sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Os malefícios dos reality shows (II)

“Outro fator que contribui para a permanência dos indivíduos em seus espaços pessoais é a questão dos espaços públicos que outrora se prestavam à reunião social, mas hoje se tornaram adversos e estranhos, principalmente nas grandes cidades, pelo aumento da criminalidade, do trânsito intenso de veículos, da poluição, da descaracterização arquitetônica, etc.
Diante de tal cenário, fica a indagação sobre os tipos de elementos representacionais com os quais o sujeito contemporâneo poderá identificar-se.
Os reality-shows
uma alternativa?

Vivemos hoje a alienação decorrente de um sistema econômico que incita ao consumo constante de objetos cada vez mais descartáveis, estabelece relações rápidas e descontínuas, e torna-se "embotadora da cognição, da simples observação do mundo, do conhecimento do outro" (Bosi, 2003, p.24).
Touraine (1999) relaciona a fragmentação de nossa cultura à desagregação social e ao do mercado, das comunidades e de suas próprias pulsões. Sem parâmetros definidos socialmente de espaço e tempo, perdeu-se a noção de continuidade histórica de uma nação ou de uma coletividade territorial.
O fio da História amarra-se no presente contínuo em tempo real, que abate o passado e despreza o futuro. À hegemonia do presente, correspondem as informações ininterruptas veiculadas pela mídia que, por sua rapidez e quantidade, impedem que o indivíduo possa digeri-las e pensá-las.
Por sua vez, Baudrillard (2001) lembra que o século XX presenciou toda a sorte de crimes: Auschwitz, Hiroshima e genocídios, mas o único e verdadeiro crime perfeito foi a queda do homem na banalidade, violência mortífera, que, justamente pela indiferença e pela monotonia, é a forma mais sutil de exterminação. Vivemos hoje numa sociedade que mistura todos em um imenso ser indivisível, em total promiscuidade.
É possível relacionar tal banalização à quantidade de estimulação sensorial a que somos expostos de maneira ininterrupta, sem oportunidade de processar, elaborar e pensar criticamente sobre o que nosso aparato perceptivo é capaz de absorver. Há, então, um empobrecimento do contato com nossa própria subjetividade e a concomitante alienação das experiências cognitivas e afetivo-emocionais. Permanecemos no nível mais superficial da senso-percepção, abdicando das sofisticadas potencialidades de nosso aparato psíquico.
Assolado pela angústia frente à perda de contato com sua própria subjetividade, pressionado pela velocidade do mundo da produção, destituído de seu lugar de agente nas relações sociais sem contrato, sem regras ou sistema de valores definido e impelido ao consumo desenfreado, o ser humano busca eco para suas vivências em "reality shows".
Como disse Novaes (1996), somos atraídos pelo fútil, pela curiosidade ávida de sensacionalismo e pela excitação banal, deixando de lado nossa potência de pensar e agir. Os "reality shows" nos proporcionam tudo isso, adormecendo nossa capacidade crítica já tão abalada pela alienação de nossas consciências.
A versão pós-moderna do teatro grego aparece destituída da profundidade do drama e do impacto da tragédia. As experiências humanas ficam reduzidas a uma gama de pequenos conflitos que retratam a superficialidade e o caráter fugidio das relações sociais. O que se vê é a pulverização dos relacionamentos em atitudes impulsivas, intrigas e falas desarticuladas, denotando manifestações emocionais caricatas e previsíveis.
Segundo Baudrillard (2001), o Big Brother é o espelho e o desastre de toda uma sociedade presa da insignificância que se curva diante de sua própria banalidade. É uma farsa integral, uma imagem reflexa de sua própria realidade. Para o autor, a audiência é grande graças à debilidade e nulidade do espetáculo: ou as pessoas assistem porque ali se reconhecem e/ou assistem para se sentirem menos idiotas que os protagonistas.
Reafirmando essas colocações, pode-se dizer que, em um estilo "fast food", engolimos as ações-reações de personagens vazios, que lutam cegamente por sua sobrevivência individual.
Consumimos a exposição de pessoas que, ávidas por exibirem-se e ganharem fama, ainda que fugaz, submetem-se à superexposição. O narcisismo explícito promove o aparecimento de relações imaturas, permeadas pela escotomização e pela negação das experiências emocionais mais profundas.
Enquanto espectadores, também retornamos a um funcionamento psíquico primitivo, na medida em que ter acesso à vida de outras pessoas em tempo integral confere-nos a realização da onipresença, da onipotência e da onisciência, qualidades essas inerentes às experiências emocionais dos bebês e que mimetizam os atributos imanentes dos deuses. Se, na infância, encarnamos os super-heróis com seus ilimitados poderes, nesse momento, tornamo-nos os "super-espectadores", que realizam o desejo de participar de tudo, negando a exclusão e o limite.
Por outro lado, assistir a tais programas confere-nos a ilusão de que estamos vendo a vida real, tal qual a vivemos. Como vimos anteriormente, toda a técnica está a serviço de tornar o programa o mais real possível. O "como se", que inclui o simbólico e a abstração, dá lugar ao "é agora", numa tentativa de substituir o personagem da ficção pelo indivíduo real. O hiato entre personagem e ator desaparece, numa busca desenfreada pela verdade última das experiências humanas.
