto resulta da forma sinfônica pré-escolhida – que implica uma linguagem determinada e sutis relações harmônicas -, bem como da vocação de organista, habituado a superpor grandes planos sonoros nos diferentes teclados de seu instrumento.
Nessas imensas catedrais que são suas sinfonias, os temas funcionam como pilares de sustentação de edifícios iluminados pela harmonia, como o raio de luz que se filtra através dos vitrais. Esses temas geradores, cujo desenho é preciso e vigoroso, freqüentemente estão reunidos no que se pode chamar de “grupos” – o inicial, chamado “grupo de cabeça” ou “rítmico”; o segundo, “grupo de canto” ou ”melódico”; o terceiro, “conclusivo” ou “harmônico”.
Bruckner foi também um geômetra, com imperiosa necessidade de se mover em espaço sonoro amplo, mas de contornos delimitados: daí a preocupação que o anima e o leva a polir seus temas com o mesmo cuidado que ao conjunto do edifício, ao ponto em que eles podem ser naturalmente construídos em movimento direto ou inverso.
Aliás, os motivos das sinfonias são geralmente compostos de oito compassos, em longos períodos que atingem 24 ou 32 compassos. Essas longas confissões funcionam como a expressão de um fôlego profundo que é preciso seguir passo a passo, sem perder o fio do discurso, sob pena de sucumbir. Para evitar a monotonia que poderia resultar de semelhantes melopéias, Bruckner multiplicou as pesquisas tonais e, assim, sua escritura ganhou mobilidade.
Raramente monotonal, muito modulante, a escritura de Bruckner é igualmente submissa ao ritmo de vários séculos de danças camponesas. Fórmulas obstinadas, alternâncias de notas marcadas e fluidas, superposição de ritmos binários e ternários, redução dos temas até sua essência rítmica dada pelo tímpano ou trompetes em uma mesma nota, breve anacruse, marcando vigorosamente o ataque da nota longa seguinte (na Quarta Sinfonia, por exemplo) são ainda procedimentos característicos de Bruckner.
Esses motivos poderosos trabalhados por uma dinâmica interna, Bruckner os engasta em uma harmonia sempre quente, elástica e mesmo sensual, freqüentemente fundada sobre o acorde perfeito ou o acorde de sétima.
Nesse sentido, Bruckner é bem o filho de seu século. Herdeiro de Schubert, admirador de Wagner, recolheu em seu cadinho todos os princípios que lhe foram legados pelo Romantismo musical alemão. Mas acrescentou-lhes audaciosos encontros contrapontísticos.
Transformando em princípio a alternância maior/menor, Bruckner infundiu em suas partituras uma espécie de claro-escuro pictórico, que concentra em direção ao principal grupo de temas a essência do que diz, graças a súbitas modulações enarmônicas ou cromáticas.
Sua orquestração, muito pessoal, também o distingue de seus contemporâneos. Mais densa, embora, talvez, mais colorida que a de Brahms, a orquestra de Bruckner desenvolve-se como uma floresta virgem, cheia de vida, capaz dos mais formidáveis crescendos, como dos mais tênues pianíssimos. Ávido de contrastes, procedendo, como com seu órgão, pela superposição de vastos planos, Bruckner sabe solicitar aos metais – e mais particularmente aos trombones – essa cor, essa intensidade no recolhimento (Adagio pianissimo da Sétima Sinfonia), que só pertence a ele e que sua fé glorifica por meio de vibrantes corais.
Bruckner jamais viu o mundo sob outro ângulo além daquele ditado por dezenove séculos de cristianismo. E assumiu como poucos a tarefa de honrar o Criador por meio de sua arte. Assim, jamais teve para com ela um comportamento utilitarista e tampouco fez concessões à moda. Apesar disso, a luta em que se viu envolvido – à sua revelia – entre admiradores de Wagner (e Bruckner foi um deles) e os de Brahms custou-lhe parte da segurança material e da possibilidade – que só conheceu nos últimos anos de vida – de se consagrar integralmente à composição. E de ser aceito. Foi então em duplo isolamento – afetivo e social – que se desenvolveu sua trajetória.
Apesar de sua vida ter sido um aglomerado de dificuldades, e seu refúgio, a música, raros são os momentos pessimistas na obra de Bruckner. O mais significativo deles é o primeiro movimento da Oitava Sinfonia. E, no entanto, o compositor é genuinamente romântico, na medida em que sua obra guarda um caráter confessional e quase autobiográfico, respondendo à profunda necessidade de expressão.
Nela, a música profana e a sacra se interpenetram, a ponto de um mesmo tema fornecer matéria para um movimento sinfônico e para um verseto de missa. A partir disso, a opinião de Langevin de que “a mais bela missa escrita por Bruckner foi, na realidade, a Quinta Sinfonia, ou então a Nona”, significa muito mais que um dito espirituoso.
No entanto, por mais rica que tenha sido a obra sacra de Bruckner, sua glória repousa essencialmente em nove sinfonias, cujo caráter distintivo é o de exprimir por meio da orquestra um dado que até então só fora traduzido nos serviços divinos.
