quinta-feira, 22 de março de 2012

Uma análise de alguns pontos da Encíclica Pascendi (I)

“São Pio X, ao terminar a primeira parte de sua magistral encíclica Pascendi, escreve que no caminho que conduz ao aniquilamento de toda religião os protestantes deram o primeiro passo, os modernistas o segundo e o próximo será o do completo ateísmo.
Vamos pois começar estudando este primeiro passo que foi dado pelos protestantes, isto é, por Lutero e todos aqueles que sofreram sua influência. Em seguida, examinaremos o segundo passo que é o modernismo, suas causas e seu conteúdo doutrinal. Para terminar examinaremos brevemente o modernismo nas reformas do Concílio Vaticano II.
I. Lutero e seus discípulos
Revoltando-se contra a autoridade doutrinal da Igreja, Lutero vai fazer da liberdade individual o árbitro supremo em matéria religiosa. Com o seu “livre exame”, Lutero abriu o caminho, como diz Leão XIII, às variações infinitas, às dúvidas e às negações a respeito das mais graves questões.
Ele não só ataca a Igreja, mas também a própria razão.
“A razão, dizia ele, é diretamente oposta à Fé [...] Entre os fiéis ela devia ser exterminada e enterrada (...) ela é a prostituta do demônio. Ela só pode blasfemar e desonrar tudo o que Deus fez ou disse.”
Lutero, antecipando-se aos modernistas e aos neomodernistas, vai atacar o método escolástico, que faz toda a solidez da teologia católica.
“É impossível reformar a Igreja”, diz ele, “se a teologia escolástica e a filosofia não são inteiramente desenraizadas, assim como o Direito Canônico”. E ainda: “A lógica não tem nenhuma utilidade em teologia, pois o Cristo não tem necessidade das invenções humanas”.
Este tesouro da Igreja que é a teologia e a filosofia escolásticas será sempre combatido pelos inimigos da Igreja. Descartes (1596-1650), filósofo francês, embora sendo católico, vai igualmente desprezar a escolástica e dar início à filosofia moderna, também chamada de filosofia separada. Após Descartes virá Kant, protestante, que marcará a filosofia com o seu sistema. Kant (1724-1804) é um dos pais do idealismo. Vamos tentar resumir o seu sistema.
Para Kant, nós só podemos conhecer as aparências das coisas, ou seja, a realidade acessível aos sentidos, os fenômenos, como ele diz. Para Kant, a única ciência verdadeira é a Física. A Física não atinge a essência das coisas, mas só o que está ao alcance dos sentidos.
A essência das coisas, para Kant, é incognoscível. Eis porque, para Kant, a filosofia não é uma ciência e nós não podemos conhecer nem a Deus, nem a alma, nem mesmo a Revelação ou qualquer intervenção de Deus na vida dos homens.
No entanto, Kant vai, através da moral, afirmar a existência de Deus, da alma, do Céu, etc. “Eu destruí a razão para dar lugar à Fé”, diz ele. Mas fazendo isso Kant tira todo fundamento à Fé. Para Kant a existência de Deus é uma verdade prática. Deve-se dizer que Deus existe porque é útil afirmar a sua existência, embora não se possa prová-la. Sua existência é útil e mesmo necessária à moral. Eis o único fundamento para afirmar a sua existência.
Assim, Kant vai separar as verdades em dois grupos: as verdades científicas, que são as da Física, e as verdades morais, que não são científicas. Deus, os milagres, a revelação, nada disso pode ser conhecido com certeza, nada disso é objeto de ciência. É, na verdade, o que pensam a maioria de nossos contemporâneos, sob a influência dessas doutrinas.
O sistema de Kant é bastante complexo. Vamos reter sobretudo o seu agnosticismo, isto é, a doutrina que nega que nós possamos conhecer a essência das coisas, ou seja, que só podemos conhecer as aparências sensíveis. Nós veremos esse agnosticismo presente no sistema dos modernistas.
Ao mesmo tempo que Kant professa o agnosticismo, ele ensina o imanentismo, isto é, nós encontramos a verdade dentro de nós mesmos, como se ela fosse fabricação nossa e não adequação de nossa inteligência com a realidade.
Agnosticismo e imanentismo serão os dois fundamentos do modernismo.
Após essa brevíssima incursão na filosofia de Kant, vejamos dois autores protestantes que podemos chamar de precursores do modernismo: Ernest Daniel Schleiermacher (1768- 1834) e David Friedrich Strauss (1808-1874).
Como Kant, Schleiermacher dirá que a religião não tem nenhum fundamento racional. Os milagres, o pecado original, a divindade de Nosso Senhor, nada disso tem fundamento. Avançando por este caminho, ele dirá que pouco importa saber se Nosso Senhor é Deus ou não, pois a religião é um sentimento, um puro sentimento.
“Você crê que outrora, há dezenove séculos, algo aconteceu fora de você e para você. Nós, ao contrário, cremos que algo se passa em nós; temos nossa fé em Cristo. Por que você quer saber o que é o Cristo em si mesmo, o que é a Revelação em si mesma, e o que é o milagre em si mesmo? Esses juízos não têm nenhum interesse para a alma religiosa.”
Para Schleiermacher, o valor de um dogma, o valor da religião está na sua utilidade prática. O resto não tem nenhuma importância. Desta forma, sonhava ele reunir todas as confissões protestantes, reunindo-as na religião do sentimento, numa religião sem dogma, sem doutrina, sem nenhum conteúdo intelectual.
