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quinta-feira, 4 de junho de 2020

A abolição do senso comum


"Um dos traços mais assustadores de nossa época é a abolição do senso comum. Aquela fábula do rei desnudo, na qual um menino intrépido se atrevia a dizer o que todos calavam, alcançou hoje seu paroxismo; só que o desenlace dessa fábula seria hoje trágico, pois o rei de imediato privaria do pátrio poder os pais desse menino, que entregaria a um casalzinho desagradável, para que o "reeducasse".
O desprestígio do senso comum não é um fenômeno recente. Todos os sistemas filosóficos prometeicos que quiseram negar a natureza das coisas se preocuparam com anatemizar o senso comum. Assim, por exemplo, Hegel (o Antiaristóteles por excelência) arremete no prólogo de sua Fenomenologia do espírito contra 'o senso comum e a imediata revelação da divindade, que não se preocupam com cultivar-se com a filosofia’ e que são ‘a grosseria sem forma nem gosto’. Resulta, na verdade, muito revelador que Hegel vitupere na mesma frase a Revelação divina e o senso comum humano; prova inequívoca de que sabe misteriosamente – como só sabem os que crêem e tremem – que ambos se amamentam da mesma luz.
E é que, com efeito, o senso comum não é um amontoamento informe de opiniões casmurras ou tópicas sobre isto, isso e aquilo. O senso comum é o juízo são que permite o conhecimento da verdade das coisas; e é um sentido que tem toda pessoa, com independência de que seja crente ou incrédula, se não foi ofuscada por visões culturais ou ideológicas deformantes. Toda a história da filosofia moderna tem sido um combate – às vezes soterrado, às vezes furioso – contra o senso comum e contra os filósofos que o sustentaram, começando por Aristóteles. E em nossa época esse combate se transladou à política, que nos impõe construções abstratas e utopias mórbidas com escassa ou nula ancoragem na ordem real das coisas. As ideologias modernas conseguiram instaurar deste modo uma nova barbárie (como sempre ocorre quando se perde contato com a realidade), só que desta vez se trata de uma barbárie mais incitante e apetitosa, porque nos faz crer que somos soberanos.
Não pensemos bobalhonamente que esta abolição do senso comum propõe em troca diversas ‘versões relativistas’ da realidade. Pelo contrário, embora ofereçam temperos variados, o certo é que as ideologias em luta oferecem as mesmas definições dogmáticas que, por suposto, negam o senso comum e postulam a subversão da ordem real das coisas. Suas premissas não podem ser discutidas; e os que se atrevem a fazê-lo são de imediato marcados, desprestigiados, estigmatizados, até mesmo civilmente eliminados. E, entretanto, as definições dogmáticas contrárias à ordem real das coisas são proclamadas por ‘iluminados’ de esquerdas e direitas com todos os meios propagandísticos postos a seu serviço, até a abolição completa do senso comum, até a transformação dos homens em bestas escravizadas que, além disso, se crêem grotescamente soberanas.
Nestes últimos momentos assistimos à última ofensiva contra o senso comum, com a imposição de leis que atentam contra a própria natureza humana, que a retificam até torná-la uma paródia (não à toa os clássicos chamavam o demônio ‘o macaco de Deus’) e que consagram a morte civil dos que ousem resmungar. No entanto, mais agoniante ainda que estas leis que nos estão a impor é a preguiça inane da única instituição que, por ser depositária da Revelação divina, poderia reavivar o senso comum entre os homens escravizados. Essa preguiça inane gela o sangue nas veias."
(Juan Manuel de Prada, La Abolición del Sentido Común)

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Juan Manuel de Prada sobre a Nova Ordem Mundial


"O progressismo Matrix converteu-se numa espécie de fé messiânica: instaurou uma nova ordem, impôs paradigmas culturais inatacáveis, estabeleceu uma nova antropologia que, prometendo ao homem a libertação final, lhe reserva apenas o suicídio futuro. E a única ordem capaz de se erguer contra esta nova ordem quase religiosa é a ordem religiosa, que restitui ao homem a sua verdadeira natureza e lhe propõe uma visão cabal do mundo, que ataca os fundamentos da ilusão na qual assenta a nova tirania, dissolvendo as falsificações. Trata-se de uma visão que a nova tirania combate denodadamente; com efeito, essa ordem religiosa é a única fortaleza que ainda lhe falta derrubar, para que o seu triunfo seja completo. O laicismo dominante acusa a Igreja de se imiscuir na política, aduzindo aquela sentença evangélica que costuma ser arvorada por pessoas que nunca leram o Evangelho: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus." Mas, afinal, quais são as coisas que são de César? São as coisas temporais, as realidades terrenas; mas não são os princípios de ordem moral que resultam da natureza humana, nem os fundamentos éticos da ordem temporal. A nova tirania, que tão zelosa se mostra de expandir as "liberdades" dos seus súditos, não hesita em recusar à Igreja a liberdade de ajuizar a da moralidade da sua atuação temporal, ciente que está que tal juízo contém uma radical subversão da ilusão sobre a qual assenta a nova tirania. Anseia por uma Igreja farisaica e corrompida, que renuncie a restituir ao homem a sua verdadeira natureza e que acate esse "mistério da iniquidade" que é a adoração do homem; anseia por uma Igreja que se ajoelhe diante de César, convertida na "grande rameira que fornica com os reis da terra" de que nos fala o Apocalipse."
(Juan Manuel de Prada, A Nova Tirania - O Senso Comum contra o Progressismo Matrix)

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Globalismo viral


“A praga do coronavírus, cujas consequências mal começamos a saborear, nos oferece uma ocasião inigualável para mudarmos nossa enlouquecida forma de vida. Contudo, como nos ensina o Apocalipse, os homens se distinguem sempre, depois de sofrer uma calamidade, por voltar aos mesmos caminhos; e esta conduta irracional, tristemente repetida em todos os crepúsculos da História, se repetirá também agora.
A ninguém escapa que a praga do coronavírus teria um caráter estritamente doméstico se não vivêssemos em um mundo globalizado. O coronavírus teriam comido com batatas os chineses, cujos governantes tirânicos teriam que dar explicações a seus súditos, a quem continuam dizimando das formas mais selvagens há muito tempo. Uma praga circunscrita à China teria feito cambalear a horrenda tirania que ali governa, aberrante híbrido de capitalismo e comunismo; e talvez até servido para que o povo revoltado contra seus governantes tivesse descoberto a origem oculta da praga, que desconfio tenha sido escape de laboratório. No entanto, como vivemos em um mundo globalizado, os chineses espalharam no planeta inteiro o coronavírus, como fazem com todas as tralhas, quinquilharias, bugigangas e porcarias que fabricam. E, ao distribuir os estragos do vírus por todas as nações da terra, os chineses acolheram com resignação oriental (ou seja, com fatalismo) o que diz o provérbio: “Mal de muitos, consolo de tolos”.
Também em nossa aceitação da globalização, como na resignação oriental, há um componente aziago de fatalismo. Por fatalismo diante de um progresso ilimitado e inevitável (eis que não se podem colocar portas no campo!) impôs-se o globalismo como modelo indiscutido de organização social, econômica e política. Naturalmente, tal modelo de vida não era mais que o ‘marco’ que a nova mutação do capitalismo precisava para continuar concentrando a propriedade; mas as massas cretinizadas acabaram tomando gosto pelos novos hábitos que tal ‘marco’ lhes impunha, resumíveis em um consumo irrefreado de tralhas, quinquilharias, bugigangas e porcarias. O que inclui tanto a compra de produtos vindos das paragens mais remotas do atlas como o consumo mesmo do atlas, mediante a expansão mastodôntica do turismo. E assim o planeta inteiro se tornou um sabá de bulimia universal, que nos que estão no comando é bulimia de colecionadores e, nas massas cretinizadas, bulimia de criança que entra em loja de guloseimas e as quer comer todas, empanturrando-se como se não houvesse amanhã.
Chesterton afirmava que o capitalismo é uma heresia porque, em lugar de olhar as coisas criadas e ver que são boas (como fez Deus no Gênese), as olha e vê que são bens. Todas as flores, todos os pássaros, todos os pores do sol, todos os rochedos e cumes elevados, todas as estrelas colocadas à venda, cada uma com seu preço correspondente. E a praga do turismo globalista representa a estação última dessa heresia monstruosa, pondo o mundo inteiro em liquidação, para desfrute de consumidores insaciáveis. O mesmo globalista aproveita o fim de semana para ‘dar uma escapadinha’ (na realidade para abarrotar-se de tralhas, quinquilharias, bugigangas e porcarias) a Milão ou Nova York; e, se o fim de semana pode ser esticado alguns dias a mais, dá um pulo até Xangai (para fazer o mesmo). O lugar-comunismo ambiental pretende que ‘cada um faz com seu dinheiro o que quer’; mas o certo é que aqueles que gastam seu dinheiro em ‘dar escapadinhas’ de fim de semana a Milão ou Nova York, além de serem uns globocaipiras e uns consumidores compulsivos, são carcaças vazias, pessoas que precisam buscar fora de si o que não encontram em seu interior, talvez porque só encontrem esterco. E que, ademais, querem transformar o mundo inteiro no reflexo de sua alma. Trazendo o coronavírus para casa, conseguiram-no plenamente.
Se no mundo ainda restasse um pouco de sanidade, depois da hecatombe que o coronavírus vai causar, renegaríamos a loucura que nos levou a aceitar um modelo de organização social, econômica e política decididamente anti-humano. E, com a abolição do globalismo, nos obrigaríamos – antes de assinar um ‘Protocolo de Quioto’ - a ficarmos quietinhos em nossa aldeia, desfrutando de suas modestas belezas, muito melhores de qualquer maneira que as tralhas, quinquilharias, bugigangas e porcarias que trouxemos do outro extremo do atlas, empanadinhas com o coronavírus. Mas está escrito no Apocalipse que os homens, depois de sofrerem uma calamidade, voltam aos mesmos caminhos.”
(Juan Manuel de Prada, Globalismo Vírico)