Bruckner compôs, ao todo, onze sinfonias, das quais as nove últimas contam como o que há de mais importante em sua produção profana – se é que se pode chamá-las profanas, sem contradizer Langevin. A maioria delas é conhecida hoje em diferentes versões, uma vez que o compositor revisou-as profundamente durante várias fases de sua vida. E, jamais inteiramente confiante no resultado final de uma sinfonia, Bruckner permitia que regentes e editores cortassem trechos das partituras, acertassem certos detalhes da orquestração e até mesmo da harmonia. Ele mesmo, com freqüência, chegou a recompor movimentos inteiros de algumas de suas sinfonias, depois de sua primeira execução e/ou publicação.
No que diz respeito às sinfonias, merecem especial destaque a Quarta, a Quinta, a Sétima e a Nona.
A Quarta Sinfonia, uma de suas composições mais luminosas, é também uma das mais populares. Isso se deve à perfeição plástica de seus temas, à amplitude arquitetural, assim como a sua aparência descritiva, próxima do poema sinfônico (Bruckner batizou-a de “Romântica”). No plano da técnica, confirma a segurança e a riqueza de expressão das obras anteriores. Primeira sinfonia em tonalidade maior, é também a primeira em que Bruckner mistura tonalidades de maneira intensiva.
Composta entre 1875/76 e revisada mais tarde, a Quinta Sinfonia, em Si Bemol Maior, é suntuosa. Sua lógica não tem falhas, seus desenvolvimentos são amplos e sua unidade é perfeita. Obra-prima de arquitetura e de luz, seu caráter majestoso mede-se efetivamente pelos temas grandiosos, pelo coral de plástica severa, por suas inflexões ora religiosas ora elegíacas, pela escritura soberana, enfim.
Assim como Bruckner procurou depurar sua linguagem ao passar da Primeira para a Segunda Sinfonia, da mesma forma essa linguagem evolui da Quarta para a Quinta. Esta última, apesar dos intensos arroubos, do colorido fortemente contrastado, das múltiplas pesquisas técnicas, surge, paradoxalmente, mais sóbria, mais severa, mais secreta – enfim, mais clássica que a anterior.
A Quinta Sinfonia encaminha a criação de Bruckner para novos horizontes. Ainda partindo da própria solidão e fé, Bruckner inicia com ela a escalada que, com a Nona Sinfonia, chegará ao último dom de si.
A Sétima – juntamente com a Quarta – é uma das mais populares e alcançou enorme sucesso quando Bruckner ainda era vivo. Obra-prima de uma arte que chegava ao apogeu no final de um longo caminho, a Sétima é, ao mesmo tempo, a síntese e o resultado de uma forma musical, assim como o resumo de toda a criação sinfônica de Bruckner. Sua arquitetura é sabiamente elaborada: pelo número de temas e planos tonais, o primeiro movimento se constrói segundo a estética bruckneriana. Apesar disso, a ausência deliberada de qualquer grupo rítmico lhe confere uma maneira de ser peculiar. O Adagio – uma das mais belas páginas da sinfonia, inspirada no sentimento da morte iminente de Wagner – está escrito em forma de rondó, com a alternância de dois temas. O Scherzo vivace é o primeiro segmento essencialmente rítmico e difere dos anteriores pelo desenho nítido dos elementos do tema; o Trio central inicia-se por uma figura rítmica, uma frase aparentemente clara e lenta, perturbada pelo trompete, pela flauta e pelo tímpano. Apesar da força e das grandes proporções, o Finale – Allegro ma non troppo – apresenta uma arquitetura simples, como um movimento de sonata com dois temas. Se o desenvolvimento obedece às leis tradicionais, a reexposição diminui para simular entradas – como em um stretto de fuga – e imprimir ao final uma pulsação interior que atinge seu paroxismo na coda, com a retomada do tema inicial do primeiro movimento.
No plano da construção, a Sétima Sinfonia testemunha a preferência de Bruckner pelos vastos moldes, intensamente elaborados: separações iniciais em três temas que se refletem na estrutura mais ou menos semelhante à do último movimento, onde ressurgem as tonalidades, o coral e pelo menos um dos motivos principais do início da obra; adagios em forma de lied; e, enfim, scherzi com violentos saltos, embora de execução simples e cujos paroxismos rítmicos são compensados pela serenidade do trio, onde dominam as inflexões populares do laendler.
Na Nona Sinfonia, finalmente, Bruckner quis concretizar sua concepção arquitetônica e sua linguagem sinfônica. Em seu último esforço para encontrar o absoluto das coisas antes de oferecê-lo ao Absoluto dos Seres, Bruckner partiu em busca do eu mais profundo para, uma vez tendo-se reconhecido totalmente, ultrapassar os limites da própria alma e, assim, transcender a si mesmo. Mais do que qualquer outra, essa sinfonia é obra essencialmente religiosa: longo canto à glória do Senhor, que ultrapassa o limite das palavras, expressando-se pelo quase imaterial da música. Bruckner pretendia encerrar sua última sinfonia com uma enorme fuga a duas vozes. Mas suas forças não o permitiram e a Nona ficou inacabada. Mesmo assim, ela é o coroamento de sua criação e configura a serenidade conquistada em meio ao assustador pandemônio acima e além do qual sua alma de músico se elevou.”
(J. Jota de Moraes, Bruckner)
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