sábado, 9 de julho de 2016

A derrota da morte

“Pela primeira vez na história musical, a música interroga-se a si própria sobre as razões de sua existência e sobre sua natureza… é uma música do conhecimento, com a mesma consciência trágica como Freud, Kafka, Musil”.
Hans Werner Henze
“Sou três vezes sem casa: um nativo da Boêmia na Áustria; um austríaco entre os alemães; um judeu através do mundo todo”.
Gustav Mahler

“As sinfonias de Gustav Mahler exigem do ouvinte algo quase impossível nos dias de hoje: uma audição espiritual. Claro que isso já é evidente quando escutamos Bach, Mozart e Beethoven, mas Mahler representa uma exigência maior, não só porque utiliza-se dos procedimentos da paródia e do kitsch em sua obra (característica própria da modernidade), e sim porque ele abusa de toda uma tradição melódica e orquestral, chegando ao ponto de transformar a música em uma narrativa incomum – no caso, a narrativa de um espírito que luta, é derrotado, renasce, luta mais uma vez, até a morte calma e silenciosa. Pierre Boulez captou bem esse aspecto de romancista de Mahler, ao afirmar que sua música “descreve quase literalmente o mito da fênix”. “A visão e a técnica de Mahler possuem a dimensão épica da narrativa”, escreve Boulez, com sua habitual perspicácia. “Ele é como um romancista no método e no uso do material. Continuava a chamar suas peças de sinfonias; conservava a nomenclatura dos movimentos (adagio, scherzo, finale), embora seu número e ordem variassem de obra para obra. A intrusão ocasional de elementos vocais em diversos pontos da sinfonia e o emprego de efeitos teatrais, como a instalação de instrumentos fora do palco, foram duas das inovações de Mahler que destroem a noção de gêneros musicais distintos. Só o romancista trabalha de forma suficientemente elástica para fazer tais jogos com seus materiais”.
Esta implosão do gênero sinfônico e do ciclo de canções que Mahler fez é comparável, por exemplo, à revolução cromática de “A Paixão Segundo São Mateus”, de Bach, ou a Nona de Beethoven, em que o adágio (pelo menos na versão gravada por Sir Georg Solti) insinua ao ouvinte abismos metafísicos sequer imaginados. Mas há um método nesta loucura: a música de Mahler é também o sinal de um fim de um mundo, e o próprio Mahler – por ser um judeu exigente como maestro, e um compositor virtuoso com domínio total de suas ferramentas – se considerava como o exilado exemplar, o homem que, castigado por Deus a ser um banido na Terra, tinha sua obra como âncora para dar sentido à vida, paradoxalmente, ao mundo que o rejeitara.
Não é à toa que a personalidade de Mahler, marcada por tantas rejeições, perdas e lutas, terminaria numa auto-confiança gigantesca. “Meu tempo há de chegar!”, ele berrou uma vez, quase no final de sua vida. Era uma frase de efeito, e, como toda frase de efeito, só vale o momento em que foi dito, pois a obra de Mahler ultrapassa o meramente temporal. Não é o sucesso de uma época, a melodia da moda – é um som que inquieta, acalma, exalta, entristece. A música de Gustav Mahler provoca as mais exaltadas reações porque ninguém pode compreendê-la sem entender e sentir o que é o exílio, o que é a esperança, o que é a perda e o que é a vitória que se faz sobre esta perda. Enfim, quem não comprende Mahler, não compreende a vida em toda a sua intensidade e profundidade. A maior prova disso está na Sinfonia N°2, conhecida como Ressurreição, uma verdadeira jornada do espírito em busca da vida eterna, na esperança de derrotar sua maior inimiga: a morte.
Mahler era judeu, mas tinha uma atração estética incansável pela liturgia cristã, em especial a católica. Foi graças a ela – e ao poeta alemão Klopstock – que resolveu o problema estrutural que o atormentava durante a elaboração de sua segunda sinfonia. O ano era 1894, e Mahler estava na missa em homenagem ao maestro Hans von Bülow, que morrera no Cairo. Ambos haviam se desentendido por causa de uma obra de Mahler – a Totenfeier, que seria depois a abertura da segunda sinfonia. A admiração de Bülow por Mahler era apenas na sua figura de maestro, não como compositor. Atormentado pela amizade perdida, e obcecado pela sua nova obra, Mahler teve seu insight justamente na missa do falecido amigo, como explicou em uma carta no dia 17 de fevereiro de 1897:
“Procurei de fato em toda a literatura mundial, inclusive na Bíblia, para encontrar a palavra redentora… Foi então que Bülow morreu e assisti a um ofício comemorativo. O estado de espírito em que estava ali, pensando no defunto, correspondia exatamente ao da obra, que me preocupava permanentemente. Nesse momento preciso, o coro entoou o coral de Klopstock, ‘Ressurreição’! Fui fulminado como por um raio, tudo se tornara límpido, evidente. O criador vive à espera desse raio: é sua ‘Anunciação’. Só me restava transpor para a música aquela experiência. No entanto, se eu já não trouxesse essa obra dentro de mim, como teria podido vivê-la?”.
