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sexta-feira, 30 de junho de 2023

A crise moderna se chama revolução


“Todas as crises se resumem em uma: a crise do homem. As muitas crises que abalam o mundo hodierno — do Estado, da família, da economia, da cultura, etc. — não constituem senão múltiplos aspectos de uma só crise fundamental, que tem como campo de ação o próprio homem.
Em outros termos, essas crises têm sua raiz nos problemas de alma mais profundos, de onde se estendem - para todos os aspectos da personalidade do homem contemporâneo e todas as suas atividades.
Essa crise é universal. Não há hoje povo que não esteja atingido por ela, em grau maior ou menor. Essa crise é una. Isto é, não se trata de um conjunto de crises que se desenvolvem paralela e autonomamente em cada país, ligadas entre si por algumas analogias mais ou menos irrelevantes.
Essa crise é total. Considerada em dado país, essa crise se desenvolve numa zona de problemas tão profunda, que ela se prolonga ou se desdobra, pela própria ordem das coisas, em todas as potências da alma, em todos os campos da cultura, em todos os domínios, enfim, da ação do homem.
É dominante. Essa crise é como uma rainha a que todas as forças do caos servem como instrumentos eficientes e dóceis. É sucessiva. Essa crise não é um fato espetacular e isolado. Ela constitui, pelo contrário, um processo crítico já cinco vezes secular, um longo sistema de causas e efeitos que, tendo nascido, em momento dado, com grande intensidade, nas zonas mais profundas da alma e da cultura do homem ocidental, vem produzindo, desde o século XV até nossos dias, sucessivas convulsões.
A causa principal de nossa presente situação é impalpável, sutil, penetrante como se fosse uma poderosa e temível radioatividade. Todos lhe sentem os efeitos, mas poucos saberiam dizer-lhe o nome e a essência.
Este inimigo terrível tem um nome: ele se chama Revolução.
Sua causa profunda é uma explosão de orgulho e sensualidade que inspirou, não diríamos um sistema, mas toda uma cadeia de sistemas ideológicos.
Entre as paixões desordenadas, o orgulho e a sensualidade ocupam um lugar proeminente. Eles marcam o utopista com duas notas principais: o desejo de ser supremo em sua esfera, não aceitando sequer um Deus transcendente, e a tendência a uma plena liberdade na satisfação de todos os instintos e apetências desregradas.
A Revolução é a desordem e a ilegitimidade por excelência. Os agentes do caos e da subversão fazem como o cientista, que em vez de agir por si só, estuda e põe em ação as forças, mil vezes mais poderosas, da natureza.
Da larga aceitação dada a estes no mundo inteiro, decorreram as três grandes revoluções da História do Ocidente: a Pseudo-Reforma, a Revolução Francesa e o Comunismo.
O orgulho leva ao ódio a toda superioridade, e, pois, à afirmação de que a desigualdade é em si mesma, em todos os planos, inclusive e principalmente nos planos metafísico e religioso, um mal. É o aspecto igualitário da Revolução.
A sensualidade, de si, tende a derrubar todas as barreiras. Ela não aceita freios e leva à revolta contra toda autoridade e toda lei, seja divina ou humana, eclesiástica ou civil. É o aspecto liberal da Revolução.
Ambos os aspectos, que têm em última análise um caráter metafísico, parecem contraditórios em muitas ocasiões, mas se conciliam na utopia marxista de um paraíso anárquico em que uma humanidade altamente evoluída e “emancipada” de qualquer religião vivesse em ordem profunda sem autoridade política, e em uma liberdade total da qual entretanto não decorresse qualquer desigualdade.
A Pseudo-Reforma foi uma primeira Revolução. Ela implantou o espírito de dúvida, o liberalismo religioso e o igualitarismo eclesiástico, em medida variável aliás nas várias seitas a que deu origem.
Seguiu-se-lhe a Revolução Francesa, que foi o triunfo do igualitarismo em dois campos. No campo religioso, sob a forma do ateísmo, especiosamente rotulado de laicismo. E na esfera política, pela falsa máxima de que toda a desigualdade é uma injustiça, toda autoridade um perigo, e a liberdade o bem supremo.
O Comunismo é a transposição destas máximas para o campo social e econômico.”
(Plínio Corrêa de Oliveira, Revolução e Contra-Revolução)

domingo, 30 de maio de 2021

Paradoxos dos “Direitos do Homem”


“Afastando estes tópicos, perguntemos porque é que o homem possui direitos inalienáveis enquanto homem, unicamente por ser homem?
A resposta assemelha-se simples. Exactamente porque o homem é um sujeito com consciência de si e, sobretudo, com uma natureza racional.
Simplesmente, uma dificuldade surge aqui. Se por natureza se entende essência, como o faz S. Tomás de Aquino [cf. Suma Teológica], torna-se patente que a essência do homem não é a racionalidade. Porventura será o homem só razão? Se assim fosse, o homem não poderia enganar-se, nem praticar o mal. Tudo quanto o homem fizesse seria verdadeiro e, então, seria verdade que o homem não tem dignidade nenhuma e meritório tratá-lo como um desvalor sem direitos.
Mas, observar-se-á, o homem não será só razão, por certo. No entanto, para além de Deus e dos anjos, é o único ente dotado de razão. E isso não bastará para lhe dar dignidade e direitos intrínsecos? Obviamente não, porque a razão é apenas um atributo do homem entre outros, existindo, ao lado dela, a capacidade de errar, de se abandonar ao que é vil e extremamente mesquinho, de agir irracionalmente, em suma. Onde estarão, nessa altura, a sua dignidade e direitos intrínsecos?
Sublinhar-se-á, a seguir, que é ele o único ente (além dos anjos e Deus) que pode praticar o Bem, coisa que não está na alçada dos gatinhos ou das pedras. Mas em contrapartida, também pode praticar infâmias, o que não acontece com os gatinhos ou as pedras.
Sem dúvida o homem, ontologicamente, é diferente dos animais e dos minerais; todavia, tal situação não equivale a ter dignidade e direitos enquanto homem, porque dignidade e direitos são categorias éticas, que não se confundem tout court com as categorias ontológicas.
Anotar-se-á que os homens, e apenas os homens, podem conseguir a Salvação e atingir a beatitude? Bem! Já que estamos, agora, numa perspectiva teológica, replicar-se-á que os homens também podem ir para o Inferno, que é o contrário da beatitude.
De resto, se há homens perfeita e cabalmente indignos, como nos dizem e repetem, em especial a propósito da guerra de 1939-1945, de que forma sustentar que o homem tem uma dignidade e direitos intrínsecos só por ser homem?
E examinemos outro problema. Qual o limite dos direitos inalienáveis de cada homem, uma vez que, tratando-se de elementos de uma multiplicidade, – cada homem – não se concebe como ilimitado?
Se utilizarmos um critério objectivo, superior ao próprio homem, para fixação daquele limite, estamos perante uma ambiguidade patente. Os direitos do homem serão delimitados por algo de extrínseco ao homem que, porventura, praticamente os reduzirá a nada.
Os direitos do homem, portanto, só poderão ser fixados pelos próprios homens. Mas isso não levantará conflitos entre estes? Talvez se responda que não, porque os homens, sendo finitos por definição, têm limites que não ultrapassam.
Simplesmente, até onde vão esses limites? A sua simples existência não impede eventuais conflitos. Um ente finito pode, indiscutivelmente, visar a eliminação de outro ente finito sem perder a sua finitude.
É preciso encontrar um critério de delimitação recíproca dos direitos do homem que não seja função de nada de exterior ao próprio homem. O problema parece difícil de resolver, mas em realidade não o é.
Basta considerar que cada um estabelecerá os direitos que lhe aprouver, desde que não viole os iguais direitos dos outros.
A fórmula, aliás, é antiga. Encontra-se no artigo IV da Déclaration des droits de l'homme et du citoyen, de 1789. "L'exercice des droits naturels de chaque homme n'a de bornes que celles qui assurent aux autres membres de la société la jouissance de ces mêmes droits".
À primeira vista, isto parece o mais claro possível. Os direitos do homem põem-se a si mesmos, juntamente com os seus próprios limites. Cada homem tem todos os direitos concebíveis, só não deve ir além do ponto em que se situam os direitos dos restantes.
Estamos perante uma concepção que representa a mais sólida razoabilidade e que, sem recorrer a nada de extrínseco, consegue pôr as barreiras necessárias aos direitos de cada um.
Contudo de Cila passamos a Caríbdis.
Com efeito, se o direito de A só é limitado pelo direito de B e o direito de B só é limitado pelo direito de A, para conhecermos até onde vai o direito de A – isto é, para conhecermos o direito de A – temos de conhecer, previamente, até onde vai o direito de B – isto é, temos de conhecer o direito de B. Mas, em contrapartida, para conhecermos o direito de B, temos de conhecer já o direito de A, que vimos depender do conhecimento do direito de B e assim sucessivamente.
Estamos num círculo vicioso ou dialelo nítido.
A fim de se saber até onde pode ir a vontade de A, é preciso saber até onde pode ir a vontade de B, e para saber até onde pode ir a vontade de B, é preciso saber até onde pode ir a vontade de A.
Anotar-se-á que isso é plenamente descabido. Basta esclarecer, inicialmente, o direito de A e de B, cada um de per si.
Todavia, estabelecer o direito de A é defini-lo, e definir, consoante a palavra indica, é marcar os fins, os contornos, logo, os limites. Não é possível uma definição anterior à delimitação, acontecendo que, neste caso, a única regra que se apresenta para a delimitação é uma devolução recíproca.
Não tem, pois, consistência a observação que nos fizeram e o círculo vicioso mantém-se.”
(António José de Brito, Alguns Paradoxos das Doutrinas sobre os Direitos dos Homens)

http://accao-integral.blogspot.com.br

terça-feira, 17 de abril de 2018

Um jogo de cartas marcadas


"Aqueles que porventura estejam bravos com os discursos caricatos, tanto da direita quanto da esquerda, precisam aprender o básico: ambas as orientações são maçônicas e foram adotadas durante a Revolução Francesa. Por falar em Revolução Francesa, o que vocês hoje conhecem por comunismo não foi arquitetado por Marx, e sim por Engels a mando da Franco-Maçonaria Templária. Surpresos? Pois não deveriam estar.
Agora imaginem um esquerdista, cujas sinapses cerebrais foram demolidas por técnicas de controle mental (leiam Maquiavel Pedagogo) que suplantam a doutrinação ideológica em muitos níveis, descendo até o limbo ocultista e metafísico para só então desconstruir-se e entender que ele é mais um operário do império da mentira. Difícil, não? Porém o mesmo também ocorre com a direita amestrada, seja ela conservadora tosca ou liberal economicista.
Enquanto os insatisfeitos não pescarem os cacoetes "ideológicos" que pendem para um jogo de cartas marcadas, ficarão eternamente insatisfeitos com os rumos da direita e da esquerda, reclamando que a primeira virou a segunda e que a segunda virou a primeira.
É preciso sair das águas permitidas e desbravar o além-mar.”
(David Amato, Feministas, Guerra Cultural, Família e Discursos: Notas)