https://www.xlsemanal.com

domingo, 26 de janeiro de 2020

Corrupção benéfica


“E que ocorreria se, como assinalava Huntington, a corrupção fosse 'um fator de modernização e de progresso econômico'? Que ocorreria se, como afirmava sem recato algum Churchill, a corrupção servisse 'como um lubrificante benéfico para o funcionamento da máquina da democracia'? E aqui, certamente, não nos referimos à democracia como procedimento eleitoral, nem como regime político, mas à democracia tristemente vigente, a democracia entendida como religião antropoteísta, cujo princípio – permita-se-nos citar a Gómez Dávila – 'é uma opção de caráter religioso, em ato pelo qual o homem assume o homem como Deus'. Esta religião antropoteísta, em lugar de prometer ao homem bens espirituais e eternos (como fazem as religiões que seguem crendo em Deus), promete-lhe bens materiais e perecíveis. Em A cultura não é o que importa, uma obra recopilada pelo citado Huntington, afirma-se que a sobrevivência de certas 'crenças pré-modernas' enraizadas na fé religiosa impede a 'eficiência econômica'; e que não há outro modo de consolidar a democracia que substituí-las ou adaptá-las 'de forma não violenta'. Esta substituição ou adaptação não violenta é, exatamente, o que realiza a democracia entendida como religião antropoteísta: seus adeptos renunciam a seus bens eternos (resumíveis na salvação da alma) e em troca obtêm as recompensas materiais e perecíveis as quais lhes obtém a eficiência econômica: Estado de bem-estar, direitos de braguilha, subvenções e outras sinecuras, eleições em abundância, etcétera.
E uma vez alcançada a 'eficiência econômica' que consolida a democracia, a corrupção se torna – como assinalava Churchill – seu 'lubrificante benéfico'. Pois, como o próprio Huntington explica em A ordem política nas sociedades em mudança, a corrupção serve para superar as barreiras administrativas que reduzem o investimento e distorcem os preços da economia. A corrupção – ensina-nos o célebre politicólogo ianque – 'agiliza os processos burocráticos e seleciona os atores do mercado, a fim de que prevaleçam aqueles que investem de forma decidida, inclusive subornando, em seus projetos empresariais'. Pois, com efeito, em um ambiente competitivo, as pessoas que estão dispostas a pagar maiores subornos são os agentes econômicos mais eficientes. E, ademais, a corrupção gera ingressos alternativos para políticos e funcionários, que servem para complementar seus salários. Graças à corrupção, pois, os salários de nossos políticos e funcionários podem manter-se em um baixo nível de remuneração, reduzindo a carga impositiva sobre o comum da população.
A corrupção, em suma, é benéfica para a democracia, como assinalava Churchill. É verdade que, como nos ensinava Salústio, 'desde que a glória, a autoridade e o mando seguem as riquezas, decaiu o lustre da virtude e se teve a inocência de costumes por ódio e má vontade'. Mas isto a quem importa? O democrata antropoteísta se enfastia de que, em troca destes subornos, os políticos o roubem e vomita sua raiva (e sua inveja) nas redes sociais, ou troca de políticos nas eleições, embora intua (sem necessidade de haver lido Lampedusa) que os que os substituam farão exatamente o mesmo. Mas, no fundo de seu coraçãozinho apodrecido, sabe que o destino dos homens que renunciaram aos bens eternos não é outro que deixarem ser arrebatados seus bens materiais.”
(Juan Manuel de Prada, Corrupción Benéfica)

quinta-feira, 19 de julho de 2018

As sete trombetas


“Escrevia Leon Bloy que, toda vez que queria inteirar-se das últimas notícias, lia o Apocalipse. É que, com efeito, no Apocalipse, sob sua aparente linguagem críptica, encontramos uma explicação profunda das vicissitudes da História humana. Ocorre assim, por exemplo, na narrativa das "sete trombetas". Um anjo toca a trombeta e sobre a humanidade se abatem pragas horrendas e arrasadoras; mas os homens, ao invés de se escarmentarem, perseveram no erro: "E os homens que não foram mortos com estas pragas, não se arrependeram das obras saídas de suas mãos, nem deixaram de adorar os demônios, e os ídolos de ouro, de prata, de bronze, de pedra e de madeira, os quais não podem ver, nem ouvir, nem andar; e não se arrependeram de seus homicídios, nem de suas feitiçarias, nem de sua fornicação, nem de seus furtos." Com o que, à praga sofrida, sobrevém outra praga todavia maior. Esta pertinácia no erro é uma das notas mais constantes da História humana: inexplicável se não considerássemos a intervenção do mistério da iniquidade.
Estamos vendo-o no desenvolvimento do que os semiletrados chamam 'crise econômica', autêntica praga bíblica que, como ocorre sempre, tem sua origem em uma obra saída de mãos humanas: o 'dinheiro fantasma' a que aludimos em um artigo anterior, a transformação do dinheiro em um 'ídolo' que deixou de ser um símbolo que representa o valor das coisas para multiplicar-se de maneira mágica, desligado da riqueza real. Bastaria somar o produto interno bruto de todas as nações da terra, por um lado, e o valor – muito maior! - que se atribui ao dinheiro fantasma que flui pelos mercados financeiros, por outro, para que concluíssemos que, com efeito, essa multiplicação é uma 'feitiçaria' e um 'furto'; e para que compreendêssemos que, toda vez que se trata de tornar efetivo esse 'dinheiro fantasma' toda vez que um Estado paga a parcela de sua dívida aos 'investidores' financeiros, toda vez que se realiza uma operação bursátil que torna milionários tais 'investidores', o que na realidade se está fazendo é subtrair dinheiro da espoliada economia real. Pois, não sendo o dinheiro um espírito, senão um símbolo que representa o valor das coisas, só pode fazer-se 'real' encarnando-se nas coisas que existem; ou, como ocorre nas mágicas financeiras, vampirizando-as, arrebatando-lhes a vitalidade, até deixá-las espremidas e exaustas. Por isso sobem nossos impostos, baixam nossos salários ou reduzem as chamadas 'prestações' sociais (que não são senão 'contraprestações', pois previamente as pagamos): porque o 'dinheiro fantasma', para não ser um mero cômputo que passeia errabundo pelos terminais informáticos dos mercados financeiros, necessita "corporizar-se', aniquilando a vítima que lhe presta seu sustento.
Para exorcizar esta praga, bastaria que renunciássemos à obra saída de nossas mãos; ou seja, que deixássemos de 'adorar' esse daimon que é o dinheiro fantasma. Bastaria, enfim, que renegássemos a 'feitiçaria' (a multiplicação fantasmagórica do dinheiro) e o 'furto' (a depredação da economia real, perpetrada através das exações acima mencionadas), instaurando uma economia na qual o dinheiro voltasse a ser um símbolo da riqueza real das nações, recuperando aquela noção de economia como 'administração razoável dos bens necessários à própria vida' que preconiza Aristóteles, frente a essa noção funesta de crematística ou 'arte de enriquecer sem limites' que o mesmo Aristóteles considerava perversão da economia, consistente em fazer crer que o dinheiro pode ser ordenhado como se fosse uma vaca. Mas o dinheiro não pode ser ordenhado, só pode ser consumido; e toda vez que a 'feitiçaria' dos mercados financeiros finge que o está ordenhando, o que na realidade faz é consumi-lo, consumindo-nos. Tudo que até hoje se tentou como paliativo à crise nada mais fez que agravá-la: os 'salvamentos' à banca, os 'ajustes fiscais', a 'flexibilização' do mercado laboral, os 'cortes' nas prestações, etcétera, nada mais são que expressões eufemistas do consumo da economia real, com o qual se pretende inutilmente alimentar o buraco negro gerado pelo dinheiro fantasma. Buraco que nunca será saciado, porque, toda vez que recebe uma nova transfusão de sangue, multiplica seu frenesi vampírico; e toda tentativa estéril de saciá-lo só provocará que, à praga que estamos padecendo, se suceda outra praga ainda maior, como nos ensina a narrativa das sete trombetas."
(Juan Manuel de Prada, Las Siete Trombetas)

domingo, 8 de julho de 2018

A última luz


“São muitos os leitores que me escrevem inquietos, alguns muito ofendidos em suas crenças, outros em um estado de angústia próximo à perda da fé, suplicando-me que me pronuncie sobre tal ou qual desvario eclesiástico. Durante muitos anos ofereci minha cara nua para que a quebrassem os inimigos da fé; até que, certo dia, começaram a quebrá-la também (e com que sanha!) seus supostos guardiães. Hoje atravesso uma noite escura da alma de incerta saída; pelo que, sentindo muito, não posso atender às solicitudes de meus leitores angustiados, senão em todo caso juntar-me a sua tribulação; ao invés, recordar-lhes-ei uma passagem das Escrituras que, em momentos tenebrosos, convém ter presente, para que não morra a esperança. E estas linhas serão as últimas que dedicarei a esta questão comovedora.
Em uma das visões do Apocalipse se nos fala da Grande Prostituta que “fornica com os reis da terra” e “embriaga as pessoas com o vinho de sua imoralidade”. Esta Grande Prostituta é a religião adulterada, falsificada, prostituída, entregue aos poderes deste mundo; e é a antítese da outra mulher que aparece no Apocalipse, a parturiente vestida de sol e coroada de estrelas que tem que fugir para o deserto, perseguida pela Besta. Se a Grande Prostituta significa a religião ajoelhada diante dos “reis da terra”, a Parturiente representa a religião fiel e mártir. Estas duas facetas da religião, que para Deus são perfeitamente distinguíveis, não o são sempre para os homens, que com freqüência confundem uma com a outra (às vezes por candura, às vezes por perfídia); e só serão plenamente distinguíveis no dia da ceifa, quando se separem o trigo e o joio. Entretanto, para tratar de distinguir esta religião prostituída temos de guiar-nos pelos indícios com que nos brindou Cristo: é a religião transformada em sal insípido, é a religião que cala para que gritem as pedras, é a religião que permite a “abominação da desolação”, adulterando, ocultando e até perseguindo a verdade. “Expulsar-vos-ão das sinagogas – profetizou Cristo, em um último aviso aos navegantes -. E, quando vos matarem, pensarão que estão prestando um serviço a Deus”. Evidentemente, não estava se referindo à perseguição decretada pelos reis da terra, senão à perseguição muito mais pavorosa – sumo mistério de iniqüidade – impulsionada pela Grande Prostituta.
Como fornica a Grande Prostituta com os reis da terra? Rebaixando-se diante de suas leis, transigindo diante de sua ditadura ideológica, calando diante de suas aberrações, cobiçando suas riquezas e honras, apegando-se aos privilégios e brilhos com que a têm subornado, para tê-la a seus pés; em suma, pondo os poderes deste mundo no lugar que corresponde a Deus. E como embriaga as pessoas com o vinho de sua imoralidade? Adulterando o Evangelho, reduzindo-o a uma lastimável papa bom-mocista, turvando a doutrina milenar da Igreja, cortejando os inimigos da fé, disfarçando de misericórdia a submissão ao erro, semeando a confusão entre os singelos, condenando ao desnorteamento e à angústia os fiéis, os quais inclusive assinalará como inimigos diante das massas cretinizadas, que assim poderão linchá-los mais facilmente. Ao final esses fiéis serão muito poucos; mas, por outro lado, serão terrivelmente visíveis, provocando o ódio da religião prostituída, que os perseguirá até o deserto: “ E sereis odiados por causa de meu nome, mas o que perseverar até o fim, este será salvo”.
Entretanto, Deus manterá suas promessas sobre a permanência e infalibilidade de suas palavras: “Céu e terra passarão, mas minhas palavras não passarão”. E esta última luz será nosso único consolo, enquanto nos invade a noite escura da alma.”
(Juan Manuel de Prada, La Última Luz)

