“O comunismo de propriedade é a derradeira aplicação do contrato social. Como cada direito se origina do Povo Soberano, tanto as propriedades quanto os indivíduos estão nas mãos do povo.
O decreto de 23 de agosto de 1793 marca o advento do novo reino: o socialismo de propriedade será simplesmente a contrapartida da socialização das vontades. Não mais haverá intermediários entre o governante e o governado.
Servos sob o rei em 1789, homens livres pela lei de 1791, o povo se torna senhor em 1793. Ao se tornar o próprio governante, o povo abole as liberdades públicas que haviam sido suas únicas garantias contra os que o governavam. O direito ao voto é suspenso, pois o povo reina; o direito à autodefesa, pois eles julgam; a liberdade de imprensa, pois eles escrevem; a liberdade de expressão, pois eles falam – uma doutrina límpida da qual as proclamações e leis terroristas são apenas um longo comentário.
Na ordem econômica, a coletividade a partir daí cuida de seus próprios assuntos e dispensa os indivíduos. Com a abolição do comércio de cereais (3-11 de setembro de 1793), ela socializa as reservas agrícolas. Com a criação do tabelamento de preços (leis de 29 de setembro de 1793 e 24 de fevereiro de 1794), ela acaba com a atividade comercial. Com a requisição universal de trabalho e habilidades (16 de abril de 1794), o próprio esforço de produção é abolido. Esse é o fim do regime pessoal para o povo e o príncipe, nos campos e nas oficinas e no Louvre.
Toda indústria: de metais, minas, armas, salitre, passa às mãos do Estado.
Quando o povo está no trono, é o Estado que assume o controle.
Esse sistema artificial exigiu uma implantação tão prodigiosa de violência que recebeu o nome de Terror. O reino do impessoal é um inferno: a democracia, o príncipe impessoal, governa para trás, e o Estado, o povo impessoal, trabalha desnorteado. Essas são as duas grandes verdades que a doutrina da revolução nega e que sua história comprova. Como pode esse paradoxo afirmar-se a si mesmo contra o senso comum, primeiro, e depois contra direitos e interesses, durar dez meses e continuar por dois anos?
É que o trabalho das Sociedades Filosóficas, através de seu aconselhamento intelectual e seleção social, havia criado um estado de espírito moral. Em todos os grandes problemas de interesse público existia uma opinião das Sociedades que era oposta à verdadeira opinião [pública]. A legislação terrorista não é o trabalho conjunto de políticos, mas apenas o eco das opiniões das Sociedades – a tal ponto que os decretos da Convenção eram preparados e algumas vezes votados e aplicados de antemão pelas Sociedades.
E as Sociedades – tendo em vista serem o povo – apropriam-se de e exercem sem controle os direitos dos quais o novo regime priva os eleitores. O povo perdeu o direito de eleger seus magistrados de acordo com os procedimentos legais, e as Sociedades assumem o direito de removê-los contínua e arbitrariamente. O povo foi desarmado sistematicamente, até a última arma, e as Sociedades pegam em armas. Elas treinam, removem e dirigem grupos especiais à vontade – os “exércitos revolucionários” que elas supervisionam na guerra contra o “inimigo doméstico”. Dessa maneira, as Sociedades só se tornam bastante numerosas (quase 1900 em janeiro de 1794) e “unidas” após a derrota do cisma girondino, e predominantes a partir do “medo” de setembro e da prisão dos suspeitos.
Contudo, a substituição da vida real pela vida da Sociedade não ocorreu de modo suave. Ao primeiro contato com coisas [reais], a razão dos “legisladores” era contradita, muitas vezes em menos de uma semana.
Os mercados têm pouco estoque e assim a Convenção decreta, em 11 de setembro de 1793, que os grãos não mais serão vendidos em qualquer lugar, mas somente lá. Imediatamente os mercados se esvaziam, e provisões tornam-se raras e caras. A Convenção, com o decreto de 29 de setembro, baixa os preços de varejo, imaginando que o atacado preferiria fazer o mesmo a nada vender. [Mas] os preços de atacado se mantiveram, em menos de uma semana as lojas se esvaziaram e os lojistas ficaram de pires na mão. A mesma lei que decretou o tabelamento do preço da carne fez o mesmo quanto ao preço do gado, o que levou ao fim da pecuária e ao abate do gado. A Convenção apressadamente revoga seu decreto para salvar a pecuária (23 de outubro). Mas então os açougueiros, que ainda tinham tabelamentos, param de comprar e de abater, o que desencadeia o desabastecimento em uma indústria após a outra: curtumes, sapatarias, fábricas de uniformes militares, terminando com a falta de carne e pão (fevereiro de 1794). Em 11 de abril de 1794, o Comitê de Salvação Pública, animado com os resultados de seu censo, requer para Paris e os exércitos todo porco de oito anos, o qual deixa com seu dono até a data da entrega. Este, ao invés de alimentá-lo, deixa-o definhar e morrer.
Todas as tentativas de socialização levam a impasses desse tipo. Se essas tentativas se dirigissem a homens, essas lições brutais os teriam feito parar e pensar, mas um fenômeno social não pensa. Esse fenômeno avança de desastre em desastre, produzindo uma floresta de leis não-naturais cujo sucesso nas Sociedades e aprovação pela Convenção foram tão fatais como sua imposição no país foi absurda ou impossível.”
(Extraído da seleção de textos de Augustin Cochin, Organizing the Revolution)
El martirio según el martirologio
Há um dia