http://www.midiasemmascara.org

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Os princípios de 1789

“Muitos falam dos princípios de 1789, e quase ninguém sabe em que consistem. Não é estranho; as palavras com que os formularam são tão clássicas e indefinidas, que cada qual as interpreta a seu gosto. As pessoas honradas de curto alcance não vêem neles nada de precisamente mal; os demagogos, por sua vez, encontram neles o que lhes convém. Existe a favor desses princípios estranha emulação de carinho; estão escritos em vinte bandeiras rivais; cada qual os defende contra todos, e todos dizem que os demais os falseiam, ou os comprometem, ou fazem-lhes traição. Procuremos aqui, à luz indefectível da fé católica, não falseá-los, nem comprometê-los, nem fazer-lhes traição, senão compreendê-los bem, medir suas profundidades, e descobrir em seus recônditos mais ocultos a velha serpente, que é a alma verdadeira de tais princípios. Não exageraremos, mas procuraremos examiná-los inteiramente.
Contemplando as obras desses a quem se chama com orgulho de pais da liberdade e fundadores da sociedade moderna, veremos, segundo a expressão de Bossuet, “se aqueles que se nos apresentam como reformadores do gênero humano aumentaram ou diminuíram seus males; se é preciso vê-los como reformadores que o corrigem, ou como flagelos enviados por Deus para castigá-lo.”
A Assembléia constituinte, que em 1789 destruiu, pelo direito do mais forte, a antiga constituição da Igreja na França; que em 4 de agosto suprimiu os justos tributos com que subsistia; que em 27 de setembro despojou as Igrejas de seus vasos sagrados; que em 18 de outubro anulou as Ordens religiosas; e que, por fim, em 2 de novembro roubou as propriedades eclesiásticas, preparando assim o ato herético e cismático a que se deu o nome de Constituição civil do clero e foi promulgada no ano seguinte; essa mesma Assembléia formulou em dezessete artigos o que se chama a declaração dos direitos do homem, e que melhor deveria ter-se chamado a supressão dos direitos de Deus. Esses artigos encerram os princípios sociais que se fizeram célebres sob o nome de princípios de 1789.
Alguns católicos, com o louvável propósito de ganhar para a Igreja as simpatias das sociedades modernas, procuraram demonstrar, não sem algum trabalho, que os princípios daquela célebre declaração não estavam em oposição com a fé nem com os direitos da Igreja. Quiçá pudesse defender-se essa tese, se nessa questão, essencialmente prática, fosse dado ater-se rigorosamente ao valor gramatical das palavras, delas abstraindo o espírito que as anima, que as ditou, que as aplica, e que expressa seu genuíno sentido. Por desgraça os princípios de 1789 não são letra morta: manifestaram-se por fato, leis e crimes enormes que não podem deixar dúvida de seu verdadeiro caráter. A Revolução, a Revolução anticristã os proclama como seus princípios próprios, atribuindo-lhes a glória de suas pretensas façanhas; e os revolucionários não deixam de invocá-los contra a Igreja.
Como, pois, esses famosos princípios não horrorizam os homens honrados? É que neles se encontra a verdade habilmente confundida com a mentira, e esta passa agora, como sempre, à sombra daquela.
Com efeito, vários dos princípios de 1789 são verdades antigas do direito francês ou do direito político cristão, que os abusos do cesarismo galicano haviam relegado ao esquecimento e que a pueril ignorância dos constituintes fez tomar por um descobrimento admirável. Outros são verdades de sentido comum, que ninguém se atreveria hoje em dia a formular seriamente; mas todas essas verdades estão dominadas por um princípio, que dá o verdadeiro caráter a essa declaração, que é o princípio revolucionário da independência absoluta da sociedade: princípio que rejeita a seguir toda direção cristã, que quer que o homem só dependa de si mesmo e não tenha mais leis que sua vontade, sem ocupar-se do que Deus ensina e prescreve por meio de sua Igreja. A vontade do povo soberano substituindo a lei do Deus soberano; a lei humana pisoteando a verdade revelada; o direito puramente natural fazendo abstração do direito católico; em uma palavra, substituir os direitos eternos de Jesus Cristo por esses pretensos direitos do homem: tal é a declaração de 1789.
Até então se havia reconhecido a Igreja como o órgão de Deus em relação às sociedades e aos indivíduos; e se bem é verdade que de alguns séculos para cá não se queria reconhecer na prática esse direito de suprema direção moral, nunca chegou a ousadia até esse ponto de negá-lo formalmente.
Assim, pois, os princípios de 1789, considerados isoladamente distam muito de ser inteiramente revolucionários; mas em seu conjunto, e sobretudo na idéia que os domina, constituem uma audaz rebeldia do homem contra Deus, e um rompimento sacrílego entre a sociedade e nosso Senhor Jesus Cristo, Rei dos povos e Rei dos reis. Nos princípios de 1789, o que vituperamos é esse elemento de rebelião anticristã; longe de repudiá-las, defendemos como nossas as grandes máximas de verdadeira liberdade, de verdadeira igualdade e fraternidade universal, que a Revolução transtorna e pretende haver dado ao mundo.
Em consciência, não pode um católico admitir todos os princípios de 1789. Menos ainda lhe é permitido inspirar-se no espírito que os ditou, que os interpreta e os aplica desde seu aparecimento no mundo.”
(Mons. Louis-Gaston de Ségur, La Révolution)

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Entrevista com Philippe Pichot-Bravard (II)

“Ademais, os governos sucessivos desmantelaram, principalmente depois de 1992, o ambiente no qual se exerciam, desde o terceiro quarto do século XIX, as liberdades republicanas. Maëstricht, Amsterdã e Lisboa privaram o país do essencial de sua soberania, reduzindo como inexorável a margem de manobra do governo; o qüinqüênio matou a eleição legislativa que não é mais, desde 2002, do que um escrutínio sem interesse e sem debate confirmando o resultado das eleições presidenciais; o novo modo de escrutínio das eleições regionais, adotado em 2003, confiscou a representação nos conselhos regionais em proveito dos dois maiores currais presidenciais; as leis sobre a paridade entravaram a livre escolha dos eleitores; a implementação da intercomunidade privou os conselhos municipais eleitos de uma parte importante de suas prerrogativas em proveito de uma organização complexa e opaca; enfim, os eleitores foram pouco a pouco despojados da liberdade de escolher seus conselheiros municipais pela supressão progressiva do voto preferencial em proveito do voto bloqueado, inicialmente nas cidades com mais de trinta mil habitantes (1977), depois nas cidades com mais de três mil e quinhentos habitantes (1983) e logo, parece, nas comunas com mais de mil habitantes.
Todas estas mudanças minaram a República. O sistema eleitoral está agora completamente bloqueado por uma oligarquia constituída por grandes partidos, por círculos de influência, grupos de interesse, pela televisão, grandes jornais, e aqueles que, os financiando, lhes dão instruções. A retração crescente, desde a metade dos anos 90, do círculo das opiniões permitidas e o empreendimento, no debate público, de um pensamento oficial servido por uma língua insidiosa e conceitual, apanágio de uma oligarquia ideológica, desempenha aqui um papel muito importante. A maioria dos franceses se sente hoje excluída do jogo político, o que seca a fonte de sua legitimidade.
Ademais, o desprezo que esta oligarquia manifesta com respeito à população é cada vez mais manifesto, como demonstrou a questão do Sindicado da Magistratura ou ainda a saída reservada à petição enviada ao CESE. Este desprezo contribui ao descontentamento de uma parte importante da população, e, em particular, da parte da população que é habitualmente a mais disciplinada, a mais trabalhadora, a mais respeitosa das regras: aquela que se manifestou em 24 de março e em 26 de maio últimos.
Sem dúvida, quando olhamos de perto, o sistema representativo instituído a partir de 1789 sempre foi um edifício de estuque construído de forma ilusória. A confusão mantida entre a afirmação do caráter democrático das instituições e sua realidade representativa não é o menor destes artifícios. As aparências, cuidadosamente salvaguardadas, garantiram, durante muito tempo, a perenidade do sistema. Tudo ocorre hoje como se, o estuque se despedaçando, a realidade aparecesse aos olhos de um grande número de nossos compatriotas, revelando as numerosas imposturas de um sistema que pretende ser democrático enquanto que ele não o é, e que ele nunca o foi, tendo sempre sido representativo, ou seja, por essência, oligárquico; um sistema que assegura, concretamente, muito menos liberdades que ele promete. Alude-se então, cada vez mais, à convicção de que os "valores da República" não têm talvez a consistência que lhe emprestaram, que eles seriam, no melhor, conceitos abstratos sem alcance real concreto, no pior, um instrumento de manipulação da opinião às virtudes narcóticas. Esta convicção alimenta a crise de regime que conhecemos hoje.
Todavia, a existência de uma crise de regime não leva necessariamente à queda deste. Ainda que enfraquecido, o regime conserva a capacidade de se defender, especialmente mudando, não fosse isso apenas aparência, o que deve ser mudado para lhe permitir sobreviver. Nossa história constitucional, e especialmente as mudanças de regime ocorridas em 1789, em 1792, em 1799, em 1814, em 1815, em 1830, em 1848, em 1851 ou em 1958, nos mostram, ademais, que um regime conserva sempre esta capacidade contanto ele não seja abandonado por uma parte, ao menos, daqueles que têm por missão defendê-lo.
Todas as vezes que a República se sentiu ameaçada, ela soube se defender energicamente, não hesitando em afastar a aplicação das regras jurídicas, em desviar ou em desprezar suas próprias leis para reprimir a oposição pela qual ela se sentia ameaçada, mesmo quando esta se expressava pacificamente. A violência, o assédio administrativo e a perseguição fiscal foram os meios mais correntes. Experimentamos atualmente disso, no mesmo instante em que vários membros do governo não hesitam em renovar publicamente, com os grandes ancestrais de 1793, em se reapropriar de seu projeto totalitário de regeneração do homem. Podemos temer, a este propósito, que a repressão se acentue nos próximos meses, visando mais diretamente os movimentos de juventude, as escolas livres e mesmo, quem sabe, algumas congregações religiosas. A batalha apenas começou. E esta batalha é, a princípio, a do Direito e da Justiça contra a arbitrariedade do poder.
Corsaire: Depois de ter evocado o direito natural e a filosofia jurídica, examinemos mais de perto o sistema normativo atual, e, especialmente, as normas constitucionais, situadas no topo da pirâmide de Kelsen. Como o senhor analisa o cheque em branco dado pelo Conselho constitucional à lei de desnaturalização do casamento? Temos de ver aí uma decisão política? A solução seria inscrever a família tradicional no centro de nossa Constituição?
Prof. Pichot-Bravard: A existência de um conselho constitucional é em si necessária ao equilíbrio das instituições. Sua criação, em 1958, foi um dos aspectos mais interessantes da Constituição da Vª República. A extensão jurisprudencial de seu controle, em 1971, no "bloco de constitucionalidade" era necessária. A extensão de sua consulta, pelas reformas de 1974 e de 2008, foi algo excelente.
Contudo, esse conselho apresenta ainda dois defeitos maiores, que não deixaram de macular a decisão que eles deram a propósito da lei Taubira:
De um lado, ele é o guardião de um "bloco de constitucionalidade" constituído principalmente da constituição de 1958, do preâmbulo da constituição de 1945 e da declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789. Ora, nenhum destes textos faz referência aos princípios do direito natural e à necessária submissão do direito positivo a este direito natural.
Portanto, é urgente remediar esta lacuna modificando o preâmbulo da Constituição, para integrar nela o reconhecimento da autoridade do direito natural.
Fazendo referência a uma tradição jurídica ocidental plurimilenar, seria necessário, levando em conta as mentalidades atuais, precisar as implicações concretas deste direito natural, a saber, o respeito de toda a vida humana, desde a concepção até a morte natural, o respeito da dignidade e da liberdade individual das pessoas, o reconhecimento da família que se fundamenta sobre o casamento entre um homem e uma mulher, o direito dos pais de escolher a educação de seus filhos, o direito de propriedade, o reino da justiça que consiste em dar a cada um a parte que lhe convém, a justa parte, especialmente nas relações de trabalho, a existência de hierarquias sociais implicando para aqueles que assumem responsabilidades um aumento de deveres.
Por outro lado, o conselho constitucional é uma jurisdição constituída de personalidades políticas nomeadas por três personalidades políticas, o presidente da República, o presidente do Senado e o presidente da Assembléia, elas mesmas tributárias das forças que lhes permitiram subir a estas funções elevadas. Se quisermos que o Conselho constitucional cumpra de forma conveniente suas funções, é preciso que ele seja composto de personalidades independentes designadas por uma autoridade independente.
Corsaire: Enfim, o senhor mantém um jornal livre na Rádio Courtoisie. O senhor compartilha de nossa convicção, segundo a qual a vitória de amanhã se prepara pela reinformação e a reconquista intelectual?
Prof. Pichot-Bravard: A ação política deve ser alimentada por uma vida espiritual exigente e por um trabalho regular de formação intelectual e cultural.
Nossos adversários revolucionários, e especialmente marxistas, ou marxizantes, entenderam perfeitamente o papel essencial da cultura no combate político. A grande falta dos liberais foi abandonar a cultura aos seus adversários para se concentrar sobre a ação econômica.
A reconquista política implica um empreendimento de reconquista cultural, como ilustra Phillippe de Villiers na Vendéia, o único departamento do Oeste da França onde a direita reforçou suas posições entre 1990 e 2010. Ademais, isto abre àqueles que desejam se engajar na política um campo de ação muito mais vasto do que eles imaginam. A ação política não se resume à vida eleitoral, que pode muito bem ser apenas uma perda de tempo. Ela pode consistir em organizar um ciclo de formação, ou simplesmente em participar dele. Ela pode consistir em animar um programa de rádio, uma revista ou um site, como vocês fazem.
Ela pode consistir em restaurar e realçar uma capela ou um monumento ameaçado de ruínas, como Reynadl Sécher em La Chappelle Basse-Mer.
Ela pode consistir em criar, ou em manter uma escola realmente livre. Ela pode consistir em animar uma associação ou um movimento de jovens. Ela pode consistir em participar de manifestações, como fazem hoje os "Hommen".
Há muitos modos de combater. Nosso mundo contemporâneo reduz a ação política à disputa partidária. É preciso evitar cair nesta armadilha. Recordemos isso: a política consiste no serviço do bem comum. Sem dúvida esse serviço implica, em um momento ou outro, na conquista do poder, mas esta conquista, para ser efetiva, eficaz e durável, exige inicialmente uma conquista das inteligências. Ela exige transmitir valores e conhecimentos, batalhar sem concessão contra a "novilíngua" do pensamento oficial, contra as mentiras da desinformação, reacostumar os ouvidos de nossos compatriotas a ouvir um discurso tradicional a fim de levá-los, inicialmente, a considerar que este discurso faz parte das escolhas possíveis, antes de convencê-los que esta escolha é a melhor para a restauração da França.”

