quinta-feira, 7 de maio de 2015

A palavra divina

“Quando ouço pronunciar uma palavra divina, ou seja, católica, no mesmo instante volvo os olhos ao redor para ver o que acontece, certo como estou de que há de acontecer algo e de que isso que há de acontecer há de ser forçosamente um milagre da justiça divina ou um prodígio da divina misericórdia.
Se é a Igreja que a pronuncia, aguardo a salvação; se quem a pronuncia é outro, aguardo a morte. Perguntai ao mundo por que está pleno de terror e de espanto; por que os ares estão plenos de lúgubres e sinistros rumores; por que as sociedades estão todas perturbadas e em suspense, como quem sonha que lhe vai faltar o pé ou que ali onde vai faltar está um abismo. Perguntar ao mundo isso é o mesmo que perguntar por que treme quem vê entrar um malfeitor ou um demente com uma vela acesa em um armazém de pólvora sem conhecer um e conhecendo demasiado o outro a virtude da pólvora e a virtude da chama. O que salvou o mundo até agora é que a Igreja foi em tempos antigos bastante poderosa para extirpar as heresias, as quais, consistindo principalmente em ensinar uma doutrina diferente da Igreja com as palavras de que a Igreja se serve, teriam levado o mundo há muito tempo a sua última catástrofe se não tivessem sido extirpadas.
O verdadeiro perigo para as sociedades humanas começou no dia em que a grande heresia do século XVI obteve o direito de cidadania na Europa. Desde então não há revolução alguma que não leve consigo para a sociedade um perigo de morte. Consiste isso em que, fundadas todas elas na heresia protestante, são fundamentalmente heréticas; veja-se, se não, como todas vêm dando razão de si e legitimando-se a si próprias com palavras e máximas tomadas do Evangelho: o sanculotismo da primeira revolução de França buscava na nudez humilde do manso Cordeiro seu antecedente histórico e seus títulos de nobreza; nem faltou quem reconhecesse o Messias em Marat, nem quem chamasse Robespierre seu apóstolo. Da revolução de 1830 brotou a doutrina sansimoniana, cujas extravagâncias místicas compunha não sei que evangelho corrigido e depurado. Da revolução de 1848 brotaram com ímpeto em copioso caudal, expressas em palavras evangélicas, todas as doutrinas socialistas. Nada disso haviam visto os homens antes do século XVI. Não quero dizer com isso que o mundo católico não havia padecido já de grandes doenças, nem que as sociedades antigas não haviam padecido de grandes vaivéns e mudanças; só quero dizer que nem esses vaivéns bastavam para derrubar a sociedade por si mesmos nem aquelas doenças para tirar-lhe a vida. Hoje tudo acontece ao contrário: uma batalha perdida pela sociedade nas ruas de Paris basta por si mesma para derrubar ao solo a sociedade européia como ferida subitamente por um raio: e calde come corpo morto calde.
Quem não vê nas revoluções modernas, comparadas com as antigas, uma força de destruição invencível, que, não sendo divina, é forçosamente satânica? Antes de deixar este assunto, parece-me coisa oportuna fazer aqui uma observação importante, que abandonarei à meditação de meus leitores. De duas conversas do anjo das trevas temos notícia exata: a primeira a teve com Eva no paraíso; a segunda, com o Senhor no deserto. Na primeira falou palavras de Deus, desfiguradas a seu modo; na segunda citou a Escritura, interpretada à sua maneira. Seria temerário crer que assim como a palavra de Deus, tomada em seu sentido verdadeiro, é a única que tem o poder de dar a vida, é a única também que, sendo desfigurada, tem o poder de dar a morte? Se isso fosse assim, restaria suficientemente explicado por que as revoluções modernas, nas que se desfigura mais ou menos a palavra de Deus, têm essa virtude destruidora.”
(Juan Donoso Cortés, Ensayo sobre el Catolicismo, el Liberalismo y el Socialismo)