Schleiermacher fala de sentimento, de experiência emotiva e piedosa, a Bíblia mesma é só uma coleção de experiências religiosas que devem provocar em nós outras experiências.
Para ele, o dogma tem um papel puramente simbólico para exprimir muito imperfeitamente as diferentes experiências religiosas. O dogma não deve separar os homens, pois o importante é a experiência, o sentimento religioso. Sobre esta base pode-se fundar um ecumenismo tal como desejam os progressistas mais exaltados.
Após Schleiermacher, vejamos Strauss.
Strauss, assim como o seu mestre Ferdinand Christian Baur (1792-1860), vai se interessar pelo estudo das Sagradas Escrituras e, seguindo a teoria de Kant sobre a verdade prática e a verdade científica, ele vai opor o Jesus da história ao Jesus dos Evangelhos. Ele escreverá uma vida de Jesus na qual ele tenta explicar todos os milagres como sendo o fruto da imaginação das primeiras comunidades cristãs. Haverá, então, duas histórias de Jesus. Uma verdadeira, sem milagres, e outra, mística, com milagres.
II. O modernismo nos meios católicos
Praticamente todas as teses modernistas já haviam sido professadas pelos protestantes. Nos meios católicos, alguns sacerdotes foram tomados pelo desejo de não ficar atrás daquilo que lhes parecia ser um avanço científico dos protestantes alemães. Alguns desses sacerdotes mal formados e desdenhosos da escolástica se lançaram na leitura dos protestantes e dos filósofos modernos e adotaram em grande parte as suas teses.
É de todo esse conjunto de falsa ciência, de curiosidade malsã e de orgulho que vai nascer o modernismo.
Na França, o principal expoente do modernismo será o sacerdote Alfredo Loisy (1857-1940). E vários outros autores na França como na Inglaterra e na Itália vão se embrenhar pelo mesmo caminho. Em fevereiro de 1903, é condenado por Leão XIII um primeiro livro de Loisy. Em seguida, o Santo Ofício põe no Índex (lista dos livros proibidos) diversos livros do mesmo autor. Em 1907 São Pio X condena 65 proposições modernistas no documento Lamentabili. No mesmo ano, no dia 8 de setembro, é publicada a grande encíclica Pascendi.
III. Pascendi
A encíclica está dividida em três partes principais:
1. A doutrina modernista
2. A causa do modernismo
3. Os remédios contra o modernismo
Veremos breve e incompletamente as duas primeiras partes da encíclica, mas pensamos que será o suficiente para expor o essencial desta magnífica encíclica, que merece ser lida integralmente e estudada com maior profundidade do que podemos fazer neste breve artigo. Para indicar melhor o nexo do que acabamos de ver com a própria encíclica Pascendi, vamos começar pelas causas do modernismo, isto é, pela segunda parte.
A respeito da origem do modernismo, São Pio X indica três causas: duas morais e uma intelectual. As causas morais são: a curiosidade e o orgulho; e a intelectual é a ignorância.
a) A curiosidade, como diz São Pio X, se ela não é sabiamente regrada, basta para explicar todos os erros. A curiosidade é a mesma coisa que o espírito de novidade. Foi esse espírito de novidade que levou e continua a levar tantos católicos a ler os autores protestantes assim como os autores modernistas e os filósofos modernos (Kant, Hegel, Nietzsche, Bergson, Heidegger, Sartre, Teilhard de Chardin, Rahner, De Lubac, Congar, etc) e, desta forma, acabaram virando modernistas e perdendo a Fé. É o que se passa nos seminários progressistas.
b) A segunda causa, que é a mais importante, é o orgulho: “Em verdade, diz São Pio X, nenhum caminho leva mais diretamente e mais depressa ao modernismo do que o orgulho”.
“Que nos dêem um leigo católico, que nos dêem um padre, diz São Pio X, que tendo perdido de vista o princípio fundamental da vida cristã, a saber, que nós devemos renunciar a nós mesmos se quisermos seguir Jesus Cristo, e que não tenha arrancado o orgulho de seu coração: este leigo, este padre está maduro para todos os erros do modernismo.”
Quanto à ignorância, São Pio X diz:
“Sim, estes modernistas que se apresentam como doutores da Igreja, que elevam até as nuvens a filosofia moderna e que olham com tanto desprezo a escolástica, eles abraçaram esta filosofia moderna enredados pelas suas aparências enganadoras porque, ignorando a escolástica, lhes faltou o instrumento necessário para discernir os erros e dissipar os sofismas.”
E São Pio X conclui:
“Sim, é da aliança entre a falsa filosofia e a Fé que nasceu, repleto de erros, o sistema dos modernistas.”
Passando depois às causas, não mais da origem, mas da propagação do modernismo, São Pio X indica os ataques feitos contra a escolástica, contra a Tradição, contra a autoridade dos Padres da Igreja e contra o Magistério.
Mas é tempo de vermos a doutrina modernista, exposta e condenada pela Pascendi. Trata-se, como já vimos, da 1ª parte da encíclica. Esta parte está dividida em sete itens, que são como sete capítulos, nos quais vem exposta toda a doutrina modernista. Estes capítulos são os seguintes:
1. O filósofo modernista
2. O fiel modernista
3. O teólogo modernista
4. O historiador modernista
5. O crítico (exegeta) modernista
6. O apologeta modernista
7. O reformador modernista
Nós veremos apenas o 1º, o 2º e o 7º capítulo, ou seja: o filósofo modernista, o fiel modernista e o reformador modernista.”
(Dom Tomás de Aquino, O.S.B, A Encíclica Pascendi)