sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Glosas revelam um Lutero gnóstico

"Durante a maior parte da história da pós-Reforma, tem sido inquestionável nas histórias teológicas da controvérsia propor Martinho Lutero como um devoto seguidor da teologia de Santo Agostinho de Hipona, o grande oponente dos maniqueus. Isso não surpreende, dado que Agostinho é muitas vezes invocado pelos reformadores contra o dogma católico, que hereges como Calvino e Cornélio Jansen fizeram de um Agostinianismo corrompido o centro de suas doutrinas, que a ousada posição de Agostinho a favor da graça contra os pelagianos mostrou-se em certa medida útil aos reformadores que debatiam a favor da sola fide e dupla predestinação, e que o próprio Lutero foi um monge agostiniano. Estudos mais recentes, contudo, revelam uma imagem bastante diferente de Lutero. Longe de invocar Agostinho contra Roma, Lutero mostra-se desdenhoso do grande doutor de Hipona e um advogado de fato da teologia dualista dos maniqueus.
Esses desenvolvimentos primeiro vieram a lume no começo do século XX, quando milhares de notas escritas pela mão do próprio Lutero foram descobertas adicionadas nas margens de obras de Sto. Agostinho, Pedro Lombardo e outros. Essas glosas pertencem a dois períodos, 1506-1516 e 1535-1545, e desta forma representam tanto o pensamento em formação quanto o maduro de Lutero. As glosas não foram estudadas e compiladas sistematicamente, contudo, até a metade do século, sob a direção de um padre alemão, Theobald Beer, um dos mais notáveis especialistas em Martinho Lutero, cujos 35 anos de trabalho sobre o arqui-heresiarca do Protestantismo ganharam a estima do Cardeal Ratzinger, Hans Urs von Balthasar e muitos outros. Os anos de meticuloso trabalho de Beer em sistematizar e publicar essas glosas de Lutero tornaram-se públicos em 1980 com a publicação do livro de Beer de 584 páginas, Der fröhliche Wechsel und Streit. Os resultados do trabalho de Beer mostram um Lutero não enamorado por Sto. Agostinho, mas extraordinariamente hostil; na verdade, essa hostilidade toma um tom gnóstico e lança luz sobre muitas das subseqüentes críticas ao Aristotelismo e à Escolástica. Sobre a obra de Beer, o Cardeal Ratzinger escreve ao autor, "A influência do neoplatonismo, da literatura pseudo-hermética e da gnose, que como você mostra se exercia sobre Lutero, lança uma luz inteiramente nova sobre sua polêmica contra a filosofia grega e a Escolástica. De uma maneira nova e significativa você também explora, até as profundezas do ponto central, as diferenças que se encontram na Cristologia e na doutrina da Trindade."
Como é que esses elementos importantes do pensamento de Lutero se perderam? Theobald Beer assinala que aquilo que hoje conhecemos como "Luteranismo" é na verdade o pensamento do sucessor de Lutero, Philipp Melanchthon, que foi intérprete e advogado de Lutero, apesar de divergir deste em muitos pontos importantes. Ao contrário de Lutero, Melanchthon tinha pelos Padres da Igreja, especialmente Agostinho, um certo nível de reverência, admitia a utilidade da filosofia nos estudos teológicos e tendia a um certo irenismo que Lutero considerava preocupante. Melanchthon trouxe essas características para a causa luterana e serviu para moderar o Luteranismo do final do século XVI contra algumas das posições mais extremas de Lutero. Já se ressaltou muitas vezes que nenhum luterano dos tempos modernos seria pego afirmando algumas das coisas que Lutero disse, e Melanchthon, após a morte de Lutero, declarou que Lutero estava paralisado por um "delírio maniqueu". Assim é que o Lutero que conhecemos hoje é o Lutero como foi interpretado e modificado por Melanchthon.
Que é esse "delírio maniqueu" que Melanchthon atribui a Lutero? Um exemplo é a teologia da expiação de Lutero, onde ele vê uma inversão essencial da ordem divina. Sobre a cruz, "deve-se conceder ao diabo uma hora de divindade e devo atribuir malignidade a Deus". É óbvio que Lutero está de fato projetando sua própria luta com Deus sobre Cristo, deixando o Filho em uma relação verdadeiramente dualista com Deus Pai. O ódio profundamente arraigado de Lutero a Deus é colocado sobre Cristo, que assume não somente a punição devida ao pecado (teologia católica), mas também a própria culpa do pecado em si. Lutero escreve que Cristo não somente assumiu uma condição humana geral, mas submeteu-se ao diabo, de certo modo Ele está de acordo com o diabo, mas também com a disposição para o pecado.
