domingo, 25 de março de 2012

Uma análise de alguns pontos da Encíclica Pascendi (II)

1. O filósofo modernista
Os princípios do filósofo modernista são praticamente os mesmos que já vimos em Kant: o agnosticismo e o imanentismo. O agnosticismo é o princípio negativo e o imanentismo é o princípio positivo. O agnosticismo diz que nós só podemos conhecer os fenômenos, ou seja, as aparências sensíveis. Todo o resto é incognoscível. Daí se deduz que os milagres são incognoscíveis, que a Revelação externa, assim como toda manifestação de Deus na História, é impossível, pois nós não teríamos meios de conhecê-la.
Assim também, as provas da existência de Deus, da existência da alma e toda a filosofia são desprovidas de valor. Essas teorias, sobretudo a negação de que podemos provar a existência de Deus, já foram condenadas pela Igreja. O Concílio Vaticano I definiu solenemente que a razão pode provar a existência de Deus a partir das criaturas.
Após destruir as bases do conhecimento, vem o princípio positivo, que será o imanentismo.
Eis como São Pio X explica essa passagem do agnosticismo para o imanentismo.
“Eles passam de um a outro da seguinte maneira: natural ou sobrenatural, a religião, tal como qualquer outro fato, pede uma explicação. Ora, a teologia natural uma vez repudiada, todo acesso à revelação suprimido pela rejeição dos motivos de credibilidade, toda a revelação externa inteiramente abolida, é claro que a explicação da existência da religião não deve ser procurada fora do homem. É, então, dentro do homem mesmo que ela se encontra, e como a religião é uma forma de vida, a religião deve se encontrar na vida mesma do homem. Eis aí a ‘imanência religiosa’.”
E São Pio X prossegue:
“Todo fenômeno vital ― e a religião é um deles, como eles dizem ― tem por primeiro estimulante uma necessidade, e como fundamento este movimento do coração chamado sentimento.
Por conseguinte, como o objeto da religião é Deus, devemos concluir que a fé, princípio e base de toda a religião, se deve fundar em um sentimento, nascido da necessidade do divino.”
Desses dois princípios vão decorrer inúmeras conseqüências.
Pelo primeiro princípio, que é o do agnosticismo, os modernistas negam que a inteligência possa provar a existência de Deus. Daí se deduz que Deus não é objeto de ciência e que Deus não pode ser objeto da história. Deste princípio, somado ao princípio da imanência vital, isto é, de que a religião é objeto só de sentimento, se conclui que:
1. A ciência, assim como a história, não tem Deus por objeto e, portanto, deve ser atéia, na prática.
2. A Fé é um sentimento.
3. A Fé não vem “pelo ouvido”, como ensina São Paulo, mas vem do subconsciente do próprio homem.
4. A revelação tem sua origem também nesse sentimento e, por isso, a consciência religiosa de cada um não está submetida à autoridade da Igreja.
5. O sentimento religioso transformou os fatos reais dos Evangelhos, e, portanto, é preciso suprimir dos Evangelhos tudo o que não está de acordo com a ciência.
6. Todas as religiões provêm do mesmo sentimento religioso e, portanto, todas as religiões são verdadeiras.
7. A religião católica nasceu da consciência de Jesus Cristo segundo as leis da imanência.
8. O dogma é uma expressão imperfeita do sentimento religioso e, portanto, o dogma pode e deve evoluir na medida em que o sentimento religioso evolui.
9. As fórmulas religiosas (ou dogmas) devem ser vivas, assim como o sentimento religioso.
10. Para permanecerem vivas, as fórmulas religiosas devem estar sempre adaptadas ao fiel e à sua fé. No dia em que essa adaptação cessa, elas perdem a sua razão de ser. Daí o pouco caso que os modernistas fazem do dogma.
Como se pode ver, e segundo a expressão de São Pio X, os modernistas chegaram a esta loucura de perverter a eterna noção da verdade. Para eles, a verdade não é a adequação da inteligência com a realidade (natural ou sobrenatural), mas sim a adequação da inteligência com o sentimento, com a vida, isto é, com algo que não tem conteúdo inteligível.
