"Tem sua graça (embora seja graça sinistra) que uma época tão adversa a tudo que El Greco amou e desejou, creu e celebrou em seus quadros o comemore nestes dias; mas é a nossa uma época tão embotada e agônica, tão petulante e plena de disparates, que se crê capaz de desentranhar (de esvaziar as entranhas e o sentido) todo o bom, belo e formoso que nos legou nosso passado; e também certa de que o bom, belo e formoso, desentranhado de seu sentido, poderá incorporar-se à bagunça de banalidades com que apunhalamos nosso espírito. Mas a pintura de El Greco é um cavalo de Tróia demasiado indigesto, inclusive para o cinismo contemporâneo; e, com um pouco de sorte, até é possível que estas comemorações do quarto centenário da morte de El Greco sirvam para enterrar um pouco mais o cadáver apodrecido e fétido de nossa época.
Sendo completamente sinceros, a época que agora vivemos começou, precisamente, com a morte de El Greco, que foi o último representante de uma idade intermediária situada, como um sol entre precipícios, entre as idades clássica e moderna. Embora lhe tenha cabido viver na época dos humanistas que – em termos apocalípticos – inauguraram a igreja de Sardes, El Greco foi o último (e numantino!) filho da igreja de Tiatira, um fruto prazerosamente tardio daqueles mil anos que se estenderam primaveralmente com Santo Agostinho e que haviam de adquirir sua madureza mais alta com Santo Tomás. El Greco é, em essência, um pintor medieval que se rebela contra os ouropéis e rebuliços pagãos do Renascimento, contra essa esplêndida pompa do humanismo que escondia entre as dobras do vestido a peste bubônica da Reforma e que, ao final, iria envenenar a arte – sempre com a desculpa da imitação dos mestres – com a hipertrofia da casca e o esvaziamento do fundo e da substância. Em meio a uma arte complacente e suntuosa, barriguda e sedentária, que encontra na cúpula sua forma predileta, El Greco opõe sua arte faminta de Deus, ávida de Deus, arte magra, espigada e barbaramente gótica para os voluptuosos espíritos renascentistas, arte ascensional que olha sempre para o céu, como uma delgada torre de vigia que perfura com olhos absortos a alta noite.
El Greco, talvez porque procede do império bizantino, é a herança mais pura da Idade Média. Muito embora em seu estilo possamos rastrear as influências de Ticiano ou Miguel Ângelo, nas profundezas de sua personalidade artística El Greco tem mais a ver com Giotto que com qualquer de seus contemporâneos (com a única exceção, talvez, de Tintoretto). Só que, enquanto Giotto pôde desfrutar do esplendor da Cristandade, El Greco só pôde recordar com pena sua ausência, visualizando-o com os olhos da alma, enquanto os olhos de seu corpo tinham que pousar, turvados de lágrimas, em um mundo pantanoso que não era o seu; um mundo em decomposição que todavia guardava fragmentos do mundo antigo e matinal que gerou a arte de Giotto, mas que já se entregava à putrescência de um mundo novo e tenebroso, sem que nem mesmo Felipe II pudesse fazer algo para evitá-lo. A derrota da Invencível Armada poderia ser o símbolo desta dobradiça entre duas épocas que a El Greco coube viver, náufrago em um mar de ansiedades, mais consciente que ninguém de que estava assistindo ao enterro do mundo que ele desejava. Outro em seu lugar ter-se-ia declarado vencido, mas El Greco quis fazer de sua derrota uma aventura sublime.
Aquele grego bizantino, fugitivo de Creta por medo dos turcos, aprendiz de pintor em Veneza e Roma, aceitou que seu mundo havia sido enterrado; mas, como era homem de fé, sabia que depois do enterro vem a ressurreição da carne. E assim sua pintura, enterrada com o mundo que o humanismo havia assassinado, ressuscitou metamorfoseada em pintura gloriosa que, como os bem-aventurados, viaja até uma morada superior. Já se disse que El Greco é pintor de almas; mas muito mais exatamente poderíamos dizer que é pintor de corpos gloriosos, pintor de criaturas libertadas dos cuidados, tentações e pecados de nossa caminhada mortal, traspassadas de luz, porque estão – em cada veia e artéria, em cada víscera secreta, em cada volta e revolta dos intestinos, em cada célula – plenas de Deus, pletóricas de Deus, diáfanas e dispostas a penetrar até mais além das nuvens, "perspícuas e perspicazes", segundo a descrição a que Marsilio Ficino aventura-se dos ressuscitados.
As figuras e paisagens que preenchem os quadros de El Greco não foram copiadas da natureza, como faziam os pintores coetâneos, subjugados pelo magistério dos clássicos, mas são destilação dos resíduos que a contemplação da natureza deixou em sua alma. Deste modo, El Greco consegue captar o que a maioria de seus coetâneos, cegos para a vida da alma, nem sequer suspeitam: compreende que a natureza humana não está limitada a suas formas visíveis, e que a missão da arte não é outra senão restituir ao homem sua integridade plena, devolvendo-lhe a fé de sua união com o alto, que só se pode ver através dos olhos do espírito. Liberta-se então El Greco da tirania limitadora do desenho, da disciplina imitativa dos grandes mestres que em sua juventude veneziana e romana a ponto haviam estado de desgraçar seu gênio, e se entrega a fazer a pintura que irremediavelmente estava chamado a fazer, uma pintura que se nutre do apetite de céu da alma castelhana, ao qual por aqueles mesmos anos davam expressão mística Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz. Poder-se-ia afirmar que as figuras dos quadros de El Greco são expressão pictórica das mesmas ânsias de Deus que encontramos nos escritos de Santa Teresa e São João: nesses corpos gloriosos que irradiam sua própria luz, que emanam luz de si mesmos, em suas mãos exangues, em suas pernas trêmulas e brancas como asas de anjos, há uma vocação ascensional, um parentesco com a eternidade, uma consciência dolorida de sua anterior pertença ao mundo que só admite uma explicação mística. Nesses corpos gloriosos de El Greco, desnudos e inocentes como os de nossos primeiros pais antes de comerem do fruto proibido (ou vestidos em vão, pois não há tecido que possa cobrir sua carne refulgente), nessa carne espiritualizada, transubstanciada, eucarística, ao mesmo tempo criança e anciã, torturada e incólume, impulsionada por uma energia ofuscante até a casa acesa que é seu último destino, está a nostalgia que só o pincel de El Greco pôde ressuscitar, como prefiguração da glória parusíaca.
Por isso as figuras de El Greco se esticam pujantes até seu destino celeste; por isso parecem fazer pouco caso da dor; por isso respiram um ar mais alto e mais puro que El Greco pôde chegar a pressentir respirando o ar de Toledo, a cidade onde o céu convida a voar e os relâmpagos das tormentas são rasgões teológicos que deixam entrever o rosto terrível e benévolo de Deus. Tal como ocorre nos quadros de El Greco.”
(Juan Manuel de Prada, El Greco)
Padre ¿por qué me has abandonado? (II)
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