“Ao final de seus
Exercícios Espirituais, na
Primeira regra “para sentir exatamente o que devemos na Igreja militante”, diz Santo Inácio de Loiola: “Deposto todo e qualquer juízo [próprio], devemos ter o espírito preparado e pronto para obedecer em tudo à verdadeira Esposa de Cristo Nosso Senhor, que é a nossa Santa Madre, a Igreja Hierárquica [ou seja, o Papa e sob ele a universalidade dos Bispos].” E na
Décima terceira regra: “Para que em todas as coisas cheguemos à verdade, devemos manter [o princípio] de crer que o branco que eu vejo é preto, se a Igreja Hierárquica assim o determinar, crendo que entre Cristo Nosso Senhor, Esposo, e a Igreja, sua Esposa, não há mais que um mesmo espírito, que nos governa e rege para a salvação de nossa alma, porque Nossa Santa Madre Igreja é governada pelo mesmo Espírito e Senhor nosso que deu os Dez Mandamentos.”
E o que diz aí Santo Inácio é absolutamente de fé; negá-lo é pecar contra a fé. Há porém dois pressupostos para que assim seja: 1) o de que o declarado pela Hierarquia diga respeito a fé e costumes (donde a referência a cores por Santo Inácio ter caráter meramente metafórico); b) o de que a Hierarquia queira, no que declara, imperar e impor doutrina, querer este que basta, de per si, para a assistência infalível do Espírito Santo. (Quanto aos graus de infalibilidade das declarações papais, e a todos os demais assuntos relacionados a este tema, cf.
A Candeia Debaixo do Alqueire, do Padre Calderón.) Ora, o que caracteriza a Hierarquia desde o Concílio Vaticano II é precisamente o fato de que, em vez de
impor doutrina do alto de sua autoridade,
depõe essa autoridade, reduzindo a sua própria função a mero papel de coordenação “democrática” do debate proposto pelos teólogos e de um suposto
sensus fidei “infalível” do conjunto dos fiéis.
Tudo isso tem uma base filosófica: a crença de fundo hegeliano ou nominalista de que ou a verdade é mutável, ou não é alcançável por nossa inteligência, ou não se pode traduzir na “pobre” linguagem humana. E, se vários são os corolários de tal modo de pensar, dois deles nos interessam particularmente aqui: primeiro, a descrença na fixidez dos dogmas; segundo, a redução da religião a mera “experiência” (nunca muito bem definida, por impossível, diga-se). Por esses corolários é que o Concílio Vaticano se disse pastoral e não dogmático; por esses corolários é que todas as declarações e documentos conciliares e pós-conciliares são como sugestões para debate, porque neles nunca se dá a vontade de imperar nem, pois, se empenha ou compromete a infalibilidade papal, que tem justamente aquela vontade por pressuposto.
E não confundamos a autoridade fundada na Verdade com a autoridade fundada na mera jurisdição: aquela é
simpliciter efetiva; esta é
maquiavélica no sentido preciso do termo. Ora, se em geral as leis iníquas, que parecem não ser leis (“Lex esse non videtur, quae iusta non fuerit” – Santo Agostinho,
Sobre o Livre-arbítrio, L. I, c. 5, n. 11), por isso mesmo não obrigam no foro da consciência (“… tales leges no obligant in foro conscientiae” – Santo Tomás de Aquino,
Suma Teológica, I-II, q. 96, a. 5,
corpus), o que dizer das leis disciplinares fundadas na negação de uma das verdades católicas centrais, qual seja, a de que a doutrina da Igreja não pode mudar porque é imutável como o seu próprio autor, Deus mesmo? Com efeito, diz o Concílio Vaticano I: “O Espírito Santo não foi prometido aos sucessores de Pedro para que, com sua assistência, promulgassem uma nova doutrina, e sim para que, com sua assistência, conservassem santamente e expusessem fielmente a revelação transmitida pelos Apóstolos, ou seja, o depósito da fé” (Constituição Dogmática
Pastor Aeternus, cap. 4). Por que o disse esta Constituição? Por que dissera São Paulo aos Gálatas (I, 9): “Ainda que nós mesmos, ou um anjo do Céu, vos pregue um evangelho diferente do que nós vos anunciamos, seja anátema.”