E, ao mesmo tempo que os modernistas se perdem em suas loucuras, eles têm a audácia de repreender a Igreja por se apegar teimosamente e esterilmente a fórmulas vãs e vagas, segundo eles, enquanto que ela, a Igreja, deixa a religião correr à sua ruína, dizem eles.
Como exemplo dessa audácia dos modernistas, podemos citar os ataques feitos à palavra transubstanciação (a qual significa a transformação da substância do pão e do vinho em Corpo e Sangue de Nosso Senhor, no momento da Consagração). Podemos dar ainda como exemplo a definição da missa, a doutrina do reinado social de Nosso Senhor e a própria encíclica Pascendi julgada antiquada pelos neomodernistas. Tudo isso para os modernistas deve mudar com a vida e com o “progresso” da humanidade (os comunistas têm uma doutrina semelhante, ao dizer que o modo de pensar muda cada vez que mudam as estruturas econômicas).
2. O fiel modernista
Para o filósofo modernista, Deus só é objeto de sentimento. Se Ele existe ou não, isso não o interessa. Mas, para o fiel modernista Deus existe em si mesmo, independentemente do homem. E como o fiel modernista chega a essa certeza? Pela experiência individual. Assim, se os modernistas se separam dos racionalistas, é para adotarem a doutrina dos protestantes e dos pseudomísticos.
Eis como os modernistas explicam essa certeza da existência de Deus. “Se nós penetramos o sentimento religioso, descobrimos aí facilmente certa intuição do coração, graças à qual e sem nenhum intermediário o homem atinge a realidade mesma de Deus”.
E se perguntamos que tipo de conhecimento pode produzir essa intuição do coração, eles respondem: “Uma certeza da existência de Deus que ultrapassa toda certeza científica. Trata-se de uma verdadeira experiência, superior a todas as experiências racionais”. E se perguntamos por que há então homens que negam a existência de Deus, o fiel modernista dirá que é porque eles não se põem nas condições morais necessárias para fazer essa experiência. Desta forma, os modernistas suprimem toda atividade propriamente racional da Fé. A Fé modernista é irracional; ela é puro sentimento.
Tudo isso é evidentemente contrário à Fé católica e abre o caminho para o mais completo relativismo, pois se isso fosse verdade, todas as religiões seriam verdadeiras. E é isto que observa São Pio X ao escrever: “Uns de maneira velada e outros abertamente, todos eles afirmam que todas as religiões são verdadeiras”. E como poderiam eles negar essa conclusão? “Isto não poderia ser feito senão mostrando a falsidade do sentimento ou da fórmula (dogma) que o exprime. Mas, segundo eles, o sentimento é sempre e em toda parte o mesmo, substancialmente o mesmo, e quanto à fórmula religiosa, expressão do sentimento religioso, tudo o que eles pedem é que ela esteja adaptada ao fiel e ao mesmo tempo à sua fé”.
Mas os modernistas não reivindicam uma superioridade da religião católica sobre as outras? Sim, mas uma superioridade de grau e não de natureza, pois, dizem eles, “ela é mais verdadeira porque ela é mais viva”.
De todos esses erros eles tiram conseqüências importantes a respeito da Tradição, assunto que nos interessa de maneira toda especial, porque no documento que excomungou Dom Lefebvre e Dom Antônio de Castro Mayer estava dito que eles não tinham uma noção acertada de Tradição. Escutemos São Pio X:
“Outro ponto a respeito do qual os modernistas se põem em oposição flagrante com a fé Católica é que eles transferem para a Tradição o princípio da experiência religiosa. A Tradição, tal como a entende a Igreja, se encontra totalmente arruinada”.
Antes de demonstrar o conceito que os modernistas têm da Tradição, vejamos o que ensina a Santa Igreja: A fonte da Fé é uma só: é a Revelação. Mas a Revelação foi transmitida aos homens de duas formas. Escrita e oral. A escrita é a Sagrada Escritura, a oral é a Tradição. Nesse sentido, diz o Concílio Vaticano I, seção III, cap. III Denz. 1792: “Fide divina et catholica ea omnia credenda sunt, quae in verbo Dei scripto vel tradito continentur...” (Deve ser crido com fé divina e católica tudo o que está contido na palavra de Deus escrita ou transmitida). Aqui, a palavra “transmitida” significa a Revelação sob forma oral, na medida em que ela não faz parte da Sagrada Escritura.