http://catolicosribeiraoarteehistoria.blogspot.com.br

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Entrevista com Philippe Pichot-Bravard (I)

Entrevista com Philippe Pichot-Bravard, historiador político e professor do Instituto católico de estudos superiores, concedida ao Corsaire, administrador do Rouge et Noir, com tradução do Annales Historiae.
Corsaire: Senhor, agradecemos-lhe calorosamente por ter aceitado nosso convite. Antes de tudo, o senhor pode se apresentar rapidamente aos nossos leitores que não o conhecem ainda?
Prof. Pichot-Bravard: Com trinta e nove anos, sou ao mesmo tempo universitário e escritor. Ensino a história das instituições e a história das idéias políticas. Ensino também a história da Igreja, especialmente no seminário de Gricigliano (N.d.t.: seminário do Instituto do Cristo-Rei Soberano Sacerdote). Consagrei minha tese de direito à gênese do Estado de Direito na França; intitulada "Conservar a ordem constitucional (XVIº-XIXº século)", esta tese foi publicada nas edições LGDJ em julho de 2011. Também consagrei um estudo aos católicos franceses da metade do século XIX, que foi publicado em 2008 pela Artège ("O Papa ou o imperador; os católicos e Napoleão III").
Ao longo destes últimos meses, redigi, no Homme Nouveau, uma série de onze artigos sobre a história da noção de direito natural. Devo publicar na volta às aulas, pela Via Romana, uma "História da Revolução Francesa".
Enfim, dirijo já há vários anos um jornal livre na Luz da Esperança, o programa de domingo da Rádio Courtoisie.
Corsaire: A lei de desnaturalização do casamento lançou nas ruas mais de um milhão de opositores em dois momentos, e o movimento de contestação não cessa de fazer ouvir sua voz, ao passo que a lei foi promulgada e que pares de mesmo sexo se casaram. Assistimos a um deslocamento entre o direito positivo e o direito natural, entre legalidade e legitimidade, entre Creonte e Antígona. O senhor é historiador do direito e especialista em ciências políticas: tal deslocamento é freqüente na História jurídica de nosso país? Este é um defeito inevitável e próprio à República e à filosofia das Luzes?
Prof. Pichot-Bravard: Desde a Antiguidade, duas concepções de direito se enfrentam. Uns definem o direito como a expressão da vontade daqueles que exercem a soberania. Outros consideram que o direito é "aquilo que é justo", que ele é uma arte, a arte de atribuir a cada um a parte que lhe convém (Ulpiano), a arte do que é "bom e equitativo" (Celso). Estes últimos estimam que as ordens daqueles que exercem o poder, que as leis só são legítimas com a condição de serem justas, com a condição de respeitaram princípios de direito que escapam à vontade dos homens e que são o reflexo de uma ordem natural objetiva. Aristóteles distinguiu assim a justiça natural e a justiça positiva. A filosofia estoicista afirmou a existência de uma lei natural. Inspirado ao mesmo tempo pela filosofia aristotélica e pela filosofia estoicista, Cícero deu desta lei natural uma definição precisa que alimentou ulteriormente a reflexão dos juristas romanos ou romanistas. Por seu lado, Santo Agostinho definiu a lei como o ato permanente de fazer reinar a justiça, estimando que uma lei injusta não é uma lei e que ninguém está obrigado a obedecê-la, convicção que alimentou profundamente as mentalidades medievais, dominando os espíritos até o século XVII ao menos.
Na Antiga França existia um verdadeiro "Estado de Justiça" que permitia, para além da inevitável imperfeição das instituições humanas, a submissão do Soberano ao Direito.
Este "Estado de Justiça" era alimentado:
1- Pela convicção de que a primeira missão do rei, aquela que fundamenta sua legitimidade, é fazer reinar a Justiça em seu reino, o que implica, sobretudo, que ele se submeta às leis fundamentais e ao direito natural;
2 - Pela reflexão dos canonistas: estes definiram para a Igreja conceitos jurídicos que os legistas do reino da França retomaram em seguida e aplicaram à Coisa pública: por exemplo, a idéia de que existe um estatuto geral da Igreja, corpus de regras que se impõe ao papa, idéia retomada por João de Terrevermeille quando ele afirmou, em 1419, a existência de um Estatuto do reino constituído de regras superiores à vontade do Rei e o impedindo, concretamente, de dispor da Coroa e de alienar o domínio da Coroa;
3 - Por certas máximas de direito romano, sobretudo a constituição Digna Vox, que data de 429;
4 - Pela retórica das Cortes soberanas, em particular a do Parlamento de Paris, que recebeu do rei, desde a primeira metade do século XIV, a missão de verificar, quando do registro das cartas do rei, se estas não compreendiam disposições contrárias à justiça e à reta razão, e, que tinha, neste caso, o dever de atrair a atenção do monarca lhe dirigindo "humilíssimas admoestações". Servindo-se deste dever de conselho, os Parlamentos se afirmaram, a partir do fim do século XV, como o "Senado do reino", verificando se as leis do rei eram conformes às leis do reino. Eis a origem longínqua de nosso controle constitucional das leis.
A consistência deste "Estado de Justiça", e a preocupação dos magistrados em fazer reinar a equidade, assegurava o respeito pelo direito natural. A este respeito, Luís XV, quando da reforma do chanceler Maupeou, afirma que ele está "na afortunada impotência" de atentar contra a vida, a honra e a propriedade de seus súditos.
O direito da família, casamento e filiação, escapava quase completamente ao Estado, dependente do direito canônico. Contudo, a partir da metade do século XVI, com o poder do Estado afundando, o governo monárquico, sob Henrique II, Henrique III e Luís XIII, manifestou a vontade de intervir neste domínio, a fim de fazer do consentimento do pai de família uma condição de validade do casamento, o que a Igreja não exige. Recusando ceder às exigências francesas, o concílio de Trento recordou a este propósito que o casamento se fundamentava sobre o livre consentimento dos esposos. Os magistrados do Parlamento contornaram então a oposição da Igreja fazendo do consentimento do pai de família a condição de validade do contrato de casamento que deveria preceder o sacramento.
Todavia, a superioridade do direito natural, recordada pela doutrina unânime, é respeitada até 1789. A declaração dos direitos do homem e do cidadão marca realmente uma ruptura. Texto de compromisso, a declaração está marcada por uma tensão entre a influência de Locke (artigo dois) e a de Rousseau (artigo seis). No artigo três, a declaração dos direitos proclama o princípio da soberania nacional.
Esta afirmação marcaria uma inversão completa da ordem do mundo: o poder não vinha mais do alto, mas de baixo. Desde então, o soberano estava livre do respeito de uma ordem jurídica superior, exterior à sua vontade. A definição da lei se encontrou radicalmente transtornada. Segundo o artigo seis, "a lei é a expressão da vontade geral". A lei não se definia mais em função de sua finalidade, mas em função de sua origem. A lei não é mais o ato que participa no reino da justiça, mas o ato que exprime a vontade do soberano. Havia aí uma tensão evidente entre a afirmação da existência de "direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem" e o legicentrismo contido pelo artigo seis. A ausência de procedimento jurisdicional de controle da constituição das leis impediu de verificar se as vontades do legislador eram efetivamente respeitosas destes "direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem".
Esta ausência era voluntária, como demonstra o debate de 8 de agosto de 1791. Os deputados não queriam que um órgão conservador da ordem constitucional viesse fazer obstáculo à sua vontade soberana.
Corsaire: Como podemos conciliar hoje o respeito pelas leis francesas e a fidelidade aos nossos valores católicos e à nossa Fé? Estamos fadados à dissidência?
Prof. Pichot-Bravard: Esta questão é essencial. Ela foi levantada desde os primórdios do cristianismo. De um lado, todo poder vindo de Deus, como ensina São Paulo, o cristão deve à autoridade legítima uma obediência de princípio. Do outro, quando o detentor do poder dá uma ordem contrária aos mandamentos de Deus, o cristão tem o dever de obedecer "antes a Deus que aos homens", segundo a expressão utilizada pelo próprio São Pedro. Deus está, com efeito, acima do príncipe. "Não terias nenhum poder sobre mim se ele não te tivesse sido dado do alto", explica Cristo a Pôncio Pilatos.
O cristão está no Mundo, mas ele não pertence ao Mundo. Ele é, para retomar a famosa expressão de Santo Agostinho, cidadão da cidade de Deus. Vivendo no Mundo, ele deve testemunhar a Verdade de Cristo e trabalhar para estabelecer o reinado social de Cristo, o qual consiste principalmente no respeito ao direito natural. Não pertencendo ao Mundo, ele se encontra necessariamente, perante o Estado e suas exigências, em uma situação de dissidência potencial, que se torna, pois, real, quando esse Estado não somente não é um Estado cristão, mas manifesta uma hostilidade mais ou menos aberta relativa aos princípios do cristianismo, o que é o caso atualmente.
Guiado pela vontade de proceder a uma regeneração ideológica da sociedade e do homem, como recorda Vincent Peillon, o Estado pós-revolucionário tem a pretensão de se apoderar de todos os aspectos da vida humana, aí compreendidos os mais íntimos. Com a lei Taubira, e a ideologia do gênero que a alimenta, o Estado pretende mudar a definição das coisas. Ele pretende impor a idéia de que as coisas não são o que elas são, mas o que eles dizem que elas são. Isso é extremante grave. Em face de tal pretensão, que Pio X, visando então o fascismo italiano, tinha condenado empregando o termo de "estatolatria", é do dever dos católicos, como exortou o bem-aventurado João Paulo II e o bem-amado papa Bento XVI, colocar tudo em obra para defender "a cultura da vida" (João Paulo II). É de seu dever nunca transigir com "os princípios não negociáveis", a saber, o respeito pela vida, a família fundamentada sobre o casamento tradicional e a liberdade dos pais de educar seus filhos (Bento XVI). Isso implica, especialmente, continuar a se manifestar contra as leis promulgadas a fim de denunciar com isso a injustiça e preparar sua revogação, como nos convidava no mês de junho passado o cardeal Burke, prefeito do supremo tribunal da Assinatura apostólica, enquanto ele saía de uma entrevista com o papa Francisco I.
Corsaire: Voto a mão levantada na Assembléia, tramitação legislativa de uma rapidez desconcertante, desprezo pelas petições dirigidas ao CESE, tirania midiática, ataque com gás contra famílias e detenções massivas de manifestantes pacíficos: a conta é salgada e o país real brame. "A República governa mal, mas ela se defende bem". O regime republicano está no fim?
Prof. Pichot-Bravard: A Vª República está efetivamente muito enfraquecida. Várias razões podem explicar isso.
A função presidencial, que é seu pilar principal, perdeu muito de seu prestígio desde metade dos anos 1990. Os três últimos presidentes se caracterizaram por um desvio crescente entre as exigências da função e o comportamento daquele que a assume.”