Segundo Gullo (2004), os "reality shows" são a versão moderna dos grandes circos romanos. Exploram a necessidade do ser humano de ver e participar dos problemas alheios, movido por sua incessante curiosidade, muitas vezes mórbida. Para o autor, quando o cotidiano é retratado nesses programas, torna-se uma farsa, porque tudo é programado, planejado e racionalizado: "o reality show" é o mais baixo nível do cotidiano, mostrado com tecnologia altamente elaborada com o objetivo de captar o telespectador para interesses da produção que visam ao lucro"(Gullo, 2004, p. 1).
Do mesmo ponto de vista, Couldry (2002) e Jones (2003) afirmam que o espectador é iludido ao acreditar que está vendo a realidade, o que lhe confere uma sensação prazerosa. Porém, na verdade, o que se vê é o resultado do desenvolvimento de estratégias da técnica televisiva, que visam a mimetizar o real, produzindo um programa repleto de ambigüidades, que mais se aproxima dos mitos e da novela-documentário ("docu-soap").
Diante disso, parece que já não somos capazes de mergulhar na fantasia, no jogo de sombra e luz da ficção e que vai demandar a ação do pensamento enquanto abstração, análise e síntese. Assim, não há o que pensar, há apenas o que consumir.
Os brinquedos ganharam vida pela magia sedutora das câmeras escondidas do Big Brother. Além de todos os artefatos tecnológicos, desejamos agora brincar com "gente de verdade".
O prazer de assistir também advém da crença de que o outro vive o drama da sobrevivência em nosso lugar: tornamo-nos ingênuos e pueris, por um lado, e sádicos e triunfantes, por outro.
O caráter bufo e satírico do teatro do passado permanece: cada integrante que perde e sai do jogo comemora, paradoxalmente, de maneira esfuziante, seu próprio fracasso, negando qualquer vislumbre de dor. Em uma celebração coletiva, personagem e espectadores compartilham sentimentos de triunfo e desprezo, sinais evidentes da falta de contato com os aspectos inerentes à subjetividade.
É curioso observar que cada integrante que deixa o programa provoca tristeza nos concorrentes que ficam e alegria na torcida uniformizada que os espera do lado de fora. O "non sense" da situação é patente: quem está ganhando chora e quem perde comemora - uma clara inversão de valores que desloca afetos, turva consciências e banaliza a experiência humana. O herói perdedor sai triunfante, com ares de celebridade, é entrevistado pelo apresentador e conversa com os telespectadores via internet, com o intuito de relatar sua grande aventura. É lamentável que essa espécie de Dom Quixote pós-moderno não traga consigo qualquer indagação ou pensamento profundo e, ao contrário do original, nada busque a não ser o exibicionismo e a fama.
Mais surpreendente ainda é que as pessoas em geral não questionam, simplesmente assistem e consomem com voracidade, esperando sempre a próxima versão do programa porque o anterior já foi esquecido, como um dos tantos objetos descartáveis que usamos e dispensamos.
Concluindo, mencionamos a necessidade de o indivíduo representar suas vivências como meio de elaboração e desenvolvimento psicossocial. Consideramos os "reality shows" como uma das versões pós-modernas do teatro grego, surgidas a partir do crescente desenvolvimento tecnológico e das transformações ocorridas no cenário socioeconômico mundial desde o século passado.
Diante do que foi dito, tais programas são retratos fiéis do mundo em que vivemos. A morte do sujeito, a fugacidade das experiências, a desvalorização da história e o culto à imagem são difundidos sem crítica ou reflexão.
Houve um achatamento do hiato existente entre a ficção e a realidade, o que impede os processos de simbolização e abstração inerentes ao pensar. Somos hoje consumidores por excelência, sem capacidade para questionar o que ingerimos, adormecidos em uma passividade aviltante.
O sucesso do "Big Brother" confirma a volatilidade da experiência humana pós-moderna: não queremos sentir, pensar ou agir, abdicamos da angústia existencial para que outros, nem atores e nem personagens, vivam por nós, hipomaniacamente, o que restou do verdadeiro e profundo sentido de nossa existência.
A subjetividade desvalorizada e satirizada é substituída pela superficialidade do real in natura, em que a imagem é soberana.
Portanto, a função desse tipo de programa é aprofundar a alienação, impedindo os processos de pensamento crítico. Para isso, mobilizam-se aspectos primitivos do psiquismo humano através da sedução do espectador, ou seja, acreditando-se poderoso e capaz de decidir o destino dos participantes, o público deixa-se levar pela imagem narcísica refletida na tela. O prazer advém do triunfo e da onipotência, o que acaba criando um círculo vicioso de consumo e audiência.
Apesar de considerações pouco promissoras sobre os espectadores do presente, podemos ainda, como expectadores, antever novos estudos sobre esse tema que visem ao aprofundamento e à reflexão crítica, contribuindo para a conscientização de todos nós.”
(Marília Pereira Bueno Millan, Reality Shows - Uma Abordagem Psicossocial)