domingo, 10 de junho de 2018

Liberdade de pensamento


"Em 1984, explicando as artimanhas empregadas pelo Partido para transformar o pensamento das pessoas, George Orwell conta que ocupava um lugar preferencial fazer crer que “tanto o passado como o mundo exterior existem somente na mente”. Diante do que Winston Smith, o protagonista do romance, se rebela, dizendo: “O mundo material existe, suas leis não mudam. As pedras são duras, a água é líquida, os objetos largados no ar caem sobre a crosta da terra. A Liberdade significa liberdade para dizer que dois mais dois são quatro. Se isso se admite, tudo o mais se dá por acréscimo". A Liberdade, para Orwell, se funda na verdade; e já se sabe que nada ofende tanto (sobretudo em épocas de engano universal) como a verdade. Por isso todos os tiranos que houve no mundo trataram de escamotear a verdade das coisas; e o homem livre aspirou a desentranhá-la. Nisto deveria consistir a "liberdade de pensamento". Mas... será esta a 'liberdade de pensamento' que hoje proclamamos?
Não pode sê-lo pela simples razão de que nossa época não reconhece a existência da verdade, que Orwell considerava premissa da liberdade. O subjetivismo nega que a verdade das coisas possa ser conhecida, pois considera que o entendimento está limitado pela experiência. O relativismo afirma que o que as coisas são desde nossa perspectiva e conjuntura não o seriam se a perspectiva e a conjuntura fossem distintas. O ceticismo, por fim, nos impõe duvidar de tudo, pois considera que somos incapazes de alcançar a verdade. A verdade certa das coisas evaporou-se de tudo, realizando aquele desejo do Partido que exigia que tanto o passado como o mundo exterior só existissem como figuras mentais. Curiosamente, isto não ocorre sob um poder ditatorial como o que imaginou Orwell, mas sob regimes democráticos. Mas talvez, como afirmava Kelsen em Da essência e valor da democracia, "a causa democrática apareceria desesperada se se partisse da idéia de que se pode aceder a verdades e captar valores absolutos."
Ao não se reconhecer a existência da verdade (ou diante da impossibilidade de aceder a ela), já não pode existir adequação do intelecto às coisas (que era a definição aristotélica de verdade). Abolida a verdade, invocou-se como princípio a objetividade, que pressupõe imparcialidade; mas ninguém pode crer seriamente que um sujeito que não reconhece a existência da verdade possa ser outra coisa senão subjetivo. Logo, o conceito de objetividade foi substituído pelos de sinceridade ou autenticidade, que já só podem presumir "dizer o que alguém pensa (ou sente)". A verdade se torna, então, coerência com as próprias idéias, que naturalmente terão de ser subjetivas; mas, uma vez subtraída a adequação do intelecto às coisas, como sabemos que essas idéias que cremos próprias não são em realidade idéias induzidas por outros? Como sabemos que estamos dizendo o que pensamos e não o que outros nos 'predispuseram' ou 'ensinaram' a pensar? Como sabemos que estamos pensando e não tão somente 'sentindo'? No fim das contas, nada há tão 'sincero', tão 'autêntico', como a expressão de sentimentos. E nada tampouco tão fácil de excitar, de estimular e, em definitivo, de induzir: basta comprovar a facilidade com que algumas imagens lançadas através da televisão conseguem nos indignar ou nos comover; ou a celeridade com que conseguem 'mobilizar-nos' através das redes sociais. Quando a verdade foi subtraída, nada mais simples que 'subministrar' pensamentos que nos façam sentir autênticos. Assim acreditava Adam Smith, quando afirmava que, "nas sociedades opulentas, pensar é uma operação muito especial, reservada a um reduzido número de pessoas, que subministram todo o pensamento de que deve dispor a multidão dos que penam." Assim também Rousseau, quando explicava como se 'criava' a chamada cinicamente 'opinião pública': "Corrigi as opiniões dos homens e seus costumes se depurarão por si mesmos". Em Admirável mundo novo, a fábula futurista de Huxley, esta 'liberdade de pensamento' era criada durante o sono, mediante um mecanismo repetitivo que falava sem interrupção ao subconsciente; em nossa época, isto se consegue através dos métodos, conhecidos de todos, de controle social e condicionamento dos espíritos, que nos ensinam o que podemos pensar e o que devemos rejeitar, o que convém dizer e o que convém calar, para podermos continuar sendo aceitos na manada e acolhidos no redil, onde nos aguardam no cocho os pensamentos permitidos que podemos ruminar e deglutir tranquilamente, para alívio de nossas penas."
(Juan Manuel de Prada, Liberdad de Pensamiento)

domingo, 14 de janeiro de 2018

A política do bumerangue


"Assim intitulava Agustin de Foxá um iluminador artigo de ABC no qual explicava o declive da Grã-Bretanha, dedicada durante décadas a inocular todo tipo de venenos entre seus inimigos, para destruí-los. Depois de deixar cair o tzar da Rússia, depois de favorecer a dissolução do Império Austro-Húngaro no formigueiro de repúblicas de opereta, depois de enviar agentes a pregar a livre determinação dos povos entre as colônias das potências rivais, os ingleses pensaram ilusamente que um mundo enfermo de demagogia e ateísmo cairia estrepitosamente, enquanto eles permaneceriam indenes. Mas o bumerangue que haviam lançado retornou, ensangüentado, a feri-los; e sua política de esplêndido isolamento mostrou-se de alfenim diante da avalanche de males que haviam provocado, de tal modo que seu império não tardou a sucumbir.
Um processo semelhante está acontecendo diante de nossos olhos com os Estados Unidos da América. Lá pelos anos setenta, Washington assinou com Riad um pacto pelo qual o banco central saudita se comprometia a adquirir valores do tesouro americano por uma quantidade que nunca se soube com exatidão, mas que se presume ingente e que permitiu aos Estados Unidos endividar-se até extremos desquiciados, na confiança de que os petrodólares sauditas poderiam continuar adquirindo indefinidamente dívida americana. Ademais, os sauditas convenceram outros países produtores de petróleo da região a que vendessem seu petróleo unicamente em dólares, o que ainda inchava mais esta descomunal bolha financeira. Em troca, os americanos fizeram dos sauditas "sócios preferenciais" e se comprometeram a fornecer-lhes armamento e proteção militar, assim como aos Estados satélites da região que seguiram seu exemplo, assegurando que a demanda de moeda estadunidense nas transações internacionais (os célebres petrodólares) nunca decaísse. Se houvesse que se estabelecer um marco no qual a democracia entregou sua alma e se tornou definitivamente um regime protervo haveria que se assinalar, sem dúvida, este pacto com a Arábia Saudita: pois, à parte de pôr sob sua proteção uma dinastia execrável e de amparar um regime político que perpetrou (e continua perpetrando) os crimes mais horrendos, estava entregando ao caos a região e, por conseguinte, o mundo inteiro.
Esta obscura aliança explica, por exemplo, por que os Estados Unidos invadiram o Iraque (cujo governante, Sadam Hussein, se negava a comerciar em dólares). E também por que permitiram a ascensão do Daesh, que não é senão uma sucursal saudita encarregada de estender o sunismo em suas variantes mais oprobriosas. Em troca de entregar sua alma, os Estados Unidos puderam incrementar seu endividamento e destruir a economia de seus inimigos, mediante diminuições do preço do petróleo acordadas com a Arábia Saudita. Mas o bumerangue volta agora para ferir seu lançador: a diminuição dos preços do petróleo obrigou Riad a desfazer-se de valores estadunidenses, para evitar a quebra de sua economia, o que provocou o pânico bursátil; e, por sua vez, o Irã (única potência mundial xiita e rival encarniçado da Arábia Saudita) anunciou, após voltar ao mercado petroleiro, que cobrará de seus compradores em euros, seguindo o exemplo da Rússia e da China, que em seu comércio bilateral abandonaram o dólar.
Quando quisermos explicar o que acontece no Oriente Próximo, não devemos esquecer esta breve história. Tudo fica assim mais compreensível, desde a inoperância (cumplicidade?) dos Estados Unidos com o Daesh até as intoxicações russófobas. E, naturalmente, todas as calamidades que nos aguardam, ao redor da esquina."
(Juan Manuel de Prada, La Política del Boomerang)

domingo, 17 de dezembro de 2017

Democracia e totalitarismo

"Sempre há pessoas que se revoltam quando um escritor se atreve a desafiar as convenções do pensamento hegemônico. Chesterton e Belloc, por exemplo, tornavam frenéticos certos leitores do G. K's Weekly cada vez que escreviam que capitalismo e comunismo eram heresias que, sob sua aparência dialética, encobriam uma meta comum; e os leitores mandavam aos periódicos cartas furiosas nas quais os apelidavam de "papistas", ante o que Chesterton e Belloc empunhavam o rosário e os espantavam. Hoje há pessoas que continuam se aborrecendo se um escritor se atreve a equiparar capitalismo e comunismo; mas já ninguém utiliza o insulto de "papista", talvez porque o Papado perdeu ascendência espiritual, ou porque convém fazer que o Papa seja um tipo estupendo. Assim que, quando alguém se irrita contra ti por repetires exatamente o mesmo que Chesterton e Belloc denunciavam há um século, já não te chamam papista, mas "integrista" (e nem sequer faz falta que empunhes o rosário!), que é insídia que, em um mundo tão esquerdopata como o nosso, lança uma condenação indelével sobre o réprobo.
Também se tende a apelidar um escritor de "integrista" quando se atreve a denunciar a deriva totalitária da democracia. Já nos advertia Ortega, esse feroz integrista, que "a democracia, como democracia, ou seja, estrita e exclusivamente como norma do direito político, parece uma coisa ótima. Mas a democracia exasperada e fora de si é a mais perigosa doença de que pode padecer uma sociedade"; pois "quanto mais reduzida seja a esfera de ação própria de uma idéia, mais perturbadora será sua influência, se se pretende projetá-la sobre a totalidade da vida". É que, com efeito, a democracia, nesta fase da história, deixou de ser uma forma de governo para tornar-se uma religião antropoteísta que, enquanto esfuma ou prostitui o mandato representativo, proclama-se instância última para estabelecer o bem e o mal, o justo e o injusto, entregando à aritmética das maiorias toda a regulação da vida humana. Esta "vontade de regular a totalidade da vida humana" – nos recordava Malraux, outro integrista descomunal e lefevriano – é o que caracteriza o totalitarismo; e da deriva totalitária da democracia já nos advertia Tocqueville, sumo pontífice do integrismo, em A Democracia na América: "Cadeias e verdugos eram os instrumentos grosseiros que no passado empregava a tirania, mas em nossos dias a civilização aperfeiçoou até o mesmo despotismo. Os príncipes haviam, por assim dizer, materializado a violência; mas as repúblicas democráticas de nossos dias tornaram-na tão intelectual como a vontade humana que querem reduzir. Sob o governo absoluto de um só, o despotismo, para chegar à alma, golpeava vigorosamente o corpo; e a alma, escapando a seus golpes, se elevava gloriosa por cima dele. Mas nas repúblicas democráticas a tirania deixa o corpo e vai direto à alma. O amo já não diz: "Pensai como eu ou morrereis", mas: "Sois livres de não pensar como eu. Vossa vida, vossos bens, tudo conservareis, mas a partir deste dia sereis estranhos entre nós. Permanecereis entre os homens, mas perdereis vossos direitos de humanidade. Quando vos aproximardes de vossos semelhantes, fugirão de vós como de empestados e até aqueles que creiam em vossa inocência vos abandonarão. Deixo-vos a vida, mas a que vos deixo é pior que a morte".
Esse inferno totalitário já está entre nós. E nele se enlanguescem os empestados, enquanto as massas desprevenidas não estão nem aí e arrotam felicíssimas os vapores da alfafa sistêmica que engolem sem reclamar."
(Juan Manuel de Prada, Democracia y Totalitarismo)