Por tudo isso, portanto, é que os católicos não devemos ao magistério fundado no Concílio Vaticano II (e em seus pressupostos filosóficos) a obediência que Santo Inácio propugnava; e isto vale, naturalmente, para a última encíclica do Papa Bento XVI,
Caridade na Verdade. Posto, pois, este preâmbulo, podemos passar agora ao que me faz escrever este breve artigo: a atitude de avestruz de alguns católicos conservadores diante do óbvio, isto é, o não querer ver o que na referida encíclica é perfeitamente branco e nada preto. Ou vice-versa.
Tal atitude está perfeitamente resumida, e defendida, no editorial de John-Henry Westen, “Pope’s New Encyclical Speaks Against, not for One-World Government and New World Order”, para a edição de 8/7/2009 do LifeSiteNews.com. Com inequívoca intenção, escreve-se ali que “Jornais,
blogs, programas de rádio e de televisão estão cheios de discussões acerca do suposto convite do Papa Bento XVI a uma ‘nova ordem mundial’ ou um ‘governo mundial’. Estas idéias, no entanto”, prossegue o editorialista, “não se baseiam na realidade nem numa leitura clara da última encíclica do Papa,
Caritas in Veritate, cuja publicação [...] provocou a inflamada discussão”.
Deixo de lado muitos detalhes do editorial, e volto-me para a sua afirmação central: “O Papa, na verdade, fala diretamente contra um governo mundial e [...] convida a uma maciça reforma das Nações Unidas”; e “no parágrafo 41 [...] diferencia especificamente
seu [grifo nosso] conceito de autoridade política mundial [
world political authority] do de governo mundial [
one-world government]”. Concedo perfeitamente que o Papa faça a referida diferenciação e que diga o que diz John-Henry Westen em seu editorial; o que porém nenhum católico deveria conceder é que esse conceito de autoridade política mundial seja católico, ainda que em tal conceito se trate, como diz o mesmo editorialista, de uma autoridade mundial “difusa”. (O que significa exatamente uma “autoridade difusa”, isso me parece muito difícil dizer.)
Com efeito, o não-católico de tal conceito reside precisamente em que, para a imutável doutrina da Igreja, todo e qualquer poder político deve ordenar-se
essencialmente ao fim último do homem, Deus mesmo, e pois ao poder espiritual por Ele mesmo instituído na terra, a Igreja – seja o poder político local ou imperial. Defender qualquer
world political authority sem essa ordenação é gravíssimo, enquanto não o seria (falo hipoteticamente) defender um
one-world government ordenado à Igreja. Sim, porque o poder temporal se ordena ao espiritual assim como o corpo humano se ordena à sua alma. Mais que isso, porém, e quem o diz é o Papa Bonifácio VIII na Bula
Unam Sanctam, de 18/11/1302: como se ensina nos Evangelhos [Lucas, XXII, 38, e Mateus, XXVI, 52], estão em poder da Igreja duas espadas (ou gládios), “a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada
para a Igreja, enquanto a primeira deve ser usada
pela Igreja. A espiritual deve ser manejada pela mão do sacerdote; a temporal, pela mão dos reis e soldados, mas segundo o império e a tolerância do sacerdote. Uma espada deve estar sob a outra espada, e a autoridade temporal deve ser submissa ao poder espiritual” (grifos nossos; “… spiritualis scilicet gladius et materialis. Sed is quidem pro ecclesia, ille vero ab ecclesia exercendus. Ille sacerdotis, is manu regum et militum, sed ad nutum et patientiam sacerdotis. Oportet autem gladium esse sub gladio, et temporalem auctoritatem spirituali subiici potestati”). E, justamente porque as coisas espirituais sobrepujam as temporais e, em conseqüência, o poder espiritual supera em dignidade e nobreza qualquer espécie de poder terrestre, é que, “como atesta a verdade, o poder espiritual pode instituir o poder terrestre, e julgá-lo, se este não for bom” (
ibid.; “… veritate testante, spiritualis potestas terrenam potestatem instituere habet, et iudicare, si bona non fuerit”).