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Andreas Hofer

“O Tirol, essa pitoresca província austríaca no centro da cadeia dos Alpes, no início do século XIX limitava-se a oeste com a Suíça e o Vorarlberg austríaco; ao norte, com a Baviera; e ao sul, com a Itália. Região montanhosa — dezenas de seus picos se elevam a mais de três mil metros de altitude — suas comunicações se faziam pelos vales, principalmente os dos rios Inn e Adige. Constituía uma província do Sacro Império Romano Alemão.
Por sua altitude, a neve cobria o Tirol durante seis meses. Sendo suas vilas distantes umas das outras, era normal que os entroncamentos das estradas fossem salpicados de albergues, não só onde os viajantes pudessem passar a noite, mas que servissem também de ponto de encontro para o povinho em busca de notícias.
Foi num desses albergues, o de Sandhof, que nasceu Andreas Nikolaus Hofer à meia-noite do dia 22 de novembro de 1767. Seu pai, Josef Hofer, atingira já os quarenta e três anos, e sua mãe, Maria Hofer, tinha pouco menos e já havia dado à luz três meninas. Ela morreria apenas três anos depois. Josef contrairá segundas núpcias, mas morrerá em 1774, deixando Andreas, com apenas sete anos de idade, duplamente órfão.
O menino foi criado pela irmã mais velha e o cunhado, que tomaram a direção do albergue que desde o século XVII pertencia à família. Formado no cadinho das tribulações, Andreas habituou-se a resolver por si só seus problemas, o que lhe deu uma precoce maturidade.
Nessa região extremamente religiosa, Andreas aprendeu em casa e na igreja os fundamentos da Religião católica; uma fé viva e profunda piedade marcarão seu futuro. Na escola comunal, instituída pela imperatriz Maria Teresa anos antes, ele aprendeu a ler, escrever e contar.
O “General Barbone”, presença marcante no Tirol
Apenas entrado na adolescência, Andreas deixou o lar para ir ao extremo sul do Tirol trabalhar com alberguistas e comerciantes de vinho. Nessa área italiana da província, aprendeu com facilidade a língua local, falando-a fluentemente.
Aos 20 anos de idade, voltou para Sandhof e tomou a direção do albergue familiar; a irmã e cunhado instalaram-se em outra província.
O jovem e esforçado alberguista, para liquidar as dívidas pendentes do estabelecimento, resolveu acrescentar a ele o comércio de vinho, licores e cavalos.
No ano seguinte, em 21 de julho de 1789, com 21 anos de idade, Andreas contraiu matrimônio com Anna Ladurner. Nascerão dessa união seis meninas (das quais duas morrerão cedo) e um menino.
Andreas era então, por sua maturidade e determinação, um homem feito. Seu porte era mediano, largo de espáduas, de uma força física admirável. Tinha o rosto arredondado, pequenos olhos castanhos e cabelos pretos. Mas o que destacava mais sua presença era uma abundante e prestigiosa barba negra, que mais tarde fará com que o chamem de “General Barbone”. Andreas era jovial, afável, sempre contente, e se comprazia em conversar. Em breve ele se tornou uma das figuras mais populares no sul do Tirol.
Reação católica contra despotismo revolucionário de José II
O Imperador José II, imbuído das idéias revolucionárias da época, sancionou várias leis de caráter igualitário e totalitário, as quais visavam nivelar as autoridades locais segundo um modelo administrativo uniforme, com funcionários diretamente ligados a Viena. Isso era muito mal-visto pelo conservador Tirol. Mas foram sobretudo suas medidas em relação à Igreja católica que mais violentamente repercutiram na região. O monarca dissolveu conventos das ordens contemplativas, instituiu um seminário único em Innsbruck, capital do Tirol, dotado de professores adeptos das idéias novas, e chegou a suspender as peregrinações e as procissões seculares, até decretar quantas velas se podiam acender nas igrejas, quais preces públicas estavam autorizadas e quantas badaladas podiam dar os sinos paroquiais durante o dia.
Os tiroleses eram profundamente católicos. Em toda parte erigiam oratórios e calvários. Passando diante deles, o viandante persignava-se. Se estava com tempo, ajoelhava-se e rezava o terço. Encontrando um conhecido, saudava-o com o tradicional “Grüs Gott” (Deus vos abençoe). Aos domingos toda a aldeia assistia devotamente, de joelhos, ao santo Sacrifício da Missa. E à tarde, participava das Vésperas ou de alguma procissão.
Isso explica a reação generalizada da província contra as reformas do Imperador José II: “O Tirol entrou em resistência aberta. As práticas piedosas proibidas foram mantidas, a despeito da lei. Os editos imperiais afixados nos povoados foram arrancados. No púlpito os padres tronavam contra o Imperador, invocando a cólera do Céu sobre ele”.
Não é pois de se admirar que também, quando as tropas revolucionárias francesas invadiram a Áustria, os tiroleses considerassem Napoleão como o Anticristo, por ter prendido o Papa.
Tirol, profundamente vinculado à Casa d´Áustria
Em agosto de 1805, na guerra da coalizão contra a França, o Arquiduque João, de 23 anos, foi nomeado comandante-em-chefe das forças imperiais na região dos Alpes. A estima entre o príncipe e o povo tirolês foi recíproca, e deveria durar até mesmo na derrota.
No início de novembro desse mesmo ano, massacrando uma guarnição tirolesa em Scharnitz, o general napoleônico Ney penetrou em Innsbruck. No fim desse mês, os franceses foram substituídos pelos bávaros. E no dia 26 de dezembro desse ano a Áustria assinava a paz. No acordo estabelecido nessa ocasião, o Tirol ficaria pertencendo à Baviera, se bem que “com os mesmos títulos, direitos e prerrogativas que ele possuía sob Sua Majestade, o Imperador da Áustria ou os príncipes de sua Casa, e não de outro modo”.
Apesar de serem vizinhos, de terem uma língua comum e a mesma Religião, tiroleses e bávaros não se estimavam. Imbuído dos princípios da Revolução Francesa e pertencendo à franco-maçonaria, o rei bávaro, Maximiliano José, aderira plenamente às idéias liberais.
Mesmo tendo prometido salvaguardar integralmente o direito de propriedade e das pessoas, o monarca bávaro não era bem visto pelos tiroleses, que o julgavam um anticlerical, e sobretudo porque um vínculo muito profundo os ligava à Casa d’Áustria.
Todos acorrem para lutar por Deus, pelo Imperador, pelo Tirol
De 1806 a 1808 o governo bávaro, imbuído das idéias do livre-pensamento do século XVIII, procurou aplicar no Tirol uma política religiosa que feria os sentimentos, os costumes e as aspirações da população. Foram proibidas a Missa do Galo, as cerimônias religiosas noturnas, a bênção do Santíssimo depois da Missa cantada; foram interditadas as rogações, as novenas, a Via Sacra, as procissões, as peregrinações, etc. De acordo com o pensamento unânime dos historiadores, essa foi a causa principal da insurreição de 1809.
Em uma reunião clandestina, no fim do ano de 1807, os tiroleses comprometeram-se a fazer tudo para salvar o catolicismo no Tirol. Entre os presentes estava Andreas Hofer.
O recrutamento de soldados para engrossar o exército bávaro também foi outra medida mal-recebida, tanto mais que tal medida visava o combate à antiga pátria, a Áustria. Os conscritos fugiam para as montanhas e não se apresentavam.
Começou então a insurreição. De todas as vilas alpinas acorreram voluntários para lutar por Deus, pelo Imperador e pelo Tirol. Os tiroleses infligiram duas tremendas derrotas às tropas franco-bávaras, inclusive uma delas contra o famoso marechal de Napoleão, Lefèbvre. Andreas Hofer se fez notar como líder nato. Seu prestígio era imenso. Compreendendo suas limitações, nas batalhas deixou o comando tático para companheiros que julgava mais competentes. Seu papel era o de, com sua presença, dar segurança e confiança aos combatentes.
Andreas Hofer é escolhido como regente do Tirol
Depois dessas grandes vitórias, ele assina por vez primeira: “Andreas Hofer, comandante nomeado pela Casa d’Áustria”. Ele pede preces públicas de ação de graças. E, fiel ao voto que havia feito antes da batalha, promulgou um edito estipulando que a festa do Sagrado Coração de Jesus deveria ser erigida perpetuamente, em uma solenidade inscrita em vermelho no calendário tirolês.
Tendo as autoridades bávaras fugido, e não havendo outras nomeadas pelo Imperador da Áustria, os tiroleses escolheram Andreas Hofer como regente do Tirol. Durante dois meses ele governou o Tirol de uma maneira singular. Formou seu conselho escolhendo os membros entre seus amigos. Todos levantavam-se às cinco horas da manhã e começavam o dia assistindo à Missa no palácio do governo. À noite, depois do jantar, recitavam de joelhos um Rosário completo.
Entretanto, no dia 14 de outubro de 1809 a Áustria assinou outro tratado de paz com a França, que não alterou a situação do Tirol. Em outros termos, ele continuaria pertencendo à Baviera! Ao mesmo tempo, Napoleão confiou a Eugênio de Beauharnais a missão de submeter o Tirol. O general francês, auxiliado pelas tropas bávaras, infligiu derrotas sucessivas aos tiroleses. O filho adotivo de Napoleão conclamou os vencidos a entregar as armas e a reconhecer as autoridades bávaras como legítimas governantes do Tirol. Os tiroleses receberam ao mesmo tempo mensagem do Arquiduque João, comunicando o seguinte: “Eu devo fazer-vos saber que o desejo de Sua Majestade é que os tiroleses permaneçam tranqüilos, e não se sacrifiquem inutilmente”.
Mancha temporária e piedosa morte
A constatação desse abandono por parte do Imperador austríaco provocou em Andreas Hofer profunda depressão. E ele que era tão religioso, estranhamente, em vez de buscar conforto na Religião, procurou-o infelizmente na bebida, tornando-se um líder indeciso, à mercê de todas influências. Isso o levou a uma imprudente batalha contra os bávaros, na qual os tiroleses foram arrasados.
Andreas Hofer escondeu-se então nas montanhas. Uma soma de 1.500 florins foi oferecida a quem denunciasse seu esconderijo. Na longa solidão, Hofer se recompôs, rezou, meditou e ofereceu seus sofrimentos pela salvação de sua alma e pelas dos que morreram pelo Tirol.
Como sucede com freqüência na história humana, apareceu um Judas, pronto para entregá-lo. Franz Raffl visitara Hofer em seu esconderijo. Tinha participado também da insurreição. Mas a recompensa oferecida pela delação tentou-o e ele traiu. No dia 27 de janeiro, Andreas foi preso juntamente com a esposa e filho, que o haviam ido visitar, e um amigo, Sweth, que com ele se encontrava.
Condenado à morte, confessou-se e recebeu a sagrada Comunhão na manhã de sua execução. E escreveu uma carta a seu amigo Vinzenz von Pühler, repleta de piedosos sentimentos e da crença no Purgatório e na vida eterna.
Andreas Hofer permanece na memória popular
Em janeiro de 1823, cinco soldados de um regimento de caçadores que estava em Mântua levaram de volta para o Tirol os restos mortais de Andreas Hofer. O Imperador Francisco I determinou que fosse sepultado em Innsbruck, na igreja da corte. Ordenou também que um monumento lhe fosse dedicado, encimado com uma estátua do valoroso chefe contra-revolucionário.
Francisco I, enfim, fez algo pelo vassalo tão fiel desaparecido. Concedeu uma pensão à esposa e filhas de Andreas Hofer, e renovou o certificado de nobilitação de seu filho, assegurando sua educação.
Os tiroleses não se esqueceram do grande líder. Em cada lar havia uma estampa sua. E a tradição oral manteve viva sua memória. Sua figura encontra-se por toda parte: em soldadinhos de chumbo, em xícaras de café ou cinzeiros.
Uma estátua gigante do chefe tirolês foi inaugurada em Bergisel pelo Imperador austríaco Francisco José. Em Sandhof foi erigida uma capela ornada com afrescos interiores que narram sua vida.
Em 1919, pelo tratado de Saint Germain, as regiões do Trentino e do Alto-Adige passaram a pertencer à Itália. Entre outras medidas tomadas por Mussolini em 1923, figurava a proibição de se ter retratos de Andreas Hofer nessa antiga província do Tirol.
Hofer, devido à sua posição contra-revolucionária, tornou-se um símbolo do patriotismo austríaco contra os inimigos do norte e a anexação da Áustria à Alemanha, em 1938.
Em 1945 o governo de Innsbruck renovou o voto ao Sagrado Coração de Jesus, feito por Hofer, e a constituição provincial adotada em 1960 começa com a “fidelidade a Deus” em primeiro lugar, como Andreas Hofer teria feito.”
(José Maria dos Santos, Andreas Hofer, Líder Contra-Revolucionário do Tirol)