sábado, 11 de novembro de 2017

Civilização


“Em discurso diante do parlamento francês após os vis atentados jihadistas de Paris, o presidente François Hollande afirmou: “A França não está participando de uma guerra de civilizações, pois estes assassinos não representam nenhuma civilização”. A frase foi reproduzida em manchetes de imprensa, glosada enfaticamente nos salões de encefalograma linear e subministrada como alfafa às massas; mas ninguém se atreveu a assinalar que se tratava de uma falácia lógica de livro, pois emprega uma premissa certa para desembocar numa explicação falsa com a secreta intenção de ocultar que a certeza da premissa se funda em razões mui distintas das que se enunciam.
A França, com efeito, não está participando de uma guerra de civilizações, porque para que se produza uma guerra deste tipo deve haver duas civilizações em luta; mas a dura verdade é que os assassinos que atacaram em Paris representam uma civilização, extremo que não se pode afirmar da França. A falácia lógica de Hollande jogava com a credulidade do ouvinte, tomando a palavra ‘civilização’ no sentido com que foi difundida no Ocidente, como sinônimo de ‘progresso’ democrático. Mas uma ‘civilização’ nada tem a ver com este conceito de fantasia, inventado com o propósito de enganar as massas, que deste modo pensam que existe uma ‘civilização ocidental’, como existiu uma ‘civilização cristã’. Mas uma civilização é “um conjunto de crenças e valores compartilhados que conformam uma comunidade”: daí que todas as civilizações que já existiram, existem e existirão no mundo tenham sido fundadas por religiões; daí que todas as civilizações, quando as religiões que as fundaram se debilitam e obscurecem, se desintegrem paulatinamente, até claudicarem. Não é possível conformar uma comunidade sem uma religião compartilhada, pela simples razão de que, quando não se reconhece uma paternidade comum, toda união humana se torna impossível. Na mal chamada ‘civilização ocidental’, que não está fundada sobre uma religião mas sobre uma apostasia e uma posterior idolatria (a do progresso democrático), as uniões são no melhor dos casos quebradiças, pois se baseiam no que Unamuno chamava “a liga aparente dos interesses”; e, como os interesses costumam ser egoístas e cambiantes, a demogresca campeia por toda parte.
Só pode haver civilização onde haja uma religião compartilhada; e quando se esfuma o fundamento religioso, ou quando tal fundamento se faz em cacos, a civilização desaparece lentamente, até ser substituída por outra. Assim ocorreu, por exemplo, com Roma, que ao perder a fé em seus deuses deixou de cultivar as virtudes que a haviam feito forte, para logo se entregar em sua decrepitude a um formigueiro de seitas asiáticas devoradoras, do qual a salvou o cristianismo. Mas que não haja possibilidade de civilização sem religião não quer dizer que toda forma de civilização seja boa ou digna de consideração: eis que temos na Antiguidade os cartagineses, que fundaram uma civilização aberrante e infanticida, venturosamente aniquilada pelos romanos; e temos, como um turvo rio de sombra percorrendo a História, a civilização islâmica, que desde suas mesmas origens se expandiu através da violência, lançando uma formidável ofensiva contra uma Cristandade pululante de heresias, que Carlos Martel deteve em Poitiers, para que logo Pelayo iniciasse uma difícil reconquista da Hispânia visigótica. E esta civilização islâmica continuou dando mostras de seu caráter expansivo e violentíssimo com os turcos, que tomaram com massacres Constantinopla para serem logo detidos, primeiro em Lepanto e depois às portas de Viena. Esta civilização islâmica é a que agora volta a atacar (depois da avareza democrática ter brincado insensatamente de depor ditadores que a continham); ocorre que à sua frente já não tem uma civilização cristã disposta a fazer-lhe frente, unida em torno de uma fé comum que funciona ao modo de antídoto e reconstituinte, mas somente uma multidão apóstata, débil e amorfa de pessoas incapacitadas para o sacrifício que pensam ingenuamente que defecando quatro bombinhas por controle remoto vão exorcizar o perigo.
Os povos que renegaram sua civilização sempre perdem a longo prazo as guerras contra os povos que conservam a sua. E acabam sendo seus escravos, porque seus governantes sem fé sempre os atraiçoam, primeiro deixando que o inimigo se instale em suas terras qual cavalo multicultural de Tróia, depois fazendo o mesmo que o covarde bispo Oppas, quando o emir Muza entrou em Toledo: entregando uma lista com as cabeças que havia de cortar.”
(Juan Manuel de Prada, Civilización)

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Animalismo


“Para os que consideramos que o respeito aos animais é uma obrigação humana irrenunciável, as reivindicações dos chamados ‘animalistas’ ou defensores dos direitos dos animais constituem uma constante interpelação. Segundo o movimento animalista, os animais não só merecem um trato ético e uma proteção legal, mas devem ser sujeitos de direitos. Talvez o primeiro animalista tenha sido o filósofo Jeremy Bentham, que escreveu em sua ‘Introdução aos princípios da moral e da legislação’ (1789): “Um cavalo ou um cachorro adulto é, para além de toda comparação, um animal mais racional e mais comunicativo que uma criança de um dia, ou de uma semana, ou até de um mês. Mas ainda que se supusesse que fosse de outra forma, que importaria? A questão não é se os animais podem raciocinar nem tampouco se podem falar, mas se podem sofrer”. E, em época muito mais recente, o australiano Peter Singer, em sua obra ‘Libertação animal’ (1975), postulou que a resistência a reconhecer direitos aos animais é comparável a fenômenos históricos tão reprováveis como a escravidão racial ou a discriminação sexual. Singer se opõe ao que denomina ‘especismo’; isto é, a que um ser vivo seja titular de direitos pelo mero fato de pertencer à espécie humana. Para Singer, deve-se tratar com igual consideração todos os seres capazes de sofrer; daí que, a seu juízo, a vida de um feto ou a de uma criança com problemas cerebrais não seja mais valiosa que a vida de um chimpanzé. Esta é a razão pela qual quase todos os animalistas são defensores mais ou menos entusiastas do aborto.
O animalismo se assentaria, pois, em uma ética radicalmente empirista, que transforma em sujeito de direitos qualquer ser com capacidade para sofrer, independentemente de que seja ou não racional. Não entraremos aqui a discutir se o sofrimento tal como humanamente o entendemos pode ser experimentado no mesmo grau sem consciência racional; pois a ninguém escapa que uma reação instintiva à dor (que é a que pode experimentar um animal) em nada se parece com o sofrimento do homem, que faz da dor uma experiência moral. A falha filosófica do animalismo é muito mais evidente: só pode ser titular de direitos quem possua uma correlativa capacidade para obrigar-se. Quando proclamamos que ao homem assiste um inalienável direito à vida, estamos proclamando também que o obriga o dever de respeitar a vida dos demais homens; quando defendemos o direito à propriedade, estamos condenando o furto, e assim sucessivamente. Todo direito exige uma obrigação correlativa; e os animais, como seres carentes de razão e de liberdade, não podem ser sujeitos de direitos e obrigações. Isto não significa, por suposto, que os animais devam ficar fora da esfera de proteção jurídica. O homem tem direito a ‘domínio justo’ sobre a natureza, posto ser o único ser que pode aproveitar racionalmente seus recursos; e, ao mesmo tempo, tem o dever de proteger essa natureza e os seres vivos que a povoam.
Aqui se pode opor que tampouco as crianças no ventre, ou as pessoas com deficiências psíquicas, podem assumir obrigações. Mas os reconhecemos como membros de nossa espécie, a quem cobrimos com o mesmo manto da proteção que outorgamos aos humanos plenamente conscientes. Para Singer isto é ‘especismo’; e, desde uma lógica puramente materialista, seu raciocínio é congruente. Pois o que o animalismo pretende, em última instância (utilizando mui astutamente álibis compassivos diante do sofrimento dos animais) é negar a unicidade do ser humano, que é considerado o resultado aleatório de uma evolução natural, e apagar os traços distintivos que o tornam uma criatura única, misteriosamente singular, entre todas as criaturas que povoam a Terra. Essa singularidade é a que permite ao homem justo olhar para os animais que povoam a terra e descobrir que são ‘bons’, esforçando-se em consequência por protegê-los; essa singularidade se denomina alma.
Quando essa singularidade que existe entre o homem e o restante das criaturas se elude ou se escamoteia (quase sempre por complexos e respeitos humanos) é impossível defender cabalmente certas causas; pois a lógica materialista acaba se impondo, implacável. Por medo de defender a existência da alma se perdeu a batalha contra o aborto, por exemplo; e pela mesma razão se imporão, inevitavelmente, as teses animalistas.”
(Juan Manuel de Prada, Animalismo)