A palavra Tradição se entende também como sendo todo o Magistério infalível da Igreja, isto é, todos os dogmas ensinados pela Igreja. A Tradição possui uma anterioridade sobre a Escritura, porque a Santa Igreja foi constituída por Nosso Senhor antes que qualquer livro, Evangelho ou epístola, fosse escrito.
Vejamos agora o que dizem os modernistas. Para eles a Tradição é a “comunicação feita a outros de alguma experiência original, através da pregação e por meio de uma fórmula intelectual”. Que valor, que virtude atribuem eles a essa fórmula intelectual? “A essa fórmula intelectual, além da sua virtude representativa, como eles dizem, eles atribuem ainda uma virtude sugestiva”. Qual o papel dessa virtude sugestiva? Seu papel “se exerce sobre o fiel, para despertar nele o sentimento religioso, adormecido talvez, ou ainda para ajudá-lo a renovar as experiências já feitas ou para gerar nos descrentes o sentimento religioso e conduzi-los às experiências que se deseja para eles”.
“É assim, dizem eles, que a experiência religiosa vai se propagando através dos povos e não somente entre os contemporâneos, pela pregação propriamente dita, mas também de geração em geração, por escrito ou pela transmissão oral”. “A verdade de uma tradição seria, então, medida pela sua sobrevivência, de tal modo que se ela for viva ela é verdadeira, se ela se perder ou diminuir, ela é falsa ou menos verdadeira ou era verdadeira e não é mais”, podemos concluir:
Um neomodernista antes do Concílio dizia: “Toda teologia que não é atual é falsa”. Eis aí uma doutrina puramente modernista. Daí a importância dada pelos modernistas à expressão “Tradição viva”. Aliás, os modernistas têm sempre a palavra vida e seus derivados nos lábios. Tradição viva, magistério vivo, Rede Vida, imanência vital. Algumas dessas expressões podem ter um significado correto, pois não se pode excluir a palavra vida do vocabulário, mas é de se notar que são expressões caras aos modernistas e que, para eles, têm um significado especial. Para o modernista, tudo o que tem vida é verdadeiro. Por isso, todas as religiões existentes, ou seja, vivas, são verdadeiras.
Vejamos agora as relações entre a Fé e a ciência. Antes de mais nada, lembremos que ao condenar o agnosticismo, São Pio X lembra que é de Fé definida que a razão humana pode provar a existência de Deus a partir das criaturas. Este dogma foi definido pelo Concílio Vaticano I. Ora, para os modernistas não há nada em comum entre a Fé e a ciência. Deus não pode ser conhecido pela razão de modo algum. “O objeto da Fé é justamente o que a ciência declara ser ‘incognoscível’. Daí dois campos inteiramente distintos: a ciência se ocupa dos fenômenos e a Fé não tem nada a dizer em relação a eles. Por sua vez, a Fé se ocupa do que é divino e a ciência não tem nada o que dizer a respeito”. Logo, não pode haver conflito entre a ciência e a Fé, já que cada uma tem objetos inteiramente distintos. Como elas nunca se encontram, elas podem discordar entre si.
Mas se nós objetarmos que há realidades visíveis, que são objetos tanto da ciência como da Fé? Por exemplo, a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. Que respondem os modernistas? Eles dizem que foi a Fé que transfigurou a vida de Nosso Senhor e, assim, a Fé subtraiu a vida de Nosso Senhor do alcance da ciência, transportando-a ao nível do divino, que está acima da realidade sensível. Mas se nós perguntarmos: E os milagres e as profecias? Nosso Senhor não fez milagres e não profetizou vários acontecimentos? Não, responde a ciência agnóstica. Sim, responde a Fé modernista. Eis aí a doutrina deles.”
(Dom Tomás de Aquino, O.S.B, A Encíclica Pascendi)