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segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O levante na Itália contra Napoleão

“Em 1999 comemora-se [esta entrevista foi publicada naquele ano] o bicentenário de um acontecimento pouco comentado, cujo momento culminante deu-se em 1799. Trata-se da grande contra-revolução empreendida pelo povo italiano contra a imposição forçada dos princípios da Revolução Francesa por parte dos exércitos napoleônicos, que contavam com o apoio das quintas-colunas jacobinas da península. Apesar de as reações dos italianos – comumente chamadas insurreições – contra as reformas jansenistas e iluministas já houvessem começado em 1787, foi somente a partir da invasão de Napoleão na Itália (em 1796), que a resistência se generalizou por todo o território, em nítida defesa do altar e do trono. Ou seja, da Religião católica e dos legítimos governos existentes nos diversos reinos italianos, numa palavra, da milenária civilização católica.
As insurreições prolongaram-se por todo o período da dominação do Corso – como era chamado Napoleão Bonaparte - até o fuzilamento do seu lugar-tenente, Joaquim Murat, na Calábria, em 1815.
Esta página heróica da História foi escrita por centenas de milhares de italianos, abrangendo todo o território, desde os Alpes até a Puglia e a Calábria. Cerca de 200.000 deles pereceram bradando “Viva o Papa”, “Viva o Rei”, “Viva o Imperador”. Entretanto, o brado que mais ressoou nos lábios dos insurgentes foi “Viva Maria”, registrado depois pelos historiadores filo-revolucionários em sentido depreciativo. Com a expressão “Viva Maria” são freqüentemente denominados os insurgentes italianos. Outra denominação célebre com que eles são conhecidos é a de “sanfedistas”, em virtude do nome do exército que o Cardeal Ruffo levantou em Nápoles contra os franceses de Napoleão: Exército da Santa Fé.
Foi uma verdadeira epopéia, tão trágica quanto heróica, que durou 25 anos, e que exatamente há duzentos anos teve o seu ápice. Com efeito, no inicio de 1799, quase toda a península itálica encontrava-se sob o domínio napoleônico. No final desse ano, porém, nenhum soldado francês pisava as terras italianas. Poucas vezes, ou nunca na História, uma força contra-revolucionária obtivera um triunfo militar tão vasto como nesse ano. Foi só depois do golpe de Brumário (7-11-1799) que o Corso começou a reconquistar o terreno perdido na Itália.
Como o leitor bem pode notar, o primeiro elemento que chama a atenção é o silêncio que caiu sobre esses fatos históricos. Têm-se publicado estudos sobre a análoga resistência da Vandéia, na França, e sobre o levante antinapoleônico da Espanha. Mas na Itália – onde o assunto é hoje de muita atualidade – o muro de silêncio só agora está sendo derrubado, pelo esforço de alguns investigadores que têm dedicado anos ao estudo das fontes documentais. Muitos jornais e revistas vêm concedendo espaço em suas páginas a artigos e entrevistas sobre o assunto.
Para conhecer melhor o que aconteceu nesse período, nosso correspondente em Roma, Sr. Juan Miguel Montes, entrevistou o Prof. Massimo Viglione, um dois maiores experts na matéria e autor de dois livros recentíssimos sobre o assunto: Rivolte dimenticate. Le insorgenze degli italiani dalle origini al 1815 [Rebeliões esquecidas. A insurreição dos italianos desde as origens até 1815], Roma, Città Nuova, 1999 (340 pp.) e Le insorgenze. Rivoluzione & Controrivoluzione in Itália [As insurreições. Revolução e Contra-Revolução na Itália], 1792-1815, Milano, Edizioni Ares, 1999 (240 pp.).
Catolicismo – Que causas levaram os italianos à contra-ofensiva geral contra as forças napoleônicas?
Prof. Massimo Viglione – As causas são de dois tipos. As imediatas – os franceses, sob as ordens de Napoleão, saqueavam tudo: as casas dos pobres, as igrejas, os hospitais, os “Montes de Piedade” (institutos de poupança e crédito fundados pela Igreja para benefício das classes mais necessitadas). Onde chegavam, impunham impostos de guerra sem limites, profanavam os conventos, cometiam sacrilégios contra o Santíssimo Sacramento, dispersavam as relíquias dos Santos, impunham leis ferozmente laicistas, e até uma que obrigava os Bispos a fazer o serviço militar... Além disso, levaram embora boa parte dos tesouros de arte da península italiana, inclusive a própria Imagem de Nossa Senhora de Loreto e os célebres cavalos de bronze da Basílica de São Marcos de Veneza. O maior furto da História, feito em nome da fraternidade!
Além da indignação justíssima que todos esses abusos produziam, a causa mais profunda das insurreições foi ideológica. Os italianos tinham tolerado pacificamente, ao longo dos séculos, invasões de todos os tipos, inclusive a dos muçulmanos, como também as efetuadas por outros franceses, na época de Carlos VIII e dos Anjou. Os soldados e funcionários de Napoleão, porém, não eram aos olhos dos italianos os franceses de outrora: eram “revolucionários” que vinham modificar pela força a essência da sociedade italiana, formada ao longo do tempo; vinham para aniquilar 1400 anos de civilização cristã, para substituí-la por uma sociedade laicista e igualitária. Foi isto que chocou profundamente os peninsulares desse tempo, habituados à serenidade e à ordem da Itália, toda ela baseada no binômio Altar e Trono, levando-os à reação armada.
Catolicismo – Essas reações foram espontâneas, ou organizadas pelos nobres e pelo Clero? Quem delas participou?
Prof. M. Viglione – Na maior parte dos casos, as reações eram de caráter popular e espontâneo, principalmente devido ao fato de que, ainda quando os nobres e o Clero tinham uma posição contrária à Revolução Francesa (o que não acontecia sempre, sobretudo entre o Clero do sul, mais aberto à influência jansenista), eles tendiam a uma atitude prudente. Somente depois do levante da população, os nobres, e às vezes até os sacerdotes, passavam a comandar o movimento. Mas todas as classes sociais participavam das insurreições, sem nenhuma exclusão. Sobretudo o povo miúdo, um pouco menos a burguesia, embora também ela tenha aderido no fim. Em todo caso, tratou-se essencialmente de um “fenômeno de massa”, para usar um termo caro aos marxistas. O caso mais clamoroso nesse sentido foi o do Cardeal Ruffo, em sua empresa de reconquista do Reino de Nápoles: tendo desembarcado no dia 7 de fevereiro na Calábria à testa de sete homens, já no mês de abril vemo-lo chefiando milhares de voluntários. E no dia 13 de junho entra vitorioso em Nápoles, com um exército imenso, para derribar a República jacobina e restaurar os Bourbons. A cidade de Arezzo organiza em poucos dias um exército de 38.000 voluntários e reconquista o Grão Ducado da Toscana.
Catolicismo – Em seus livros, o Sr. ressalta as ferozes matanças de insurgentes praticadas pelos revolucionários. Poder-se-ia falar numa “Vandéia italiana”?
Prof. M. Viglione – Pode-se, sem dúvida, falar em “Vandéia italiana”, sobretudo considerando o tema sob um prisma ideológico. A insurreição italiana não pode, infelizmente, invejar nada à Vandéia do ponto de vista do genocídio. Eu dou alguns exemplos que me vêm à memória: em Mondovì, foram massacrados a fio de espada 1500 mulheres e crianças em apenas uma hora de repressão, outras 1500 pessoas em Isernia, 2200 em Amantea, 9000 em San Severo, 4000 em Andria, sem contar os 10.000 mortos em Nápoles, no levante dos Lazzari, durante o qual os napolitanos foram queimados vivos nas suas próprias casas. No dia 22 de agosto de 1806, na igreja de São Lourenço, em Reggio Calábria, dezenas de mulheres, velhos e crianças, que tinham procurado refúgio nesse lugar sagrado, foram queimados “até o último”. Ninguém lhes propôs sequer a rendição ou sair, como reconheceu em seu relatório um oficial de José Bonaparte. Na Abadia de Casamari, ainda no ano 1799, depois de serem hospedados pelos monges, os soldados napoleônicos entraram na igreja para pisar com os cavalos as hóstias consagradas. Quando os monges jogavam-se no chão tentando recuperá-las, os franceses golpeavam-nos com os sabres, primeiro cortando-lhes os dedos, e depois, assassinando-os. Um recente cálculo refere-se a pelo menos 200.000 italianos mortos em defesa da Civilização Cristã, embora quase ninguém o saiba.
Catolicismo – Como é possível que quase ninguém o saiba? Como foi possível ocultar tudo isto?
Prof. M. Viglione – A resposta é, no fundo, simples. Como imaginar que as forças pró-jacobinas e esquerdistas, que têm ocupado por décadas quase todos os espaços da cultura do país, possam aceitar ou, pior ainda para eles, divulgar, que centenas de milhares de italianos se alçaram contra os “imortais princípios” do liberalismo, do socialismo, do republicanismo da Revolução Francesa, em defesa da civilização e da tradição católicas? E tudo isso no país do Papado?
Poder-se-á objetar: mas as insurreições na Vandéia e na Espanha são mais conhecidas. Por que se conhece tão pouco o levante da Itália contra Napoleão?
A diferença da França ou da Espanha em relação à Itália reside no fato de que tivemos aqui o “Risorgimento”, ou seja, o movimento que promoveu a unidade italiana na segunda metade do século passado. O “Risorgimento” é apresentado ao italiano médio como a Revolução Francesa é apresentada ao francês médio: o bem por excelência. Ora, os artífices do “Risorgimento” tinham como precursores doutrinários os jacobinos da Revolução Francesa. Por isso, tornava-se necessário cancelar da memória, especialmente por parte da historiografia oficial, a idéia de que os princípios da Revolução Francesa trazidos aqui por Napoleão tinham sido energicamente rejeitados pela maioria dos italianos, para desta maneira evitar uma análoga reação contra o próprio “Risorgimento”. Movimento este que, por sua vez – como o reconheceu o maior ideólogo comunista italiano, Gramsci – foi um fenômeno de pequenas elites e não de maiorias. A insurreição italiana contra Napoleão foi, pelo contrário, um fenômeno absolutamente maciço e popular.”
(Revista Catolicismo, julho de 1999)