quinta-feira, 22 de junho de 2017

O mito do progresso


"Talvez não exista quimera mais falaz, maligna e destrutiva que o mito do Progresso, levedura de todas as ideologias modernas. Segundo dita quimera, a Humanidade avança para um porvir sempre melhor, em asas de avanços científicos cada vez mais refinados e de sucessos políticos cada vez mais estimulantes; e tais avanços e sucessos irão produzindo, por sua vez, um aperfeiçoamento da própria Humanidade, que devido à conquista de sucessivos direitos poderá entronizar-se a si mesma como um deus (torna-se, na verdade, hilário que as massas resistam a crer em um Deus trino e não tenham problemas em crer na Humanidade, um deus grupal ao modo da hidra de infinitas cabeças). De fato, o progressismo não é mais que um grotesco determinismo eufórico que confia (contra as evidências que nos proporciona a observação empírica) que a vocação natural da natureza humana é ascender por si mesma, ignorando que o fato mais certo e irrefutável da história humana é a Queda, da qual o homem só pode levantar-se com Deus e ajuda.
Refletia eu sobre esses assuntos faz umas semanas, enquanto contemplava no cinema uma película absolutamente idiota, sétima de uma saga automobilística e adrenalínica, que se tornou uma das mais bem-sucedidas da história do cinema. Muito rápida e furiosa, a película estava cheia de estrondos e pirotecnias avassaladoras, mas carecia de sentido, de conflito dramático, de personagens de carne e osso, de paixões nobres ou plebéias, de sentimentos dignos de tal homem, do mínimo relance de raciocínio. Enquanto contemplava com fastio e perplexidade semelhante porcaria me perguntei se era dirigido a seres humanos, ou antes a alguma espécie animal fruto de uma involução que necessitasse para sua sobrevivência de entretenimentos basbaques que não a exponham ao risco de pensar. Aqui alguém poderia objetar que a uma película cujo fim primordial é pastorear multidões não se deve exigir conflito dramático, nem personagens consistentes, nem semelhantes requintes; mas o certo é que em outras épocas – sem sairmos da esfera cinematográfica – as películas recordistas de público que desempenhavam igual função se intitulavam E o vento levou ou Ben-Hur, que enquanto pastoreavam multidões proporcionavam um entretenimento que não insultava a inteligência. Vendo aquela película rápida e furiosa cheguei à conclusão de que era o produto natural de uma época na qual o progresso técnico (muito visível na porcaria) encobre um retrocesso espiritual, moral, definitivamente humano.
A quimera do progressismo se ampara em uma miragem de grande eficácia persuasiva, segundo a qual o desenvolvimento alcançado pela ciência ou pela técnica é o sinal mais evidente do esplendor de uma civilização. Na verdade, desenvolvimento científico e civilização são conceitos que nada têm que ver entre si; pois um se refere a um âmbito puramente material e o outro a um âmbito espiritual. Que uma sociedade disponha de remédios para sanar enfermidades ou comunicar-se a distância não significa que seja uma sociedade que tenha avançado na consecução do bem, da verdade ou da beleza; inclusive poderia significar exatamente o contrário. Lamartine, em seu poema A queda do anjo, imaginava uma sociedade na qual floresciam de forma prodigiosa todos os refinamentos científicos concebíveis; mas essa sociedade, a um intenso progresso científico, unia um manifesto espírito de barbárie. Por preconceito progressista, Lamartine situava essa sociedade na pré-história, aceitando o tópico progressista que pretende que os homens temos evoluído desde a barbárie até o refinamento espiritual. As chamadas 'distopias', por sua parte, costumam imaginar futuros regidos pela barbárie; mas tal barbárie costuma produzir-se em mundos nos quais o progresso científico se deteve, ou em conjunturas políticas ditatoriais. Muito raramente aceitamos a possibilidade de um mundo evoluído cientificamente, solidamente democrático, no qual os homens tenham retrocedido espiritualmente, caminhando para a barbárie; e a razão pela qual não o aceitamos é porque esse mundo talvez já seja o nosso, um mundo rápido e furioso no qual as pessoas, imunizadas contra a nefasta mania de pensar, já nem sequer são capazes de fazer juízos éticos (o que, segundo Aristóteles, é o traço distintivo do ser humano).
Afirmava Gracián que "todo móvel instável tem aumento e declinação". Talvez os antigos pecassem de um certo determinismo aziago; mas se há algo mais equivocado que o determinismo aziago é o determinismo eufórico."
(Juan Manuel de Prada, El Mito del Progreso)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Uma montanha de mentiras


“A comemoração do septuagésimo aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial veio assentada, como não podia ser de outro modo, sobre uma montanha de mentiras e boatarias que voltam a nos confirmar que vivemos em um mundo incapacitado para qualquer regeneração; pois ali onde não há arrependimento, senão complacência no erro, só podem brotar frutos podres e venenosos. Com razão escrevia Georges Bernanos que “democracias e totalitarismos são os abscessos frios e os abscessos quentes de uma civilização degradada e desespiritualizada”.
Não poderíamos enumerar em um exíguo espaço de um artigo a ingente quantidade de mentiras que nestes dias são celebradas. Assim, por exemplo, trata-se de apresentar a derrota de Hitler como uma façanha das democracias aliadas, quando o certo é que a Hitler derrotou Stalin; e que só o desmoronamento da frente do Leste, conseguido em troca de uma mortandade incalculável de russos, favoreceu operações como o desembarque na Normandia, que o cinema depois magnificou de forma grotesca. Foi Stalin o grande vencedor daquela guerra; e em reconhecimento de sua vitória as democracias aliadas lhe entregaram meia Europa na Conferência de Yalta, para que fizesse com ela o que lhe desse na gana, como efetivamente fez.
Em troca, as democracias aliadas conseguiram que nunca se julgassem seus métodos de "libertação", consistentes em arrasar cidades até não deixar pedra sobre pedra e em bombardear populações civis do modo mais selvagem. Costuma-se recordar o caso extremo de Dresden (onde lançaram bombas de fósforo e napalm pelo gosto de aniquilar vidas inocentes), mas algo muito semelhante se fez com a maioria das cidades alemãs. E, depois deste genocídio indiscriminado, centenas de milhares de mulheres foram violadas pelos "libertadores"; e não somente, por certo, pelos soldados do Exército Vermelho (como pretendeu a propaganda oficial), mas também pelo "amigo americano", que acolhia e protegia em seu Exército as alimárias mais descontroladas.
Porém nenhuma das descomunais mentiras que nestes dias celebramos resulta tão grotesca como pretender que a derrota de Hitler constituiu a derrota de sua ideologia criminosa. Pois a metafísica que iluminava aquela ideologia criminosa correria a refugiar-se, sob disfarce democrático e pacifista, no bando dos vencedores, onde hoje campeia orgulhosa, transformada em Nova Ordem Mundial. Foi, com efeito, a Nova Ordem Mundial que tornou realidade o sonho do nazismo; foi a Nova Ordem Mundial que impôs o paganismo eufórico e endeusador do homem, o desprezo da lei natural e divina, a confiança cega e idolátrica no progresso, o desejo pseudomessiânico de alcançar uma unidade universal de formigueiro, a exaltação do individualismo e por sua vez a deificação alienante da "vontade geral", o triunfo do igualitarismo que conduz os povos à servidão, a aversão às sociedades naturais (unidas por laços de sangue e espírito) e sua substituição por sociedades de massas, a imposição de uma moral estatal, a subministração de prazeres plebeus e direitos de braguilha que mantenham controladas as massas, enquanto se tornam mais e mais egoístas. Foi a Nova Ordem Mundial que consumou, enfim, o sonho hitlerista de uma civilização degradada e desespiritualizada.
Talvez seja este triunfo do nazismo sob disfarce democrático o que a Nova Ordem Mundial celebra com tanto alvoroço, enquanto permite que as massas cretinizadas festejem na montanha de mentiras que criou para sua diversão e lazer."
(Juan Manuel de Prada, Una Montaña de Mentiras)