Poderia citar outros documentos do magistério infalível da Igreja, como a carta magna da Cristandade que é a
Quas primas de Pio XI, para corroborar o que aqui se diz da Encíclica
Caritas in Veritate. Mas bastará confrontar o que se acaba de ler de Bonifácio VIII com o que diz o mesmo John-Henry Westen no último parágrafo de seu editorial. Com efeito, lê-se aí: “Qualquer visão de uma adequada ordenação do mundo, da cooperação econômica ou política internacional, sugere o Papa, deve basear-se numa ‘ordem moral’. Isso inclui, em primeiro lugar e principalmente, ‘o direito fundamental à vida’ [...], o reconhecimento da família baseada no casamento entre um homem e uma mulher como base da sociedade, a liberdade religiosa e a cooperação entre todas as pessoas com base nos princípios da lei natural.”
Atentemos para as principais insuficiências (do ângulo da doutrina infalível da Igreja, obviamente) e contradições do texto, que porém reflete fielmente o pensamento do Papa expresso em
Caritas in Veritate:
a) A ordenação do mundo (e dos Estados que o compõem) deve, sim, basear-se numa “ordem moral”, mas não tendo por fim uma melhor cooperação política e econômica internacional, porque, como diz Santo Tomás de Aquino em
De Regno, “é necessário que o fim da multidão humana, que é o mesmo do indivíduo, não seja viver segundo a virtude, mas antes, mediante uma vida virtuosa, alcançar a fruição divina”. De fato, assim como não importa salvar a vida se com isso se perde a alma, assim também, analogamente, não importa melhorar a economia e as relações políticas internacionais se com isso, por não se fazer em ordem a Deus, se perdem bilhões de almas mundo afora. Mais ainda e acima de tudo: se com isso não se presta a devida glória a Deus, mas antes fica ela ofendida.
b) Além do mais, como é possível dizer que “o casamento entre um homem e
uma mulher” (grifo nosso) deve ser “a base da sociedade” e propor, ao mesmo tempo, a “liberdade religiosa”? Sim, porque ou não se vai dar liberdade ao islamismo, ou se terá de aceitar o casamento entre um homem e
muitas mulheres…
c) Além do mais, a defesa da “liberdade religiosa”, como tantos e tantos autores já o demonstraram à exaustão, contraria as Sagradas Escrituras, o Traditum, o magistério infalível da Igreja… e o simples bom senso, como aliás acabamos de ver pelo único exemplo do item anterior.
d) Além do mais, e por fim, como sustentar uma “cooperação entre todas as pessoas [ou seja, independentemente de religião] com base nos princípios da lei natural” se o primeiro e supremo mandamento da lei natural é amar a Deus acima de todas as coisas e não adorar falsos deuses ou ídolos, e se Cristo mesmo nos veio dizer que Deus é trino? Como poderão cumprir tal mandamento os ateus e os membros de quaisquer religiões não-cristãs? Não só isso, porém: se, como sabemos, a Igreja Una, Santa, Católica, Apostólica e Romana é de instituição divina, e é
a única que pode dirigir os indivíduos a uma vida virtuosa segundo a lei natural para que, mediante ela, alcancem a fruição divina, como crer que os heréticos e os cismáticos possam “cooperar” com tal direção única? Autoriza-nos a ter tais “esperanças” a História? Como no-las autorizaria, se, se excetuam os cerca de mil anos que vão de Constantino a Bonifácio VIII, toda a História depois de Cristo não passa de um longo cortejo de perseguições à Esposa de Nosso Senhor?
Verdadeiramente, a paz e a cooperação internacionais ou se darão sob a direção do Vigário de Cristo, ou não se darão. Ou se darão sob as bandeiras da Realeza de Nosso Senhor, ou não se darão. E, como se lê no
Catecismo da Realeza Social de Jesus Cristo, do Padre A. Philippe, C.SS.R., ainda que tudo no mundo indique a impossibilidade
aparente dessa Realeza, devemos defendê-la até a morte – não seja que, de tanto a omitirmos, acabemos nós mesmos por negá-la.
Em tempo: Dizia o Padre Pio de Pietrelcina: “Afasta-te do mundo. Escuta-me: um se afoga em alto-mar, outro se afoga num copo d’água. Que diferença há entre um e outro? Não estão mortos os dois?””
(Carlos Nougué,
A Atitude do Avestruz)
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