segunda-feira, 12 de março de 2012

A Igreja é um poder mais elevado que o Estado

“Como o grau de elevação dos diferentes poderes deriva de sua finalidade última, e como a salvação eterna é uma finalidade evidentemente superior à prosperidade temporal, é claro como o dia que a Igreja é um poder mais elevado que o Estado, e que o Estado é, por conseguinte, estritamente obrigado, de direito divino, a se sujeitar ao poder da Igreja. Ora, o que é de direito divino é imutável, nenhum poder pode destruir isto. (...)
Para cumprir a vontade de Deus e os seus deveres de soberanos, os príncipes cristãos não devem somente se contentar de buscar a felicidade material de seus súditos: isto seria naturalismo; não devem também se contentar de não atrapalhar a ação da Igreja: isto seria indiferença para com o bem, indiferença culpável e que não é permitida; mas eles devem prestar à Igreja o auxílio mais eficaz possível; eles devem, sob a sua direção e como servidores fiéis, impedir o mais possível todos os escândalos que possam alterar a fé ou a moralidade dos seus povos; devem assistir a Igreja com suas palavras, com sua influência, com seu dinheiro e, se preciso, com a sua espada e seus exércitos.
Assim, tudo fica em ordem; e Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem Deus constituiu o soberano Mestre, não somente do céu mas da terra, plenamente reina pela sua santa Igreja, sobre todos os homens, sobre todos os Estados, sobre todas as famílias. Esta é a doutrina católica; este é o ensinamento oficial e tradicional da Igreja, resumido nestes últimos tempos pela encíclica de 8 de dezembro de 1864 (Quanta Cura). A doutrina oposta, condenada com o nome de naturalismo pela Sé apostólica, é a alma da Revolução e dos princípios de 1789.”
(Mons. Louis-Gaston de Ségur, La Révolution Expliquée aux Jeunes Gens)

quinta-feira, 8 de março de 2012

A alma da revolução

“Os “princípios de 1789” são dominados pelo princípio revolucionário de independência absoluta da sociedade, que declara doravante rejeitar qualquer direção cristã, e só depender de si própria, só ter por lei sua própria vontade, não se preocupando com o que Deus ensina e prescreve pela sua Igreja. A vontade do povo soberano substitui a vontade do Deus soberano, a lei humana calca aos pés a verdade revelada, o direito puramente natural abstrai do direito católico; numa palavra, os pretensos direitos do homem tomam o lugar dos direitos eternos de Jesus Cristo: tal é, fundamentalmente, a declaração de 1789.”
(Mons. Louis-Gaston de Ségur, La Révolution Expliquée aux Jeunes Gens)

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Napoleão Bonaparte e a maçonaria

“A Revolução francesa tinha deixado claro o considerável papel da maçonaria como elemento de erosão de qualquer poder constituído. Pode-se argumentar que é possível que a própria maçonaria tenha sido superada pelo monstro que criou e que alguns irmãos maçons pagaram por isto – literalmente – com a cabeça. No entanto, a capacidade subversiva dessa sociedade secreta é inegável. Poucos souberam extrair melhor as lições pertinentes da Revolução que um general de origem corsa chamado Napoleão Bonaparte.
Há especulações sobre uma possível iniciação de Napoleão na maçonaria, que teria ocorrido em 1798, na ilha de Malta e no seio de uma loja maçônica formada majoritariamente por militares. As provas não são de todo conclusivas, mas não há dúvida de que Bonaparte utilizou conscientemente a maçonaria como um instrumento político.
Os dados a respeito são bem significativos. Quatro dos irmãos de Napoleão – bem como seu pai – foram maçons. Este foi o caso de José, que seria rei da Espanha; de Luís, rei da Holanda; de Luciano, príncipe de Cannino; e de Jerônimo, rei da Westfália. Não terão sido exceções. Joaquín Murat, cunhado de Napoleão e marechal, e seu enteado Eugênio de Beauharnais também foram maçons. Em relação aos marechais de Napoleão – e este é um dado bem significativo da penetração maçônica no exército – , vinte e dois entre os mais importantes eram “filhos da viúva”.
Napoleão tinha o firme propósito de controlar as lojas maçônicas e, com certeza, conseguiu. Quando Bonaparte tomou o poder, a maçonaria francesa encontrava-se dividida entre o Grande Oriente e o Rito escocês. Ele conseguiu, assim, que José Bonaparte fosse eleito grão-mestre do Grande Oriente, enquanto Luís conseguia o mesmo cargo no Rito escocês. Em dezembro de 1804, ambas as obediências se fundiram, com José como grão-mestre. Em sua imbricação com a maçonaria, Napoleão chegou ao ponto de forçar a entrada das mulheres nas lojas maçônicas para outorgar a Josefina o cargo de grã-mestra.
Dificilmente pode-se dizer que Napoleão fosse defensor da liberdade, mas ele era, sim, consciente da utilidade da maçonaria. Esta lhe permitia – como manifestaria no seu Memorial de Santa Elena – contar com um exército que lutava “contra o papa”, manter, com vigor, as forças armadas sob controle e a polícia em suas mãos, além de proporcionar-lhe um instrumento de captação e propaganda favorável ao domínio francês da Europa.
Não é de se estranhar, portanto, que os maçons se identificassem com a ditadura napoleônica que estava retalhando o mapa europeu a sangue e fogo. Um maçom, claro, compôs o seguinte hino de louvor a Napoleão:
Eis aqui o que conseguem o ouro e a traição:
Sozinho te vês, orgulhoso ilhéu!
Vais prolongar tua luta temerária?
Treme. Os deuses apóiam Napoleão.
Cede ou muito em breve este nobre grito de guerra
Ressoará nas entranhas de Albion:
Viva Napoleão!

É difícil acreditar que espanhóis, austríacos, russos ou prussianos compartilhassem o entusiasmo maçônico por Napoleão e não foram poucos aqueles que se sentiram indignados quando ele, em 1810, fez o papa prisioneiro e anexou os Estados Pontifícios. Mas se este episódio provocou horror nos católicos e em muitos que não o eram, causou regozijo entre os maçons. Napoleão não só estava vencendo as trevas clericais como, além disso, estava expandindo o ideário da Revolução francesa. Não causa surpresa que, quando os prefeitos franceses levaram ao fim uma investigação para saber se os maçons eram leais, o resultado foi que todas as lojas maçônicas identificavam-se com Napoleão. A única exceção encontrava-se no cantão de Genebra, que tinha sido invadido em 1798 por tropas francesas.
No resto dos países invadidos por Napoleão, a maçonaria também estava desempenhando papel de significativa importância. As forças invasoras e de ocupação foram criando, no seu caminho, lojas maçônicas nas quais tentavam integrar as elites nacionais, que, desta forma, ficavam submetidas a Napoleão. Foi assim, pela mão dos invasores franceses, que a maçonaria chegou à Espanha.”
(César Vidal, Los Masones: La Historia De La Sociedad Secreta Más Poderosa Del Mundo‏)

sábado, 9 de abril de 2011

Comunismo na revolução francesa

“O comunismo de propriedade é a derradeira aplicação do contrato social. Como cada direito se origina do Povo Soberano, tanto as propriedades quanto os indivíduos estão nas mãos do povo.
O decreto de 23 de agosto de 1793 marca o advento do novo reino: o socialismo de propriedade será simplesmente a contrapartida da socialização das vontades. Não mais haverá intermediários entre o governante e o governado.
Servos sob o rei em 1789, homens livres pela lei de 1791, o povo se torna senhor em 1793. Ao se tornar o próprio governante, o povo abole as liberdades públicas que haviam sido suas únicas garantias contra os que o governavam. O direito ao voto é suspenso, pois o povo reina; o direito à autodefesa, pois eles julgam; a liberdade de imprensa, pois eles escrevem; a liberdade de expressão, pois eles falam – uma doutrina límpida da qual as proclamações e leis terroristas são apenas um longo comentário.
Na ordem econômica, a coletividade a partir daí cuida de seus próprios assuntos e dispensa os indivíduos. Com a abolição do comércio de cereais (3-11 de setembro de 1793), ela socializa as reservas agrícolas. Com a criação do tabelamento de preços (leis de 29 de setembro de 1793 e 24 de fevereiro de 1794), ela acaba com a atividade comercial. Com a requisição universal de trabalho e habilidades (16 de abril de 1794), o próprio esforço de produção é abolido. Esse é o fim do regime pessoal para o povo e o príncipe, nos campos e nas oficinas e no Louvre.
Toda indústria: de metais, minas, armas, salitre, passa às mãos do Estado.
Quando o povo está no trono, é o Estado que assume o controle.
Esse sistema artificial exigiu uma implantação tão prodigiosa de violência que recebeu o nome de Terror. O reino do impessoal é um inferno: a democracia, o príncipe impessoal, governa para trás, e o Estado, o povo impessoal, trabalha desnorteado. Essas são as duas grandes verdades que a doutrina da revolução nega e que sua história comprova. Como pode esse paradoxo afirmar-se a si mesmo contra o senso comum, primeiro, e depois contra direitos e interesses, durar dez meses e continuar por dois anos?
É que o trabalho das Sociedades Filosóficas, através de seu aconselhamento intelectual e seleção social, havia criado um estado de espírito moral. Em todos os grandes problemas de interesse público existia uma opinião das Sociedades que era oposta à verdadeira opinião [pública]. A legislação terrorista não é o trabalho conjunto de políticos, mas apenas o eco das opiniões das Sociedades – a tal ponto que os decretos da Convenção eram preparados e algumas vezes votados e aplicados de antemão pelas Sociedades.
E as Sociedades – tendo em vista serem o povo – apropriam-se de e exercem sem controle os direitos dos quais o novo regime priva os eleitores. O povo perdeu o direito de eleger seus magistrados de acordo com os procedimentos legais, e as Sociedades assumem o direito de removê-los contínua e arbitrariamente. O povo foi desarmado sistematicamente, até a última arma, e as Sociedades pegam em armas. Elas treinam, removem e dirigem grupos especiais à vontade – os “exércitos revolucionários” que elas supervisionam na guerra contra o “inimigo doméstico”. Dessa maneira, as Sociedades só se tornam bastante numerosas (quase 1900 em janeiro de 1794) e “unidas” após a derrota do cisma girondino, e predominantes a partir do “medo” de setembro e da prisão dos suspeitos.
Contudo, a substituição da vida real pela vida da Sociedade não ocorreu de modo suave. Ao primeiro contato com coisas [reais], a razão dos “legisladores” era contradita, muitas vezes em menos de uma semana.
Os mercados têm pouco estoque e assim a Convenção decreta, em 11 de setembro de 1793, que os grãos não mais serão vendidos em qualquer lugar, mas somente lá. Imediatamente os mercados se esvaziam, e provisões tornam-se raras e caras. A Convenção, com o decreto de 29 de setembro, baixa os preços de varejo, imaginando que o atacado preferiria fazer o mesmo a nada vender. [Mas] os preços de atacado se mantiveram, em menos de uma semana as lojas se esvaziaram e os lojistas ficaram de pires na mão. A mesma lei que decretou o tabelamento do preço da carne fez o mesmo quanto ao preço do gado, o que levou ao fim da pecuária e ao abate do gado. A Convenção apressadamente revoga seu decreto para salvar a pecuária (23 de outubro). Mas então os açougueiros, que ainda tinham tabelamentos, param de comprar e de abater, o que desencadeia o desabastecimento em uma indústria após a outra: curtumes, sapatarias, fábricas de uniformes militares, terminando com a falta de carne e pão (fevereiro de 1794). Em 11 de abril de 1794, o Comitê de Salvação Pública, animado com os resultados de seu censo, requer para Paris e os exércitos todo porco de oito anos, o qual deixa com seu dono até a data da entrega. Este, ao invés de alimentá-lo, deixa-o definhar e morrer.
Todas as tentativas de socialização levam a impasses desse tipo. Se essas tentativas se dirigissem a homens, essas lições brutais os teriam feito parar e pensar, mas um fenômeno social não pensa. Esse fenômeno avança de desastre em desastre, produzindo uma floresta de leis não-naturais cujo sucesso nas Sociedades e aprovação pela Convenção foram tão fatais como sua imposição no país foi absurda ou impossível.”
(Extraído da seleção de textos de Augustin Cochin, Organizing the Revolution)