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

O legado de Lutero

I
Em breve começarão as comemorações do quinto centenário do chamado Dia da Reforma, no qual Lutero cravou suas célebres 95 teses na porta de uma igreja de Wittemberg. Aquelas teses, que destruiriam a unidade da fé, mudariam também traumaticamente as concepções filosóficas, políticas, econômicas e culturais vigentes, até o ponto de transformar a reforma luterana em um dos fatos mais importantes da História. A chamada Reforma, ao contrário do cisma do Oriente, não foi uma mera controvérsia eclesiástica, senão que supôs uma expressa rejeição ao Dogma e à Tradição, assim como uma negação do valor dos sacramentos. E os dogmas religiosos não são, como o ingênuo (crente ou incrédulo) pensa, meras enteléquias sem consequências sobre a realidade, senão condensação de verdades sobrenaturais que exercem um influxo muito fundo sobre nossa vida. Não se pode cortar o caule de uma roseira e pretender que as pétalas da rosa não murchem.
Durante todo um ano, vamos receber um bombardeio espantoso sobre as pretensas bondades do legado luterano. Nós, na série de quatro artigos que hoje iniciamos, oferecemos às três ou quatro leitoras que todavia nos suportam um modesto antídoto contra tal avalanche. Certamente, a Reforma de Lutero chegou quando a decadência da Igreja (minada pelo concubinato do clero, pela rapacidade e avareza de muitos religiosos e pela simonia institucionalizada) alcançava cotas lastimáveis. Mas não se dá remédio aos erros caindo em um maior; e a parábola evangélica do joio e do trigo já nos adverte contra o perigo de arrancar o joio antes do tempo (que foi, exatamente, o que quis fazer Lutero, conseguindo tão somente dispersá-lo).
No fundo daquele furor reformista de Lutero palpitava o fracasso espiritual de um homem que havia feito esforços ímprobos por alcançar a união com Deus. Mas todos seus sacrifícios, penitências e abnegações haviam sido em vão; e continuavam abrasando-o as concupiscências mais torpes (em cuja descrição, por pudor, não entraremos), que lhe causavam enorme angústia e ansiedade. Lutero considerou então (fazendo uma projeção teológica de suas próprias debilidades) que o homem pecador nada podia fazer para alcançar a salvação. Assim foi que concluiu que Cristo já havia sofrido por nossos pecados; e que, portanto, já estávamos perdoados. De modo que, para salvar-nos, bastava que se nos aplicassem os méritos de Jesus por meio da fé.
Esta justificação através exclusivamente da fé se funda em uma concepção pessimista da natureza humana, que nega a liberdade humana para vencer as tentações e também a graça dos sacramentos. O homem luterano, sem capacidade para sobrepor-se ao pecado e iluminado pela sola fide, suprime a mediação da Igreja; e será sua consciência, iluminada pelo Espírito Santo, que ordenará sua própria vida religiosa e interpretará livremente as Escrituras. E, como escreveu o grande Leonardo Castellani com seu habitual gracejo, “desde que Lutero assegurou a cada leitor da Bíblia a assistência do Espírito Santo, esta pessoa da Santíssima Trindade começou a dizer umas asneiras espantosas”. O livre exame luterano desencadeou a enfermidade da inteligência denominada diletantismo, que depois contagiou, por processo virulento de metástase, toda a cultura ocidental, primeiramente com as roupagens do fátuo endeusamento intelectual, por último com os farrapos lastimáveis do desejo de saber sem estudar e da soberba da ignorância. As consequências da Reforma luterana no plano filosófico e moral não se fariam esperar.
II
Ao afirmar o princípio do livre exame, que atribui ao homem uma faculdade onímoda para ordenar sua vida religiosa, Lutero antecipa o imperativo categórico de Kant, que proclamaria a suficiência absoluta da vontade humana para emanar normas de conduta, estabelecendo-se assim o homem como único legislador e árbitro de sua vida moral. Por sua vez, com sua tese do servo arbitrio, que julga o homem incapaz de eleger o bem, Lutero se torna involuntariamente o promotor do niilismo filosófico e ético.
Lutero, discípulo dos nominalistas Wesel e Biel, inseriu no pensamento de seus mestres um asfixiante pessimismo antropológico. Julgava que a inteligência humana, danificada pelo pecado original, estava incapacitada para abstrair o universal e pensar nas coisas do espírito; mas, ao mesmo tempo, considerava que era bastante apta para desenvolver-se com pragmatismo no mundo. Inevitavelmente, um homem eximido de discernir uma ordem moral pode refugiar-se em sua consciência subjetiva. O bem já não será uma categoria que o homem discerne através da razão, senão o que em cada momento determine que é bom (ou, dito de modo mais realista, o que lhe convenha) e o mal, o que entenda que seja mal (ou seja, o que lhe prejudique). Danilo Castellano observa com perspicácia que esta consideração da consciência permitirá depois a Rousseau afirmar no Emílio que “a consciência é a voz da alma, como as paixões o são do corpo”. Esta consciência, reduzida a mera pulsão subjetiva, acabará conformando ao homem de nossa época, uma massa disforme instintiva sem guia nem freio, órfão de razão e responsabilidade. Um homem que pauta suas decisões (que, inevitavelmente, já não serão morais) pela pura espontaneidade, que é a que lhe permite afirmar-se e ser “autêntico”, e até crer (risum teneatis) que é livre como o vento, embora seja escravo de suas paixões. E da consciência instintiva ao subconsciente freudiano há somente um passo.
Inevitavelmente, esta concepção luterana do homem, incapacitado para abstrair o universal, imporá o abandono da metafísica, que posteriores correntes filosóficas declararão inacessível (e, com o tempo, inútil). Como depois afirmaria Hegel, “a verdadeira figura em que existe a verdade não pode ser senão o sistema científico dela”. Ou seja, cada escola filosófica deve criar um sistema que se erija em verdade (naturalmente, refutada pela escola seguinte). Assim, conclui-se na extravagância de pensar que a razão humana é suficiente para dar fundamento a toda a vida do homem, restando excluída a ordem sobrenatural. E, com o tempo (porque os sistemas filosóficos, ao faltar-lhes o apoio de uma verdade universal, se tornam pendulares), conclui-se na extravagância contrária, segundo a qual a razão humana não tem autoridade para fundamentar a vida, o que desembocará nos sucessivos ceticismos, relativismos e niilismos do pensamento contemporâneo.
Como defende Belloc em Europa e a fé, “ao negar-se a realidade e até o ser, criam-se sistemas que se movem em um vazio atroz, para assentar-se finalmente em uma negação e desafio universais lançados contra toda instituição e todo postulado”. O desaparecimento do saber metafísico acaba degenerando na busca de verdades “sociológicas”, sempre conjunturais e cambiantes, carentes de fundamentação real. E, cedo ou tarde, propicia malfomações e excrescências irracionais; pois, lá onde falta a metafísica, afloram como cogumelos um sem-fim de superstições enlouquecidas, fanáticas e imprevisíveis. E surgem então, inevitavelmente, conceitos políticos mórbidos. Porque o legado de Lutero tem também, certamente, consequências políticas.
III
Se a inteligência humana, danificada pelo pecado original, está incapacitada para abstrair o universal, não pode aspirar a entender as leis da política. Deste modo, a doutrina de Lutero se torna legitimadora do Estado moderno, concebido como instrumento para ordenar a vida social e reprimir a intrínseca maldade humana, transformando suas leis positivas em norma ética. Frederick D. Wilhemsen nos chama a atenção para o paradoxo de que Lutero, que começou insuflando a rebelião dos camponeses alemães contra seus príncipes (pensando que os camponeses o apoiariam em sua luta contra Roma), acabou exortando os príncipes a esmagarem do modo mais implacável as revoltas camponesas (depois que os príncipes adotassem sua doutrina). “No fim das contas – escreve Wilhemsen – o luteranismo prega que o cidadão tem que obedecer ao príncipe em tudo, de uma maneira cega, pois o cristão sabe que a autoridade do príncipe vem de Deus, mas não sabe nada da lei natural, devido à corrupção de sua razão, o único instrumento capaz de descobrir essa lei”.
Certamente, a monarquia já havia tido tentações de fazer-se absoluta antes de Lutero. Mas os reis estavam limitados por uma lei humana, o costume, e por uma lei divina que não podiam violar. Ambas barreiras serão anuladas por Lutero, que em sua obsessão por combater o papado transforma o rei em representante de Deus na terra, afirmando que todo autêntico cristão está obrigado a submeter-se incondicionalmente a ele. A monarquia, antes de Lutero, se havia acomodado à sentença de Santo Isidoro (“Rex eris si recte facias; si non facias, non eris”); e assim havia chegado a ser, nas palavras de Donoso, “o mais perfeito de todos os governos possíveis, por ser uno, perpétuo e limitado”. Ao afastar esses limites que constrangiam o monarca, Lutero instaura a deificação do poder civil. O monarca se torna objeto de adoração cega; seu poder já nunca mais se assentará na “auctoritas” nem na “potestas”, senão que será puro exercício da força sem restrições (ou sem mais restrições que os regulamentos que ele mesmo evacua, submetidos a sua conveniência e capricho).
Assim se corrompe o princípio de autoridade, até sua confusão com a mera força despótica. Esta infração da ordem política – afirma Belloc – iria ter um efeito explosivo: o poder que mantinha as coisas unidas se tornará a partir desse momento um poder que separa cada uma das partes componentes. Com efeito, o poder absoluto mostrará logo, sob uma falsa fachada unificadora, sua íntima vocação desagregadora, fazendo da disputa pelo poder, a tensão social e a guerra constante o clima natural de uma Europa dividida.
Naturalmente, a doutrina luterana sobre a soberania absoluta dos reis será a que depois, convenientemente deslocada de sujeito, fundamentará o princípio da soberania popular. A onipotência do príncipe se transforma em vontade popular soberana, sua essência continua sendo a força despótica, capaz de determinar mediante maiorias o bem e a verdade segundo sua conveniência e capricho.
Wilhemsen defende que “a passividade do alemão diante de seu governo, seja este monárquico, imperial, republicano ou nazista, reflete uma teologia e uma religião cuja negação da lei natural exige que o homem obedeça passivamente, sem perguntar o porquê”. Suspeito que esta afirmação que Wilhemsen circunscreve ao alemão poderia se estender em geral ao homem contemporâneo, que crendo-se mais soberano que nunca está na realidade submetido passivamente a poderes ilimitados que já não controla. Começando com o poder do dinheiro, que o protestantismo liberou.
IV
A rebelião de Lutero daria asas a outro clérigo subversivo, Calvino, que como ele afirmou a depravação da natureza humana e negou que o homem tivesse livre arbítrio. Calvino acrescentou, no entanto, uma dimensão nova à doutrina luterana, afirmando a monstruosa doutrina da predestinação. Porém, embora o homem nada possa fazer para salvar-se, pode – segundo Calvino – saber antecipadamente qual é seu destino, pois a prosperidade material se estabelece como sinal de afeto divino. Esta doutrina abominável desencadearia a avareza dos abastados, que começaram a agitar as massas contra o Papado; e, enquanto as massas estavam entretidas agitando-se e desfrutando da anarquia moral gerada pela ruptura com Roma, os ricos as despojaram de suas terras. “É sempre vantajoso para o rico – afirma Belloc – negar os conceitos do bem e do mal, objetar as conclusões da filosofia popular e debilitar o forte poder da comunidade. Sempre está na natureza da grande riqueza (…) obter uma dominação cada vez maior sobre o corpo dos homens. E uma das melhores táticas para isso é atacar as restrições sociais estabelecidas”. Aos fazendeiros e possuidores de grandes fortunas havia chegado, com efeito, uma grande oportunidade com a Reforma. Em todos os lugares onde a riqueza se havia acumulado em umas poucas mãos, a ruptura com os antigos costumes foi para os ricos um poderoso incentivo. Fizeram como se seu objetivo fosse a renovação religiosa; mas seu verdadeiro fim era o Dinheiro. E assim conseguiram que seu desmesurado afã de lucro resultasse menos insuportável aos olhos dos pobres, entretidos com o pirulito da renovação religiosa. A doutrina católica havia combatido o industrialismo e a acumulação de riqueza; mas o protestantismo fez do afã de lucro um sinal de salvação.
E, enquanto crescia o afã de lucro, consumou-se o “isolamento da alma”, que Belloc considera com razão o mais nefasto legado da Reforma e define como uma “perda do arrimo coletivo, do são equilíbrio produzido pela vida comunitária”. Com efeito, o protestantismo introduziu um isolamento das almas que, ademais de gangrenar a teologia, a filosofia, a política, a economia e a vida social, destruiu a unidade psíquica da pessoa. Pois, ao questionar toda instituição humana e toda forma de conhecimento, levou os seres humanos a um desenraizamento crescente e a uma exaltação do individualismo cuja estação final é o desespero, como comprovamos nas sociedades modernas, integradas por indivíduos enfermos de solipsismo e, ao mesmo tempo, padronizados e amorfos. E a dissolução da religião coletiva facilitaria, enfim, o levantamento de sucessivas idolatrias substitutas, chamadas pomposamente ideologias, cujo cálice amargo continuamos hoje consumindo até a borra.
E, para terminar – last, but not least – não podemos deixar de nos referir, entre as consequências do luteranismo, a sua iconoclasia furibunda, que geraria uma arte inane e acabaria desembocando no feísmo mais exasperado, puro vômito de uma esterilidade presunçosa, que denominamos eufemisticamente “arte contemporânea”. Se a tradição católica, em seu esforço por penetrar melhor o conteúdo da Revelação, havia fomentado uma arte belíssima que encontra seu paradigma na beleza imaculada de Maria, a reforma protestante, ao declarar a ilicitude do culto à Virgem e aos santos, engendraria uma arte fossilizada e desumanizada, quando não vesanamente niilista.
Todas estas delícias do legado luterano, e algumas outras que nos ficaram no tinteiro, vamos celebrar neste centenário tão divino da morte que se aproxima.”
(Juan Manuel de Prada, El Legado de Lutero)

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Iconoclastas

“Se os sequazes do Estado Islâmico quisessem ferir deveras a doce e humanitária consciência do Ocidente neopagão ter-se-iam filmado apedrejando cachorros ou lanceando touros. Mas como os sequazes do Estado Islâmico não são inimigos do Ocidente neopagão, mas seus paradoxais aliados (em uma estratégia comum desenhada pela Nova Ordem Mundial), filmam-se degolando e decapitando cristãos, o que só provoca indiferença (e inconfessável regozijo), exceto quando os cristãos morrem pronunciando o nome de Cristo (pois então conseguem provocar uma careta de repugnância na doce e humanitária consciência do Ocidente neopagão). Para que o entretenimento do Ocidente neopagão não decaia (já se sabe que os gostos estragados pelo vício demandam variedade), os sequazes do Estado Islâmico filmaram-se agora derribando de seus pedestais estátuas assírias do museu de Mosul, que em seguida martelavam com sanha, até reduzi-las a cacos. Um espectador desavisado poderia confundir o vídeo de marretas com uma performance oligofrênica de Joseph Beuys, ou de qualquer desses trapaceiros que expõem seus bricabraques nessa feira das porcarias chamada ARCO, para pasmo de complexados e esnobes.
Com esse vídeo iconoclasta, os sequazes do chamado Estado Islâmico voltam a nos demonstrar sua paradoxal aliança com o Ocidente neopagão. Pois a iconoclastia bárbara dos islamitas, ao fim e ao cabo, não se distingue demasiado da iconoclastia mais refinada do Ocidente neopagão, que leva séculos destruindo arte com diversos álibis estéticos, ideológicos, filantrópicos ou até religiosos, disfarces bonistas com os quais se encobre o ódio à Beleza e, em última análise, a Quem a criou, semeando sua semente em nossas almas. Esse ódio à Beleza adquire no mundo islâmico uma aparência feroz e tremendista; no Ocidente, tal ódio tem-se manifestado ao longo da História de muitas formas diversas, inflamando às vezes o populacho (pensemos nos latrocínios das hordas revolucionárias, nos espólios do exército napoleônico ou no vandalismo sacrílego de tantos espanhóis transformados em hienas durante a Segunda República e posterior Guerra Civil), mas sobretudo envenenando suas elites, que podem chegar a utilizar seu elitismo como álibi de seus desmandos: pensemos no furor iconoclasta de Lutero e demais “reformadores” protestantes; pensemos na avareza saqueadora de nossos mui ilustres desamortizadores, que fomentaram a desagregação, venda e extravio de nosso patrimônio artístico; pensemos nas burradas pós-conciliares que, com o álibi da reforma litúrgica, despojaram milhares de igrejas de seus altares, silhares, sacrários, retábulos, púlpitos e imagens. Pensemos, enfim, em toda a evolução da “arte contemporânea” sincera, cujo propósito último não é outro senão vilipendiar, cuspir, defecar sobre a Beleza, até manchar sua impressão em nossas almas, cumprindo aquele desiderato de Ivywood, o protagonista de A taberna errante, que pregava que a arte devia “romper todas as barreiras”, até deixar de mostrar formas reconhecíveis, até fundir-se no puro nada, até afogar-nos em seu vômito, para negar mais amplamente o trabalho do Criador.
Nesse trabalho iconoclasta, como na perseguição religiosa, os sequazes do Estado Islâmico e o Ocidente neopagão vão de mãos dadas: a um lhe corresponde fazê-lo do modo mais truculento; ao outro, de um modo mais fino e astuto. Ambos, como a Besta da Terra e a Besta do Mar, caminham juntos, fazendo-se carícias e aconchegos, sob a visão satisfeita (enternecida!) da Nova Ordem Mundial.”
(Juan Manuel de Prada, Iconoclastas)