Nas glosas de Lutero, ele se refere a Cristo não como uma pessoa, mas um compositum, uma composição; isso é necessário, pois ele afirma que a divindade e o diabólico são coexistentes nEle; Cristo é uma composição de humanidade e divindade. Aqui Lutero está se opondo à idéia tradicional de uma hipóstase única e pessoal, contra a qual debaterá pela vida inteira. Esse foi um enorme ponto de divergência entre Lutero e Melanchthon; após a morte de Lutero, Melanchthon afirmou, "As fórmulas a serem rejeitadas são: 'Cristo é composto de duas naturezas' e 'Cristo é o fruto da criação'". A primeira é obviamente uma tentativa de afastar o movimento luterano da idéia herética de Lutero sobre o compositum e assim o Luteranismo iria manter a fórmula tradicional da hipóstase. Aqui Lutero está particularmente contra Agostinho, do qual trataremos mais a seguir.
Beer ressalta que Lutero fixa-se muito mais no papel de Cristo que em Sua identidade; o que Cristo faz é mais importante do que quem Ele é. Para Lutero, Cristo tem duas funções. "A primeira", diz Theobald Beer, "é a função de proteger-nos da cólera divina e a segunda, de nos dar um exemplo. É uma justificação dupla". A natureza humana de Cristo, por adotar a disposição pecadora do homem caído, de fato se torna pecado. Eis onde um dualismo gnóstico-maniqueu entra no pensamento de Lutero. Não poderia haver qualquer reconciliação entre a carne pecadora e a natureza divina. Eis porque Cristo é compositum mas não hypostasis.
Isso também desce às raízes do relacionamento entre fé e obras. As obras, pertencendo ao homem exterior, à "carne", não podem ter nenhuma influência ou relevância para o "homem interior", ao espírito animado pela fé. Lembre-se, mesmo na graça, a carne ainda é má; Cristo simplesmente protegeu o pecador do castigo. Desta forma há uma permanente dicotomia entre fé e obras. Contra essa declaração, os partidos católicos na Dieta de Augsburgo apresentariam a famosa fórmula de São Paulo, "fé que opera pela caridade" (Gál. 5:6), que ensina claramente a união entre fé e obras e o mérito das obras feitas na fé. Lutero jamais deu uma explicação satisfatória a esses argumentos e de fato fugiu para a obra gnóstica de Hermes Trimegisto para combatê-los. Em Augsburgo, por exemplo, Lutero respondeu à citação de Gálatas dizendo:
"O relacionamento entre Deus e o homem é como uma linha tocada por uma esfera; a esfera sempre encontra a linha apenas em um ponto e é precisamente nesse ponto onde Cristo está situado. Estamos sempre no mesmo caminho, mas a esfera sempre nos toca apenas em um único ponto."
Isso é tirado diretamente de Hermes Trimegisto, que escreveu, "Deus é uma esfera infinita cujo centro está em todo lugar... Deus é uma esfera com tantas circunferências quantos há pontos." Em uma das glosas traduzidas por Beer, no Evangelho de João, Lutero comenta sobre a afirmação de Cristo, "Antes que Abraão fosse, eu sou" e diz, "Isso é o que acontece em todos os nomes em relação ao acidente, mas não à substância. Cristo não disse, 'Antes que Abraão fosse, eu sou Cristo'; Ele disse simplesmente, 'Eu sou'." Em outras palavras, ele introduz a distinção entre substância e acidente na pessoa de Cristo, vendo a divindade no compositum como a substância e a humanidade como o acidente. Em outro lugar Lutero diz, "O que o branco representa em relação ao homem é o que Cristo representa em relação ao Filho do Homem." A humanidade de Cristo não é necessária à pessoa de Cristo; é meramente acidental e por isso pode assumir a disposição fundamental ao pecado sem corromper Sua divindade. Isso está muito perto do dualismo gnóstico.
Há portanto algo fundamentalmente bem mais profundo nas objeções de Lutero ao Catolicismo do que o uso de indulgências ou outros desentendimentos de pouca importância. Lutero contradisse o próprio núcleo da Cristologia tradicional, uma Cristologia que é aceita hoje tanto pela maioria dos protestantes como pelos ortodoxos. Imagine-se como o Concílio de Trento teria reagido se tivesse tais escritos à sua disposição. Esse pavoroso "delírio maniqueu" é a razão pela qual Melanchthon tentou de todos os modos remodelar o Luteranismo em uma forma mais em consonância com a Cristologia tradicional.
Aqui chegamos ao desdém de Lutero por Agostinho, pois foi Agostinho, mais do que qualquer outro Padre, que articulou o entendimento correto de Cristo dentro da Trindade. Em De Trinitate, Agostinho escreve, "Diz-se que o Pai invisível, junto com o Filho também invisível, enviou esse mesmo filho e tornou-O visível". Escrevendo em 1509, Lutero rabisca nas margens, "Vejam só que estranha conclusão!" Lutero não podia aceitar uma missão intertrinitária por causa da função fundamental de Cristo como refúgio à cólera divina. Cristo tem duas naturezas, mas elas estão perpetuamente em oposição.