sábado, 5 de março de 2011

A superioridade dos piores

“Já citei várias vezes a máxima de Hugo von Hofmannsthal, profundamente verdadeira, de que nada está na política de um país sem estar primeiro na sua literatura. Uma das decorrências dela é que, sem extenso conhecimento da história cultural e literária, o observador só capta, dos fatos políticos, a forma final ostensiva com que aparecem no noticiário do dia, sem nada enxergar das correntes profundas onde se formaram e onde poderiam, em tempo, ter sido modificados.
Praticamente não existe manobra política, tática ou estratégica, que não tenha surgido antes como artifício literário. A razão disso é simples: ninguém pode fazer o que primeiro não imaginou, e explorar as possibilidades do imaginário social, tornando-as pensáveis na linguagem comum, é a função precípua dos artistas da palavra. Na “direita” brasileira, a obsessão da economia, da administração e do marketing leva muitos pretensos “homens práticos” aos erros mais pueris e desastrosos, que poderiam ter sido evitados com um pouco de cultura literária.
Vou dar-lhes um exemplo chocante.
Quando hoje em dia vocês vêem terroristas dando lições de moral, narcotraficantes e seqüestradores passando pito em senadores e deputados, travestis vestidos de freiras forçando um padre a lhes dar a comunhão, ou o próprio presidente da República enaltecendo os bandidos das Farc como pessoas honestas que têm todo o direito de ascender ao poder de Estado, vocês ficam naturalmente desorientados e não sabem como reagir diante de condutas tão cínicas e descaradas, que vão se multiplicando aos olhos de todos, até o ponto de se impor como práticas normais e legítimas.
É um fenômeno que tende a expandir-se ilimitadamente e que só poderá ser detido à custa de uma trabalhosíssima e quase impossível reeducação de toda a sociedade. Mas poderia ter sido estrangulado na origem, se os liberais e conservadores, em vez de ficar hipnotizados ante os acontecimentos mais vistosos, se dessem o trabalho de ver como essas coisas nascem e se desenvolvem numa discreta penumbra antes de aparecer estrepitosamente nas manchetes.
Essas e outras táticas abjetamente maliciosas, que já se tornaram parte do nosso cenário quotidiano, apareceram, como em geral todos os componentes do que viria a ser a técnica da “espiral do silêncio”, no séc. XVIII; e, como não poderia deixar de ser, apareceram primeiro como um recurso de técnica literária.
Seu inventor foi Denis Diderot, um gênio perverso da propaganda revolucionária. Para criá-la, ele se apoiou na velha tradição dramatúrgica do “bobo da corte” -- o personagem de baixo nível social que, justamente por sua aparência desprezível, desempenha o papel de fiscal da classe dominante, com a permissão e sob a proteção desta última, à qual serve como espelho amplificador onde ela enxerga seus defeitos e fraquezas. Tanto na dramaturgia quanto, com freqüência, na própria realidade histórica, o bobo da corte foi durante séculos uma peça essencial no aparato perceptivo dos governantes, que através dele podiam tomar consciência de seus pontos cegos, evitando embriagar-se em ilusões perigosas e assegurando um domínio mais firme sobre a realidade das situações.
Diderot descobriu que, com pequenas modificações, o bobo poderia tornar-se um instrumento voltado, não à orientação e correção da classe dominante, mas à sua destruição. Bastava, para isso, acrescentar à inferioridade social do personagem alguns traços de perversidade moral genuína, conservando-o, ao mesmo tempo, no seu papel de fiscal e crítico da moralidade do mundo. No seu diálogo “O Sobrinho de Rameau” (1761), ele criou a figura daquilo que viria depois a chamar-se, nos estudos literários, o “herói abjeto” (leiam o estudo magistral de Michael André Bernstein, Bitter Carnival: Ressentiment And The Abject Hero, Princeton University Press, 1992). É um tipo declaradamente inferior, não só do ponto de vista social como o velho bobo da corte, mas humano e moral. É um vigarista, um criminoso cínico, um sociopata na mais legítima acepção do termo -- mas, por isso mesmo, está na posição perfeita para enxergar a sociedade inteira como um tecido de crimes, projetando nela a sua própria torpeza de alma e interpretando tudo pela ótica corrosiva de um discurso de acusação verdadeiramente infernal.
O exemplo frutificou, mas não somente na literatura. Alastrou-se pela retórica política e se tornou um lugar-comum da propaganda revolucionária. Cinco anos após a morte de Diderot, seu personagem já havia se multiplicado em milhares de criminosos de verdade, grandes e pequenos, que, exaltados pela Revolução, subiam aos púlpitos e às cátedras para verberar, do alto da sua incontestada autoridade moral, os pecados da sociedade.
Quando uma idéia literária se consagra como um topos, um lugar comum da retórica política, já é impossível impedir que as pessoas enxerguem a realidade sob a sua ótica deformante. Os fatos, por mais numerosos e evidentes, já nada podem. Digam eles o que disserem, o automatismo do imaginário os reconstruirá à sua maneira, dando-lhes, de novo e de novo, o sentido fictício que se consagrou no topos.
Fora da França, a transmutação do “herói abjeto” em arma de combate político foi mais lenta, mas nem por isso menos irreversível. Primeiro veio a crença de que os criminosos são vítimas passivas da sociedade, e não autores dos seus próprios atos. Depois, a transfiguração das pretensas vítimas em símbolos dos valores morais genuínos, que a sociedade hipócrita usurpara. Por fim, o símbolo tornou-se realidade: criminosos, prostitutas e psicopatas já não somente "representavam" o melhor da sociedade, mas o carregavam em si como qualidade pessoal concreta.
Quando, desde os anos 50, o proletariado foi excluído da condição de protagonista maior da mutação revolucionária, e a Escola de Frankfurt consagrou em lugar dele os marginais de toda sorte, estava tudo pronto para que o cinismo dos piores se impusesse como encarnação da respeitabilidade máxima, acusando e humilhando a todos e jogando as pessoas de bem na lata de lixo da “espiral do silêncio”.”
(Olavo de Carvalho, A Superioridade dos Piores)