sábado, 27 de agosto de 2016

Juan Manuel de Prada através de sua biblioteca


"Em uma rua central de Madrid vive e trabalha um literato em cujas obras permanecem a cultura e espírito da cristandade. Embora Juan Manuel de Prada (Baracaldo, 1970) deteste a adjetivação de católico depois do substantivo porque considera que "é como desvalorizar esse autor; é como dizer que não é verdadeiramente escritor".
Recebe o visitante de maneira afável: sentado em um sofá, e rodeado por estantes cheias de livros, começa a conversar sobre autores e obras. Mostra primeiro os quadrinhos de Tintim, que desde menino o acompanharam e dos quais se reconhece entusiasta. Depois assinala a presença em sua biblioteca da Enciclopédia Labor de cinema e das obras completas do escritor espanhol Ramón Gómez de la Serna, conhecido por sua irreverência.
O escritor chegou a Madrid no ano de 2000, e nesse tempo pretendia que sua biblioteca continuasse uma estrita ordem alfabética. Em Zamora, onde cresceu, já havia devorado livros desde menino nas bibliotecas públicas "tal como cabia ao filho de uma família humilde".
Ao perguntar-lhe que escritores são os que mais lhe interessam, começa a dissertar sobre poetas, romancistas e pensadores que lhe são especialmente agradáveis.
De Prada assinala o norte-americano James Ellroy como a figura de romance negro que mais lhe interessa, não por este subgênero narrativo, que não é de seus preferidos, mas sim pelo gancho que tem esse autor "perturbado, com um mundo interior depravado e culpável". Falando de "extraviados", Edgar Allan Poe, alcoólico incorrigível, e Marcel Proust, bom conhecedor da Paris mundana de fins do século XIX, foram escritores que também o marcaram.
Durante a conversa, reflete acerca da religiosidade dos escritores ingleses: "Todo anglicano sincero e consciente avança até o catolicismo. O anglicanismo é uma seita grotesca montada por interesses políticos". Para apoiar sua tese, cita o caso de autores britânicos cuja fé seguiu uma evolução similar: C.S. Lewis, Ronald Knox ou J.R.Tolkien. Também menciona G.K.Chesterton, criador do personagem do Padre Brown, um sacerdote que atua como eficaz detetive graças a sua capacidade para penetrar na natureza humana; ou Hilaire Belloc, a quem De Prada qualifica como "um escritor demolidor e impactante" que resumiu sua visão do mundo com uma frase: "A fé é a Europa e a Europa é a fé".
Os autores ingleses não são suas únicas referências. De Prada se confessa admirador da obra do escritor e jornalista francês Charles Péguy. Também menciona o romancista galo Léon Bloy, a quem descreve como um "escritor desgarrado e torturado, um autor maldito".
Em sua biblioteca, os escritores espanhóis de todas as épocas também ocupam um lugar de destaque. É o caso de São João da Cruz, místico espanhol do século XVI e autor de obras poéticas como Cântico Espiritual, e também de autores do Século de Ouro como Quevedo, Lope de Vega ou Cervantes. Já no século XX, De Prada destaca a figura de Miguel de Unamuno, escritor de origem basca cujas inquietudes restaram refletidas em sua obra São Manuel Bom, Mártir. Fora do âmbito estritamente literário, De Prada menciona outros espanhóis que deixaram marca em seu pensamento. Entre eles cita autores do século XIX, como o filósofo conservador Donoso Cortés ou o historiador Menéndez Pelayo.
De Prada lamenta que hoje não exista uma cultura católica, e considera que "vivemos em sociedades sem laços com a hsitória e a tradição". Por isso critica a forma de vida atual, já que afirma que "a Nova Ordem Mundial fez com que um fulano da Tailândia e outro de Albacete comam os mesmos hambúrgueres, leiam as mesmas porcarias na internet e se viciam aos mesmos programas de merda". Sustenta sua crítica com referências a Nicolás Gómez Dávila, filósofo colombiano do século XX e autor de aforismos "de inteligência acerada e ironia corrosiva", a quem admira por sua "penetração intelectual feroz", uma qualidade "que lhe permitiu desmontar a modernidade".
Preocupado pela deriva de nossas sociedades, De Prada menciona durante suas reflexões sua admiração pelo povo russo, formado por "um tipo de ser humano muito diferente do individualista e materialista ocidental". Assim o demonstram os personagens do romancista Fiodor Dostoievski, a quem qualifica de "verdadeiro profeta" com "uma incrível capacidade para penetrar no interior da alma humana". Prova disso são muitas de suas obras, como Os Demônios, Os Irmãos Karamazov ou Crime e Castigo. De Prada opina que os escritores russos são "visionários", dado que formam parte de uma nação "mística e com consciência de transcendência e missão histórica".
Segundo De Prada, a Europa ortodoxa representada pela Rússia guarda semelhanças com a Espanha, dado que em ambos os casos se trata de "impérios em luta com o Islã, o protestantismo e as revoluções". Contudo, o escritor se mostra crítico com nosso país. "A diferença a favor da Rússia é que mantém uma tradição, um vínculo com a história que lhe permite permanecer em pé diante da Nova Ordem Mundial", aponta.
A crise ocidental
De Prada não oculta seu pessimismo com a situação da Europa. Para ele, "Espanha e o mundo ocidental renegaram sua história e tradição". Quando explica o declínio de nossas sociedades, o escritor põe o acento sobre a perda da fé, e diz ver "uma Europa construída contra a cristandade e contra as raízes greco-latinas".
Segundo De Prada, o mundo ocidental chegou a seu ápice no século XIII. A crise que atualmente vive afunda suas raízes no século XVI. Por isso cita o pensador espanhol Elías de Tejada, que situou nessa época três acontecimentos essenciais para compreender a história européia posterior: a obra de Maquiavel, que separou a moral da política; a revolta contra a Igreja romana, encabeçada por Lutero e causa do nascimento do protestantismo; e a teoria política de Bodino, criador do conceito de Soberania que antepôs o Estado à unidade da cristandade em um império. Todas essas rupturas se cristalizaram na Revolução francesa de 1789, momento a partir do qual De Prada considera que "toda a filosofia moderna" se tornou "anticristã, antitomista e antiaristotélica".
"Os povos sem religião são absorvidos pelos povos com religião", explica o escritor, que considera que uma civilização que esquece suas origens e suas crenças está destinada a desaparecer. Para argumentá-lo, cita outros literatos que também refletiram sobre essa decadência. Um deles é Leonardo Castellani, escritor e sacerdote argentino autor de Os Papéis de Benjamin Benavides. Nessa obra, "um velho professor entra em grande amargura ao dar-se conta de que a última vez que a cristandade não perdeu uma batalha foi com Carlos V: cinco séculos de derrotas políticas, culturais e militares".
Entre a escrita e o cinema
Para De Prada, o escritor tem que ter uma "visão transcendente sem ser refém da moda nem dos fiscais da correção política". Nesse sentido, considera que seu trabalho é um "sacerdócio maldito", do qual as pessoas têm uma imagem profundamente equivocada, já que "a literatura não é um meio para enriquecer". "O triunfo literário não é um triunfo profissional", adverte, e recorda o caso de um jovem escritor que denunciou sua precariedade laboral em um artigo publicado em "El Semanal" de ABC. Por isso, De Prada cita o jornalista espanhol do século XIX, Mariano José de Larra, quando afirma que "escrever é chorar".
De Prada aconselha o jovem aspirante a literato que leia e viva, mas não "como muitos imbecis pensm. Não viver buscando experiências extremas. Viver vendo vir a vida". Com essa idéia, o escritor recorda que Júlio Verne, o autor francês de romance fantástico do século XIX, nunca saiu de sua biblioteca, mas graças a sua imaginação viajou à lua, desceu ao centro da terra, percorreu a Rússia como correio do Tzar e submergiu-se nas profundezas do oceano em um submarino. De Prada conclui que o verdadeiramente fundamental é "conhecer as grandezas e misérias da alma humana".
Nesse sentido, o escritor considera que na história do cinema podem-se encontrar pessoas com essa profundidade de visão. Exemplo disso é John Ford, sobre quem De Prada fala com devoção. Assim o demonstra quando cita o cineasta estadunidense Orson Welles, que respondeu, quando lhe perguntaram quais seus três diretores favoritos, com contundência: "John Ford, John Ford e John Ford".
De Prada, que dirigiu o programa de cinema "Lágrimas na Chuva", tem três filmes de referência: Ordet, do danês Carl Theodor Dreyer; Vertigo, de Alfred Hitchcock; e Forte Apache, de John Ford, a quem o escritor homenageou em seu último livro, Morrer sob Teu Céu. Nessa obra, De Prada narra a epopéia dos "últimos das Filipinas", como são conhecidos os soldados espanhóis que agüentaram o assédio dos tagalos – os indígenas do lugar – durante um ano na igreja de Baler, até 1899.
A incerteza do mundo que descreve Juan Manuel de Prada faz-lhe evocar a frase de uma das protagonistas de Forte Apache: "já não se os pode ver. Já só se vêem as bandeiras"."

