“A doutrina bíblica e católica da justificação apresentada acima foi geralmente aceita por todos os cristãos durante 1.500 anos. Nos últimos séculos, contudo, um grave equívoco sobre essa doutrina foi a principal causa de trágicas divisões e da formação de centenas de pequenas comunidades eclesiais e denominações fora da Igreja de Jesus Cristo – a Igreja Católica. Alguns desses grupos militantemente atacam a Igreja Católica por sua supostamente “não-bíblica” doutrina da justificação.
Em vez de confiar em 1.500 anos de tradição cristã a fim de interpretar corretamente as epístolas de São Paulo (as quais, segundo a advertência de seu colega apóstolo Pedro, são às vezes “difíceis de entender” e podem ser perigosamente mal interpretadas – II Ped 3, 16), Lutero, Calvino e outros reformadores protestantes confiaram em suas próprias capacidades pessoais de interpretação bíblica e cometeram graves erros.
A Igreja Católica considera ser ensinamento da Bíblia que, tendo em vista a salvação eterna do cristão depender de sua perseverança tanto na fé como nas boas obras até o fim de sua vida, nenhum de nós pode estar completamente seguro de que irá eventualmente alcançar a felicidade eterna no Céu. Existe a possibilidade de que cairemos em pecado mortal e perderemos nossa alma para sempre. Assim, devemos permanecer “sóbrios mas vigilantes, porque vosso adversário, o demônio, anda ao redor de vós como o leão que ruge, buscando a quem devorar” (I Pe 5, 8). São Paulo aconselha contra a presunção: “Quem pensa estar de pé veja que não caia” (I Cor 10, 12) e deixa claro que ele mesmo tem que fazer esforços espirituais constantes: “para não ser excluído depois de eu ter pregado aos outros” (I Cor 9, 27). São Paulo também alerta explicitamente cada fiel contra o “juízo prematuro” a respeito de seu próprio status espiritual diante de Deus. E continua: “Por isso, não julgueis antes do tempo; esperai que venha o Senhor. Ele porá às claras o que se acha escondido nas trevas. Ele manifestará as intenções dos corações. Então cada um receberá de Deus o louvor que merece” (I Cor 4, 5). Os protestantes tendem a minimizar ou distorcer tais passagens, colocando uma ênfase seletiva sobre outras onde São Paulo mostra uma grande confiança em ganhar sua coroa de glória eterna (e.g., II Tim 4,8; Rom 8, 38-39). Uma avaliação equilibrada de todas as passagens relevantes traz à luz a doutrina católica: devemos ter esperança e confiança na graça e na misericórdia de Deus, que nos deseja salvar; mas ao mesmo tempo devemos evitar a presunção de antecipadamente afirmar a certeza absoluta de nossa própria salvação pessoal.
Lutero e Calvino achavam difícil de suportar esse elemento de incerteza quanto à sua própria salvação e imaginavam ter descoberto, no ensinamento de São Paulo sobre a “justificação pela fé sem as obras”, a promessa da certeza que tanto buscavam. Como já vimos, São Paulo queria apenas dizer que quando estamos em estado de pecado, nossas próprias obras jamais causarão nem merecerão que
nos tornemos justificados. Mas os reformadores pensavam que ele também queria dizer que as boas obras jamais contribuem para que
permaneçamos justificados e assim alcancemos a salvação eterna.
A maior parte dos grupelhos que mesmo nestes tempos ecumênicos continuam hostis à Igreja Católica tende a seguir o ensinamento de Calvino em vários aspectos: eles defendem que, uma vez “renascidos” ou convertidos ao estado de graça (justificação), é impossível decairmos dessa graça por nossos pecados e perdermos ao fim nossa salvação. Eles insistem no princípio “uma vez salvo, sempre salvo”. Os pregadores e membros dessas igrejas descrevem-se a si mesmos como “salvos” por sua “fé em Jesus como Salvador pessoal” e dizem-nos que estão absolutamente seguros de ir para o Céu quando morrerem.
Às vezes eles pensam assim porque acreditam que quaisquer pecados que cometam no futuro, não importa quão graves, serão simplesmente desprezados por Deus por causa de sua fé nos méritos salvíficos de Jesus. Em outras palavras, eles afirmam que, se mantivermos nossa confiança em Jesus como Salvador, não perderemos o favor e a graça de Deus ainda que cometamos um pecado mortal! Outros cristãos evangélicos, percebendo que esse ensinamento é manifestamente não-bíblico, consideram-se a si mesmos
não mais capazes de cometer quaisquer pecados mortais. Tais pessoas gostam de citar Mateus 7, 18, onde Nosso Senhor ensina que “uma árvore boa não pode dar maus frutos, nem uma árvore má bons frutos.” Eles deduzem daí que os fiéis cristãos autênticos – tais como eles mesmos – são simplesmente incapazes de produzir os “maus frutos” do mau comportamento. Eles se esquecem de que Jesus nunca deu qualquer garantia de que toda “árvore boa” iria sempre
permanecer boa. Assim como as boas árvores podem eventualmente apodrecer e produzir maus frutos, os bons cristãos podem sucumbir à tentação e cometer pecados mortais. E ao fazê-lo, perdem a graça e põem suas almas em perigo. Os protestantes também gostam de citar as palavras de Jesus em João 5, 24: “Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não incorre na condenação, mas passou da morte para a vida.” A expressão “vida eterna” é usada aqui, como em algumas outras passagens, com o significado de “vida de Deus dentro de nós”, ou em outras palavras, o dom da graça santificante. A vida de Deus, da qual participamos pela graça, é obviamente eterna
em si mesma; mas aqui Nosso Senhor não está dizendo que jamais poderemos nos separar dessa vida divina por nossos próprios pecados. Aqui está subentendido que nossa “não-incorrência na condenação” depende de
permanecermos na graça que recebemos.
Uma suposta garantia de salvação instantânea e permanentemente segura pode parecer bastante atraente, e muitos católicos – principalmente os que põem a procura por uma “experiência” espiritual à frente da procura pela verdade doutrinal – deixaram-se seduzir e se afastaram da Igreja com essa promessa presunçosa e ilusória, especialmente porque os protestantes que ensinam essa falsa doutrina são em geral pessoas sinceras, devotas e zelosas. Mas na própria epístola aos Gálatas, um dos livros bíblicos favoritos dos protestantes, São Paulo contradiz a idéia deles de que uma vez justificados ou convertidos nós jamais poderemos decair da graça e terminar em danação eterna. O Apóstolo diz que os cristãos que insistem em reviver as práticas da circuncisão e de outras antigas leis rituais judaicas do Antigo Testamento, como se fossem necessárias para a salvação, “separaram-se de Cristo e decaíram da graça” (Gál 5, 2-4). Ele também insiste junto aos cristãos já convertidos para que “vivam de acordo com o Espírito” e evitem cair na imoralidade sexual, violência, inveja, bebedeira e outros pecados mortais. Paulo avisa-os de que “os que assim se comportam não herdarão o Reino de Deus” (Gál 5, 19-21). O sentido claro e natural de tal ensinamento paulino é a doutrina católica perene de que os fiéis cristãos podem realmente decair da graça e perder suas almas se não se mantiverem em alerta contra as artimanhas do Inimigo. Não admira que quinze séculos passassem sem que ninguém interpretasse os escritos de São Paulo segundo o entendimento protestante.”
(Rev. Brian Harrison, O. S,
Faith, Works and Justification)
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