Sem dúvida, Mahler não só levava dentro de si a sua segunda sinfonia, como também as oito restantes que criaria nos cinquenta anos de vida, junto com três ciclos de canções. Nascido em 7 de julho de 1860, Gustav Mahler era um judeu na Boêmia, filho de Bernard Mahler e Marie Hermann, uma família marcada pela tragédia de ter seis filhos mortos prematuramente. Gustav já era um prodígio musical quando garoto, e seu pai tratou de incentivá-lo na carreira de maestro, inscrevendo-o no Gynasium de Praga, onde foi severamente maltratado: seus sapatos e suas roupas lhe foram tirados e outros de pior qualidade lhe foram entregues para usar, e sua alimentação beirava o regime de fome. “Aceitei tudo isso como coisa natural”, disse Mahler à sua futura esposa, Alma. Essa constante resignação frente à condição de exilado parece fazer parte de sua mystique, mas ela permeia sua obras do início ao fim. De fato, é o que marca, por exemplo, a sua primeira sinfonia, a Titã, aparentemente inspirada no romance de Jean Paul (fato nunca confirmado por Mahler). Se o ouvinte perceber que a música mahleriana é a biografia de um herói titânico que luta sem parar contra as forças do destino e, principalmente, busca vencer a morte pelo meio mais digno e dolorido possível, a unidade em suas sinfonias se apresenta como algo quase cristalino. O próprio Mahler fazia questão de ver este aspecto nas cartas que enviava aos amigos para explicar a segunda sinfonia, para ele uma continuação da Titã:
“Chamei o primeiro movimento de ‘Totenfeier’ (Dança da Morte). Se faz questão de saber por quê, trata-se do herói da minha Sinfonia em ré [a Titã] que levo ao túmulo… Paralelamente, coloca-se a questão central: Por que você viveu? Por que você sofreu? Tudo não é, afinal de contas, apenas uma enorme e trágica piada? Precisamos resolver essa questão de um modo ou de outro, para podermos continuar a viver, ou mesmo morrer! Quem já percebeu essa questão, mesmo que uma só vez, está em condições de responder a ela: dou essa resposta no último movimento…O segundo movimento, uma lembrança! Um raio de sol na vida desse herói… A vida torna a nos animar; pode acontecer que, em sua vã agitação, ela nos cause horror; é o caso, num salão de baile bem iluminado, das silhuetas móveis e dançantes que, ocultos na noite, observamos de longe sem ouvir a música! A vida aparece, então sem objeto, repugnante! Assim é o terceiro movimento! O que se segue, o senhor conhece”.
Mesmo com sua escrita hiperbólica - igual à sua orquestração bombástica e cheia de súbitos pontos de exclamação –, Mahler revela em sua obra uma intenção que só Beethoven queria de maneira tão autoconsciente: unir música e filosofia, tornando a sinfonia uma espécie de melodia do pensamento, explorando todas as suas fraturas, ambigüidades e suspiros de última hora. Esta desigualdade que a música tenta exprimir nos movimentos internos de uma alma, é exprimida através dos cinco movimentos da Sinfonia N° 2, cada uma com uma escala diferente:
1. Allegro moderato em dó menor (ex-Totenfeier);
2. Andante moderato em lá bemol;
3. Scherzo em dó menor, baseado nos Wunderhorn Lieder que Mahler havia composto nos tempos de estudante;
4. Urlicht (Luz original) em ré bemol, para contralto e orquestra, também inspirados nos Wunderhorn Lieder;
5. Finale, Ressurreição, terminando em mi bemol menor, para solistas, orquestra e coro.
Somados os cinco movimentos, são mais de 75 minutos de música densa, compacta e redentora. Mahler exige até demais do ouvinte: ninguém é obrigado a ouvir a jornada de um espírito que, após a morte, busca sua renovação na vida eterna. Mas depois de escutar os primeiros compassos da Totenfeier, somos agarrados pelo pescoço e temos de ir com este herói até o fim, um fim que, por incrível que pareça, será um triunfo completo. A salvação da alma é algo que preocupa Mahler e, para ele, é um assunto essencial para a arte que todo o artista digno deveria se preocupar. Não é à toa que a segunda sinfonia está intimamente ligada à oitava sinfonia, também conhecida Sinfonia dos Mil, em que o seu final é o som da redenção em todo o seu esplendor. Mas se, na oitava, o que está em jogo é a alma de um Fausto em seu confronto com a Morte e o demônio, na segunda Mahler quer sentir o poder de ressuscitar depois que a luta o consome por inteiro. “Um grande exemplo para todas as pessoas criativas é Jacó”, afirmava ele em várias entrevistas para explicar sua obra, tão incompreendida aos seus contemporâneos, “que luta com Deus até que Ele o abençoe. Deus tampouco quer conceder-me Sua benção. Somente através das terríveis batalhas que tenho de travar para criar a minha música recebo finalmente a Sua benção”.
Nesse sentido, a música de Mahler é a testemunha (e o resultado) de um embate entre Deus e o homem, que tenta saborear um pouco da Graça que lhe é renegada o tempo todo. O resto da vida de Gustav Mahler tratou de demonstrar tal fatalidade com todas as letras: um casamento tumultuado (com direito a atendimento personalizado de Freud que, explicou, explicou, mas nunca resolveu o problema do casal, colocando toda a culpa em Mahler, como se ele fosse um maníaco compulsivo por perfeição – o que não era nenhuma novidade), a morte de uma filha, Marie, e a descoberta de uma doença rara no coração, que o mataria num sanatório em 1910. Num desses fenômenos de sincronicidade que nem Jung explica, Mahler antecipou as três tragédias que marcariam o fim de sua vida na sexta sinfonia, apelidada de “Trágica”, por ter um dos finais mais sombrios da música orquestral – três bumbos macabros que marcam a derrota do herói mahleriano.
Ainda assim, ele volta – de novo! Na sétima sinfonia e depois na oitava, Mahler reencontra aquilo que já sentira na segunda sinfonia – a emoção indecifrável de vencer a morte com a alma dilacerada, mas intacta. Dessa vez, contudo, é um Mahler diferente, pois a morte suspira em sua boca. A vitória definitiva da redenção da alma com seu Veni Creator Spiritus!, mostra um homem com total domínio de seus meios artísticos, um homem que dominou a sua arte frente ao Deus que o tentava. A partir de agora, o que era exílio se transforma em adeus, e o que era esperança se torna a eternidade – duas realidades que se amalgamam na Das Lied von Der Erde (A Canção da Terra), o ciclo de canções que nem Schubert sonhou fazer; na nona sinfonia, em que a eternidade é conquistada a ferro e fogo, e a décima, inacabada, mas com um adágio tão desesperador, tão mortífero, que não resta nada mais a fazer senão aceitar o fim tal como ele é.
Contudo, é provável que o coração de Mahler estivesse no final de Ressurreição, com seu coro silencioso que sobe aos poucos até a orquestra tomar conta com suas notas épicas, o órgão ocupar as frestas da melodia para não deixar a harmonia fugir de sua intenção redentora, e então, um súbito silêncio, como se a derrota fosse a única verdade absoluta, ecoando os versos de Klopstock – “Oh! acredita, meu coração… não nasceste em vão, não sofreste em vão…”. Mas é apenas um curto repouso antes da ressurreição definitiva – marcada por um espantoso soco orquestral em mi bemol no melhor estilo de Mahler: majestoso, apoteótico, a orquestra e o coro captando as alturas que só a luta e a guerra da vida do espírito nos dão de presente.
Pois, para Mahler, isso era a Graça de Deus: a arte em sua plenitude máxima, com toda a dignidade do sofrimento que lhe foi imposta para confirmar tal obra. Um verdadeiro artista nunca foge da dor: ele a trata como uma boa companheira. A Morte só é vencida depois que o homem a respeita por seus meios pouco comuns, em que ele se verga a um poder maior, um poder que ele sabe existir, mas não pode compreender. Este saber não compreendido é o mistério da Ressurreição, algo que, na verdade, realizamos todo dia, após acordar e ver o primeiro raio de luz. O horror continua a nos perseguir, mas quem disse que ele é eterno? Para muitas pessoas, as sombras podem até ser confortáveis. Para outras que escolheram o desafio de fazer de cada dia uma nova Páscoa, a Ressurreição é a chaga que arde no peito, que faz o sangue ser expelido a cada minuto, mas é a que mantém o espírito afiado, preparado para a morte que não mata, aquela que, através da nossa aparente derrota, está o único triunfo.”
(Martim Vasques da Cunha, A Derrota da Morte)

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