http://www.olavodecarvalho.org/semana/101220dc.html

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Bonapartismo

“É verdade que os episódios históricos são imprevisíveis e irrepetíveis, mas há na natureza humana algumas constantes que trazem ao comportamento em sociedade elementos facilmente reconhecíveis em acontecimentos separados pelo espaço e pelo tempo.
Um exemplo são as distintas fases pelas que costuma atravessar uma revolução e outro, que esses processos costumam acabar desembocando no que se chama de bonapartismo.
Já Karl Marx, em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, descreveu um tipo de regime burguês no qual pareceu estabilizar-se a história francesa de meados do século XIX, depois dos ciclos revolucionários anteriores. Napoleão III parecia chamado a consolidar a ordem nascida da Revolução Francesa, desarticulando ao mesmo tempo a potência criadora dos setores sociais que a haviam protagonizado (como é o caso da burguesia) e freando a evolução do processo. Diríamos que se transformou no domesticador de leões que crê reproduzir no diminuto cenário da jaula a potência do rei da selva em liberdade. A situação tão instável de quem alimenta o que o devorará permite a Marx retratar a desonrosa tarefa do bonapartismo nestes termos:
Esta missão contraditória do homem explica as contradições do Governo, o confuso tatear aqui e acolá, que procura tanto aliciar como humilhar uma vez esta classe e depois outra, pondo-as todas igualmente contra a sua, e cuja insegurança prática forma um contraste bastante cômico com o estilo imperioso e categórico de seus atos de governo, estilo imitado submissamente de seu tio”.
Essa referência a Napoleão Bonaparte, de quem Napoleão III era sobrinho, nos lembra que foi provavelmente a obra do corso o tipo mais acabado de bonapartismo.
Sua coroação como imperador leva a Revolução Francesa a terminar em uma tirania que nem sequer puderam imaginar os que consideravam Luís XVI um monarca absoluto. E, desde já, há algo de grotesco e histriônico em ver um filho da revolução adornado com as galas que nem um sátrapa oriental teria reclamado para si. No entanto, Napoleão iria espalhar em poucos anos as idéias revolucionárias por toda a Europa submetida sob as botas de seus exércitos, fazendo mais pela derrota dos ideais tradicionais que todos os guilhotinamentos das etapas anteriores.
A etapa bonapartista da revolução é a mais difícil para os que permanecem fiéis às idéias derrotadas pelo processo; assim, os católicos da Vendéia, resistentes até o extermínio às idéias anti-cristãs da revolução, caíram então seduzidos pela retórica conservadora do tirano.
René Remond distingue na direita francesa do século XIX uma corrente liberal, uma contra-revolucionária e outra bonapartista. Como especifica Miguel Ayuso, extrapolando a situação mutatis mutandis ao caso espanhol, a transferência de caudais produzida entre a doutrina contra-revolucionária e o pensamento bonapartista também opera, entre outros fatores, como fator de fragmentação da doutrina católica tradicional.
Todos os dias percebemos que a defesa de causas nobres em que o pensamento cristão está envolvido se faz, na melhor das hipóteses, a partir da desconexão de suas premissas ideológicas e políticas, quando não a partir de limites bastante desfocados. Inclusive nas expressões da doutrina social da Igreja, impulsionadas pelo pontificado de João Paulo II, se percebe uma tendência a aceitar as estruturas políticas vigentes, embora com o risco de incorrer em alguma grave contradição derivada da aceitação da democracia pluralista” (AYUSO, Miguel, La cabeza de la Gorgona. De la “hybris” del poder al totalitarismo moderno, Ediciones Nueva Hispanidad, Buenos Aires, 2001, p.133).
E se alguém acostumado a descobrir heterodoxias acreditar que as pode descobrir em meu raciocínio por haver transcrito esse juízo crítico, cabe recordar que um argumento semelhante foi exposto pelo então Bispo de Cuenca ao afirmar que “As incoerências da pregação atual mostram a necessidade de reedificar a doutrina da Igreja” (em Iglesia-Mundo nº 384 (1989), p. 51 ss.). A situação inclusive se agravou ao adotar-se o discurso do laicismo presumivelmente sadio, ao mesmo tempo que se silencia que a missão da Igreja, em relação a qualquer comunidade política, é pregar que não apenas os atos e comportamentos individuais dos cidadãos, mas também a própria estrutura constitucional, devem estar eficazmente subordinados à ordem moral.
Em síntese, tudo que se faz para sanar alguns dos excessos, sem questionar os princípios errôneos sobre os quais se sustentaram as experiências anteriores, será pouco mais que puro “bonapartismo”.
Com esse termo se define na história de qualquer processo revolucionário a fase de institucionalização que salva as conquistas conseguidas de perecer em meio à sua própria inoperância e ao caos provocado. O fenômeno se repete em muitos outros processos revolucionários, tanto os de natureza sócio-política como religiosa.
Os bonapartistas têm em comum algumas das seguintes características:
- Estabelecem uma aparente paz interior que se torna especialmente cômoda para os conservadores, quer dizer, àqueles que se recordam da ordem como uma das características mais desejadas do estado de coisas anterior à revolução;
- Passaram da oposição ao poder e os mesmos que ontem atacavam todo princípio de autoridade são agora os súditos mais bajuladores que exigem uma obediência servil para o que manda.
- Em seu afã de contentar a todos, acabam pondo todos contra si mesmos e essa insegurança prática se contrapõe a seu estilo personalista, imperioso e carismático de exercer o poder.
- Negam o conflito existente no interior da sociedade que governam e preferem enviar os que lhes são leais a empresas no exterior.
- Fazem compatível a manutenção dos princípios e instituições revolucionárias com magnânimas concessões aos que permanecem apegados a formas anteriores; de modo que estes tenham de lhes agradecer, como dons vindos de suas mãos, aquilo a que têm direito pela própria natureza das coisas.
- Adotam formas exteriores (vestidos, cerimônias, protocolo...) próprias da ordem derrotada, que aparecem assim desprovidas de todo conteúdo, dando aos agora elevados ao poder tons de hilária comicidade.
- Parecem situar-se em uma teórica eqüidistância das posições extremas: não são nem revolucionários nem tradicionalistas, mas na prática fazem avançar a cada dia a revolução a extremos com os quais não puderam sonhar seus mais radicais defensores.
- Se não fosse pelo fato dos resultados de sua obra serem trágicos, os bonapartistas seriam cômicos. Ornamentado com coroa e arminho, com a ridícula pose adotada pelo corso para exaltar-se e enobrecer suas origens obscuras, não se pode negar que Napoleão conseguiu o que não conseguiram os jacobinos: desarticular as instituições do Antigo Regime onde sobreviviam e cercear toda capacidade de resistência.
Por isso, quem quiser salvar o caos que provoca uma revolução, sobretudo em terreno religioso, está obrigado a lutar contra os bonapartistas com mais coragem e perseverança que contra os vândalos destruidores da cidade e do templo.
Qui potest capere, capiat.
(Angel David Martín Rubio, Bonapartismo)

sábado, 1 de janeiro de 2011

Duas correntes de pensamento oriundas da revolução francesa

“Podemos falar de duas correntes de pensamento e ação que procedem da Declaração dos Direitos do Homem: a corrente do Liberalismo rousseauniano-maçônico e a corrente do Socialismo, Coletivismo e Comunismo. A corrente do Liberalismo, é certo, já existia antes da Revolução Francesa – é a própria essência da filosofia de Locke, como vimos – mas foi bastante reforçada pela deificação maçônica do homem na Revolução. De acordo com a doutrina consagrada no simbolismo maçônico, todo homem, enquanto emanação da substância única, é um ser absolutamente independente. Todos os homens são, portanto, igualmente Deus, sujeitos a ninguém e completamente livres de quaisquer obrigações uns para com os outros. E o homem que nasce livre é indivíduo e animal, com suas necessidades materiais e suas paixões clamorosas. Como a ação desimpedida é uma exigência absoluta da natureza humana enquanto divina, é apenas visando garantir mais prontamente a maior soma possível de satisfações materiais que os seres humanos entram em sociedade. Se atentarmos cuidadosamente à doutrina da divindade imanente ou autonomia do homem como indivíduo expressa na Declaração, logo perceberemos que o primeiro artigo da Declaração, ou seja, “Os homens nascem e vivem livres e iguais em direitos”, contribuiu bastante para reforçar as correntes opostas do Liberalismo e do Socialismo ou Comunismo. Nenhuma dessas teorias compreende a distinção entre o homem como pessoa e o homem como indivíduo (...).
Segundo a doutrina tomista, o homem é um membro individual da sociedade dotado de razão e conseqüentemente do poder do livre arbítrio, tendo em vista o desenvolvimento de sua personalidade por meio de sua adesão a Cristo. A partir do momento que um indivíduo humano se destina por sua natureza a viver em sociedade, ele tem o direito, como pessoa, de exigir da sociedade o mínimo do Bem Comum que o permitirá viver dignamente como pessoa humana, mas ele tem também os correspondentes deveres para com a sociedade e não pode se comportar como um todo autônomo, unicamente para o qual a sociedade existe. Portanto, como pessoas, todos os homens são iguais e têm direitos iguais àquele mínimo, mas embora iguais como pessoas, por serem membros da espécie humana e membros atuais ou potenciais de Cristo, os seres humanos são desiguais como indivíduos, devido à desigualdade de suas condições individuais. Seus direitos individuais concretos são, dessa maneira, desiguais. Toda organização da sociedade deve respeitar tanto a específica igualdade das pessoas humanas como a desigualdade individual dos indivíduos humanos.
É precisamente isso o que nem o Liberalismo nem o Socialismo conseguiram compreender. O Liberalismo destacou a primeira parte do Artigo I da Declaração de 1789, qual seja, “os homens nascem livres”. Cada homem com suas necessidades materiais e paixões é um todo autônomo, absolutamente livre, com liberdade irrestrita. O indivíduo é assim seu próprio fim para si mesmo, e o único objetivo da sociedade é manter essa autonomia. Na presença da desigualdade de condições, contudo, pela qual a pretensa liberdade incondicional é constantemente frustrada, o Liberalismo sacrifica o fraco ao forte e obriga o fraco a respeitar os contratos feitos com o forte por extrema necessidade, embora com todos os sinais exteriores da liberdade. O Liberalismo na prática sacrifica a igualdade fundamental das pessoas humanas. No começo do Liberalismo acreditava-se, com Adam Smith e Quesnay, que o respeito às “leis da natureza” levaria a um funcionamento esplendidamente harmonioso da sociedade. Com o passar do tempo, especialmente após a Revolução Francesa e diante das injustiças gritantes dos resultados da “liberdade”, tudo que se podia afirmar, com Malthus e Ricardo, era que embora as coisas estivessem ruins, qualquer tentativa de interferência nas “leis da natureza” levaria a males ainda piores.
A opressão dos fracos pelos fortes levou à coalizão dos fracos na tentativa de defender os direitos fundamentais da natureza humana, na qual todos são iguais. Infelizmente, a liderança da reação foi tomada pelos socialistas e comunistas impregnados com a mesma doutrina revolucionária da “autonomia do indivíduo”. Eles inauguraram um sistema tão anti-social quanto o outro, ressaltando a segunda parte do Artigo I da Declaração, ou seja, “os homens nascem iguais”. Em nome da igualdade essencial da natureza humana eles pretendiam suprimir a desigualdade acidental e inevitável das condições humanas. A única maneira de conseguir isso era suprimir a presente organização da sociedade na qual a lei mantém a desigualdade de condições, principalmente através da propriedade privada, e reconstruir uma sociedade na qual todos os cidadãos seriam iguais não apenas de jure mas de facto. Nessa sociedade ideal, o Estado deverá possuir tudo e obrigar todos, sem distinção de classes, a trabalharem pelo Bem Comum, distribuindo a cada um seu quinhão devido da riqueza comum.
Os liberais estão certos em admitir, opondo-se aos socialistas e comunistas, a natural desigualdade das condições humanas, mas sua falsa doutrina da autonomia do indivíduo, ou seja, da liberdade incondicional de uma criatura decaída, leva na prática à negação dos direitos dos seres humanos à maioria.
Por seu lado, em nome da mesma falsa doutrina, os socialistas e comunistas querem suprimir a desigualdade de condições. Todos são igualmente homens, querendo eles dizer com isso indivíduos autônomos, e para se chegar à igualdade deve-se reorganizar a sociedade com base na supressão das desigualdades. Como a propriedade privada é a principal causa das desigualdades, deve-se começar pela sua supressão. Dado o falso fundamento de ambas doutrinas, que é a deificação rousseauniana-maçônica do indivíduo, não há solução para o problema. Se a sociedade for, como a Declaração de 1789 e o Contrato Social de Rousseau supõem, uma simples justaposição material de indivíduos autônomos, então, ou em nome da liberdade os fortes oprimirão os fracos, ou em nome da igualdade os manipuladores da coalizão oprimirão a todos. Em ambos os casos, os homens serão tratados como meros indivíduos, não como pessoas.
Uma vez que o único objetivo da sociedade, de acordo com os princípios de 1789, é permitir que os indivíduos se entretenham livremente como deuses sem qualquer restrição, é óbvio que todo Estado deve ser projetado nos termos do Contrato Social de Rousseau. Um tal Estado será composto exclusivamente de indivíduos que são unidades aritmeticamente iguais e completamente independentes umas das outras, sob um governo emanado da soma das vontades individuais. Da mesma forma, toda sociedade distinta do Estado deve ser dissolvida e o trabalho de destruição não deve cessar até que o Estado governe sobre partículas de poeira humana. As Corporações ou Guildas foram-se primeiro. Os Decretos Chapelier de junho de 1791 cuidaram disso. Então o ataque à família por meio das leis naturalistas do divórcio, leis regulando a herança de propriedade, leis sobre a escola, completaram o trabalho corruptor iniciado pelo individualismo protestante. Como o Socialismo e o Comunismo aceitaram o mesmo princípio desintegrador do indivíduo enquanto Deus, eles mantiveram esse ataque à família, ainda que tentassem, com sindicatos e cooperativas, proteger os trabalhadores das conseqüências do individualismo. Esses expedientes temporários destinam-se a dissolver-se tão logo o Estado Comunista esteja montado. Assim, a mesma forma de Estado onipotente e onívoro, no qual os homens serão tratados como meros indivíduos, será a conseqüência lógica das duas correntes originadas nos princípios de 1789.”
(Rev. Denis Fahey, C.S.Sp, The Mystical Body of Christ and the Reorganization of Society)