Essa oposição se estende até a Igreja. Já que a natureza humana como tal não participa da natureza divina, a Igreja também não participa. Lutero escreve, "A Igreja é um corpo externo mas não participa da natureza divina". Melanchthon se opõe ditando, "A pessoa de Cristo foi enviada à Igreja para lhe trazer o Evangelho do coração do Pai Eterno". Há uma verdadeira penetração do divino no humano em Melanchthon que a perspectiva maniquéia de Lutero não lhe permite jamais admitir. Lutero chega até a negar que a natureza humana de Cristo tivesse qualquer participação na redenção: "Cristo trabalha pela nossa salvação, mas sem a cooperação da natureza humana". A natureza humana é tão irremediavelmente corrupta, tão distante da divindade, que nem mesmo na pessoa de Cristo ela pode servir para algum bem. Para Cristo a única utilidade de Sua humanidade é "tornar-se" nosso próprio pecado.
A gnose de Lutero é profundamente arraigada; Beer cita muitos outros lugares onde Lutero, comentando as Escrituras, cita Hermes Trimegisto, ensinamentos neopitagóricos, e usa imagens gnósticas, como a do Leviatã ou dos Titãs. Ele vê a divisão fundamental entre fé e obras como tão profundamente arraigada que há essencialmente dois tipos de pessoas. Em suas glosas de 1531 a Gálatas, Lutero escreve, "Deste modo um é o Abraão que crê, um é o Abraão que age, um é o Cristo que redime, um é o Cristo que age... distinguir entre essas duas coisas como entre céu e terra". O dualismo aqui é profundo.
É por essa razão que Lutero particularmente despreza Agostinho, que escreveu tão eloqüentemente contra os maniqueus de sua época. Nas Confissões, por exemplo, onde Agostinho critica a idéia de duas divindades lutando uma com a outra, Lutero escreve na margem, "Isto é falso. Esta é a origem de todos os erros de Agostinho". Assim é que Lutero ataca Agostinho por atacar o Maniqueísmo; é por isso que Melanchthon por sua vez acusa Lutero de delírio maniqueu, precisamente porque a idéia de dois deuses, de dois Cristos, emerge de Lutero.
Outro exemplo: Quando Agostinho ataca o gnóstico Porfírio em De Trinitate VII, 6, 11, Lutero defende o argumento de Porfírio contra Agostinho, escrevendo à margem, "[O termo] 'pessoa' em Deus é um termo comum a muitos e significa a substância da divindade". Isso é profundamente contrário a Agostinho, que defendeu a posição ortodoxa de que pessoa se refere não à substância de Deus, mas às distinções dentro dEle. Se pessoa se referisse à substância de Deus, Ele não seria capaz de ter uma personalidade trinitária, dado que Ele é uma única substância. É assustador que Lutero tenha sido considerado como uma espécie de agostiniano. Ele desprezava Agostinho e achava que sua obra era cheia de erros. Lutero se coloca ao lado dos maniqueus contra Agostinho.
É verdade que Lutero não postula uma substância maligna autônoma, como fazem os maniqueus, mas para ele, Deus é fundamentalmente mau. Quando São Paulo escreve que em Cristo a plenitude de Deus habita corporalmente (Col. 2:9), Lutero escreve, "É bom que tenhamos um tal homem, porque Deus em si mesmo é cruel e mau". Isso reflete a experiência pessoal de Lutero com Deus, que por sua vez transborda sobre sua teologia.
O trabalho de Theobald Beer compilando as glosas de Lutero revela um Lutero que de 1509 até a década de 1540 está convicto de uma determinada teoria cristológica, da qual até seus próprios contemporâneos se envergonhavam e que tentavam minimizar. Sua relegação da natureza humana de Cristo à irrelevância prática, seu dualismo gnóstico na divisão que ele põe entre os componentes materiais e imateriais do homem, sua confiança nas obras herméticas de Hermes Trimegisto e sua antipatia furiosa a Sto. Agostinho, tudo isso revela um Lutero muito mais perturbado e perdido do que antes se imaginava. Em seu questionamento das próprias naturezas de Cristo e a estrutura da Trindade, Lutero é muito mais problemático do que antes se pensava, pois seus ataques à fé ocorrem em um nível muito mais fundamental do que indulgências e purgatório.
E sendo assim, qual o efeito disso nas relações luterano-católicas? As estranhas idéias de Lutero são algo com o qual os católicos podem dialogar? É claro que Lutero não é o Luteranismo e a maioria dos luteranos de hoje se envergonharia de professar as idéias de Lutero como próprias. Ainda assim, mesmo que o Luteranismo moderno tenha se distanciado do "delírio maniqueu" de Lutero, não deixa de ser verdade que a maneira na qual uma coisa começou determina seu curso. Os eruditos católicos e todos os católicos envolvidos em esforços evangélicos ou "diálogo" com luteranos fariam bem em se educar a respeito desse lado até então desconhecido de Martinho Lutero."

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