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sexta-feira, 29 de abril de 2016

Efeitos da negação do pecado original na política


“Donoso Cortés nos ensinava que não há nenhum erro contemporâneo que não implique um erro teológico. Comprovamo-lo nestes dias em que a mácula da corrupção se assenhoreia de nossa vida política; e em que se impõem leis de transparência, em um esforço espalhafatoso por combatê-la, ou aparecem messias populistas que se proclamam látegos da corrupção e se pretendem incorruptíveis. Em todo este alarde sobre a transparência, como no truque messiânico, só encontramos puritanismo (ou seja, o vício disfarçado com as plumas de pavão real da virtude). E por trás de todo puritanismo não há outra coisa que negação do pecado original, que curiosamente é a única verdade teológica que pode ser aceita sem necessidade de ter fé, pois salta aos olhos que a natureza humana está manchada.
No entanto, sendo o pecado original o único dogma teológico que admite comprovação empírica, é o que mais recusa e aversão provoca entre as pessoas. Essa recusa de uma verdade tão evidente só se explica pela soberba humana, que deu para crer contra toda evidência na estupidez rousseauniana de que o homem é bom por natureza e pode, sem auxílio divino, alcançar a perfeição. Tão perturbador absurdo leva, segundo Donoso Cortés, primeiramente à afirmação da soberania da inteligência e depois à afirmação da soberania da vontade, para terminar na afirmação da soberania das paixões, que arrasta os homens à perdição. Essas três afirmações comprovam sua demência no assunto da corrupção política.
Ao afirmar a soberania da inteligência, crê-se ridiculamente que nossa razão é luminosa e infalível; e a razão ensoberbada engendra delírios de grandeza que nos fazem pensar que publicando as rendas ou os patrimônios dos políticos acabar-se-á com a corrupção. Essa primeira etapa de soberba é em seguida superada pelos messias do populismo, que à soberania da inteligência acrescem a soberania da vontade; e, considerando que sua vontade é reta, prometem acabar com toda forma de corrupção. Mas quem crê que sua razão é luminosa e sua vontade reta acaba crendo também, mais cedo que tarde, que suas paixões são excelentíssimas, e que nada pode permanecer subtraído a sua jurisdição soberana (nem concessão de licenças nem requalificação de terrenos nem conselhos de administração de contas de poupança nem patronatos de fundações nem sequer os “tomates” do pequeno Nicolau); e então sua ambição de poder, sua mesma paixão insaciável (a grama sempre é mais verde do outro lado da cerca!) empurrá-lo-á, inevitavelmente, a corromper-se. E fá-lo-á, como é óbvio, ainda que publique suas rendas, pois já se sabe que quem faz a lei, faz também as brechas; e, logicamente, continuará perseguindo os corruptos, pois ninguém emprega tanto furor em castigar os pecados do próximo como o hipócrita que esconde os seus.
Uma política que reconhecesse a existência do pecado original, em lugar de adornar-se com as plumas de pavão real da virtude, começaria por limitar sua jurisdição aos puros trabalhos de representação política, em aceitação ao mandato que recebe de seus representados. E, uma vez limitada sua jurisdição à pura representação política, suplicaria o auxílio divino. Continuaria, desde logo, havendo corruptos, mas seriam muito menos dos que padecemos ali onde a inteligência que se crê luminosa impõe leis de transparência espalhafatosas e a vontade que se crê reta se pretende incorruptível; pois é ali onde inteligência e vontade se proclamam soberanas onde uma e outra acabam sucumbindo mais facilmente ao império das paixões.”
(Juan Manuel de Prada, Pecado Original)

terça-feira, 15 de março de 2016

Corrupção

“O erro fundamental de Rajoy (como o de Narváez, denunciado por Donoso Cortés em um célebre discurso parlamentar) foi fundar seu título de glória na satisfação de interesses materiais. Rajoy, como tantos antes dele, esqueceu que “na ordem verdadeira se encontra a união das inteligências no que é verdade, na união das vontades no que é honesto, na união dos espíritos no que é justo”; e tratou de fundar seu êxito em uma suposta recuperação econômica, esquecendo a montanha de injustiças que clamam ao céu sobre as quais dita recuperação se pretendia alcançar, começando pelo homicídio do inocente (aborto) e terminando pela retenção injusta do salário do trabalhador. Recordava-nos Donoso que todo intento de satisfazer os interesses materiais, quando não se funda sobre o respeito aos bens morais e eternos, acaba dando frutos de morte. E, ali onde os interesses materiais se impõem, a corrupção acaba tornando-se uma gangrena onipresente.
Já santo Agostinho nos advertia na Cidade de Deus: “Se dos governos retirarmos a justiça, em que se tornam, senão em bandos de ladrões?” Despojados de sua missão primordial, que é a defesa dos bens morais, e dedicados obsessivamente à satisfação de interesses materiais, é natural que nas oligarquias políticas aflorem as ambições impacientes e a avidez de riquezas. O regime partidocrático, por outro lado, não é outra coisa que um método (temos de reconhecer que bastante eficaz, à vista dos resultados) para organizar tais ambições; pois a máxima preocupação de suas oligarquias não é outra que assegurar-se a fidelidade lacaia daquelas pessoas que recrutam, seja selecionando-as entre os medíocres, seja repartindo-lhes mordomias que garantem sua submissão. A conseqüência, em ambos os casos, é a corrupção moral e intelectual da política. E, enquanto vê crescer a corrupção da política, o povo se deixa esmagar primeiro pelo ceticismo moral e depois pela amoralidade descontrolada; processo que em nossa época se acelerou mediante a expansão dos direitos de braguilha e outras formas de permissividade dissoluta. Agora esse povo que previamente se deixou despojar de seus bens morais (subornado pelos direitos de braguilha que lhe prometiam todas as alegrias) se enraivece porque contempla o despojo de seus bens materiais; e sua raiva é a de uma animália que clama por vingança porque já não pode clamar por justiça, porque deixou de crer na justiça, porque previamente lhe ensinaram que a missão de um governo não era obter a justiça, mas satisfazer interesses materiais.
Em uma política órfã da virtude da justiça a corrupção não serve senão para que as diversas facções (ou bandos de ladrões, na linguagem agostiniana) acusem-se umas às outras, alimentando a demogresca; para debilitar os governos, que são substituídos por outros igualmente corruptos; e para arbitrar medidas espalhafatosas e puritanas de provada ineficácia, posto se fundamentarem no mais característico erro moderno, que é a negação do pecado original. O único modo de combater a corrupção consiste em restabelecer uma ordem justa que restitua à sociedade os bens morais e eternos que lhe foram arrebatados; mas isto não o farão nossas oligarquias, obcecadas em louvar os interesses materiais de seus eleitores. Com razão dizia Donoso que “o princípio eletivo é coisa tão corruptora que todas as sociedades civis, tanto antigas quanto modernas, em que ele prevaleceu morreram gangrenadas.”
É escusado acrescentar que a saída natural de uma sociedade gangrenada é a revolução.”
(Juan Manuel de Prada, Corrupción)

domingo, 17 de janeiro de 2016

Mudança

“Qualquer pessoa com a mínima capacidade de análise da História descobrirá que o traço mais característico (constitutivo, na realidade) de nossa época é o afã de 'mudança'; e também que se trata de uma 'mudança' que age sempre na mesma direção. Bastaria analisar, por exemplo, a evolução política dos trinta ou quarenta últimos anos para descobrir, por exemplo, que os chamados 'conservadores' fizeram próprias e defendem com orgulho teses que faz umas poucas décadas os 'progressistas' apenas se atreviam a defender vergonhosamente. Este fenômeno nos confirma que os conservadores são tão somente os que se encarregam de conservar e consolidar os 'avanços' progressistas; e nos revela um desígnio mui profundo que, por medo, não conseguimos explicar; ou que explicamos ingenuamente como um “sinal dos tempos” - que repetimos como papagaios – exigem “renovar-se ou morrer”, adequar-nos a novas idéias como quem se adequa a novas modas indumentárias.
Mas o certo é que o próprio do ser humano não é andar mudando de idéias a todo momento, ou submetendo-as a um constante processo evolutivo, para além das mudanças de percepção que nos proporciona a experiência da vida e o acúmulo de sabedoria (e estas mudanças de percepção, para a mentalidade moderna, são antes de natureza 'involutiva'). Escrevia Santo Agostinho em suas Confissões que a alma não encontra descanso nas coisas que não são firmes; e, no entanto, a alma do homem de nossa época está sendo constantemente fustigada para que abandone as convicções firmes e se entregue ao desassossego dos pareceres voltários, como se a lei do pensamento não fosse a verdade, mas a opinião flutuante. Aquele “tudo flui” que enunciou Heráclito, para referir-se às mudanças biológicas e naturais, tornou-se um “devir” que afeta também o pensamento, submetido a um constante processo de mutação. Todavia o senso comum dita à gente simples que quem anda mudando constantemente de idéias, ou amoldando-as à conjuntura, é um 'vira-casaca'; mas entre as chamadas 'elites' (que são as oligarquias encarregadas de matar o sentido comum da gente simples) esta mudança constante é mostrada como a forma suprema de sabedoria e a prova máxima de “inteligência emocional”. Quem, pelo contrário, mantém-se leal a suas convicções é mostrado como um retrógrado perigoso, um imobilista que convém deixar parado na sarjeta, para que não aja como lastro nos processos de mudança que continuam sendo produzidos sem cessar.
Certamente toda mudança tem uma direção, um 'até onde'; mas nossa época esconde tal elemento, que em todo caso disfarçará com os ouropéis do 'progresso'. Pois o que interessa à nossa época é, antes de mais nada, que as massas avancem para 'novos horizontes', sem saber qual é a meta, sem pensar sequer se tal meta é na verdade um precipício ou um depósito de lixo, um cemitério ou um patíbulo. Como se uma força cega e mecânica nos estivesse dirigindo constantemente a uma espécie de terra prometida (por quem?) onde desfrutaremos de uma vida mais plena, coroada pelo desfrute de novos 'direitos'. Certamente tal terra prometida nunca se alcança, como ocorria com a tartaruga no paradoxo de Zenão de Eléia; mas sua perseguição quimérica permite que os homens não adiram a nenhuma convicção definitiva, e assim possam extraviar-se mais facilmente.
Em certa ocasião, Chesterton se referiu a um progressismo nefasto que consiste em “alterar a alma humana para que se adapte a suas condições, em lugar de alterar as condições para que se adaptem à alma humana”; e que, em seu desalmado labor, sempre se apóia no mecanismo do precedente: “Como nos metemos em confusão, temos que nos meter em outra ainda maior para nos adaptarmos; como fizemos uma volta equivocada faz algum tempo, temos que seguir em frente e não para trás; como perdemos o caminho, devemos também perder o mapa; e, como não realizamos nosso ideal, devemos esquecê-lo”. Tudo menos nos arrependermos e retrocedermos, que é uma heresia que nossa época não admite; pois, ao nos arrependermos e retrocedermos, descobriríamos que há certezas fixas, verdades imutáveis e palavras perenes. E até poderíamos parar e escutar aquele que disse: “O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão”! E isto é o que o afã de mudança não pode permitir de modo algum; pois, no fim das contas, toda esta maquinaria que descrevemos foi concebida para combater quem pronunciou essas insultantes palavras.”
(Juan Manuel de Prada, Cambio)