quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Os malefícios dos reality shows (I)

“Desde a Antigüidade, temos notícia da necessidade de o ser humano representar seus dramas pessoais, suas vicissitudes existenciais ou, simplesmente, os fatos comuns do seu cotidiano. O teatro grego foi, por excelência, a manifestação máxima de tal necessidade, conduzindo a encenação das famosas tragédias que, até os dias de hoje, são admiradas por milhares de espectadores (Bertheld, 2000; Brandão, 2001).
Com o desenvolvimento tecnológico ocorrido fundamentalmente do século XX em diante, a combinação de enredo, imagem e representação ganhou novas roupagens através do cinema, da televisão e, mais recentemente, do computador. Um fenômeno atual que ganhou notoriedade, sobretudo na última década, foi o "reality show", filmagem ao vivo de pessoas comuns convivendo em um espaço fechado durante um tempo determinado.
O programa televisivo que pretendemos discutir é a versão brasileira de um "reality show" que também foi produzido em outros países. Foi criado originalmente por John de Mol e Joop van den Ende em 1999, na Holanda, e recebeu o título de "Big Brother". Tal termo já fora usado por George Orwell, em seu livro "1984", para designar um olho eletrônico que espionava as pessoas com o intuito de manter o domínio de um Estado totalitário sobre tudo e todos.
Trata-se de um programa de entretenimento que consiste no confinamento voluntário de pessoas em uma casa, que se dispõem a ser filmadas durante todo o tempo que ali permanecerem. A duração é de cerca de dois meses e, semanalmente, um dos participantes é eliminado de acordo com votações feitas pelo público e pelos outros integrantes do grupo. A finalidade última do jogo é que apenas uma pessoa consiga permanecer, o que lhe dará o direito de receber um prêmio em dinheiro.
O telespectador acompanha o programa assistindo diariamente a imagens, ao vivo ou previamente editadas, de tudo o que ocorre entre os participantes, desde os atos mais cotidianos até conflitos, brigas e namoros.
A idéia e mesmo o nome do programa apontam na direção da busca da realidade in natura. Sendo assim, a estratégia discursiva central é a criação de efeitos que mimetizem, ao máximo, a realidade (escolha de pessoas comuns, imagens de atos cotidianos, linguagem coloquial, técnicas de filmagem, etc).
Para atrair a atenção do público, enriquecer as imagens e adequar-se à lógica televisiva, a construção simbólica do programa é feita a partir de tarefas e desafios propostos aos participantes que desencadeiam reações, atitudes e conflitos entre eles.
Há, também, a presença de um apresentador que tem a função de organizar o programa, interagindo com os participantes, direcionando os julgamentos e opiniões dos telespectadores e mediando as diversas situações apresentadas (Marcondes Filho, 2002; Curvelo, 2004).
Por tratar-se de uma produção televisiva recente, observa-se que ainda não há literatura abundante a respeito do tema. Entre os trabalhos existentes, encontra-se o de Bucci (2002), que desenvolveu um importante estudo crítico sobre a televisão enquanto meio de comunicação na atualidade do capitalismo superindustrial e da crise do sujeito contemporâneo. Relaciona comunicação, Sociologia e psicanálise para embasar sua teoria a respeito da fabricação de significações sociais pela exploração do trabalho e pela apropriação capitalista do olhar social. Afirma que a televisão, por meio do recurso da imagem ao vivo, constitui-se no telespaço público da contemporaneidade.
Em linha semelhante, abordando diretamente os "reality shows", Olórtegui (2000) também analisa a dissolução das fronteiras entre o público e o privado, provocada, sobretudo, pela televisão, o que marca profundamente a atual crise de sociabilidade. Sugere que os "reality shows" são programas que revelam um indivíduo-telespectador espetacularizado e banalizado em suas relações mediadas pela TV, em que o vazio e a sedução são preponderantes.
Baudrillard (2001), em sua contundente crítica sobre os "reality shows", afirma que o homem moderno, sem um destino objetivo ou metas de vida, lança-se em uma experimentação sem limites de si mesmo. A reclusão voluntária é uma espécie de laboratório de uma "sociedade telegeneticamente modificada". Sugere que, a partir do momento em que a TV e as mídias se tornam incapazes de dar conta dos acontecimentos insuportáveis do mundo, descobre-se a banalidade existencial como o fato mais mortal, como a atualidade mais violenta, como o lugar do crime perfeito. As pessoas ficam, ao mesmo tempo, fascinadas e aterrorizadas pela indiferença de sua própria existência: não há nada a dizer nem nada a fazer.
Por outro lado, alguns autores questionam a utilização do termo "reality", uma vez que se trata de uma representação fora do contexto de vida dos participantes, ou seja, são pessoas que se encontram em um ambiente artificialmente criado e, portanto, não existe a autenticidade propalada (Hill, 2002; Kujundzic; Dorrell, 2002).
Vê-se, portanto, a relevância do tema aqui proposto, pois, sendo os "reality shows" um fenômeno contemporâneo mundial, é mister que seja analisado criticamente do ponto de vista psicossocial, com o objetivo de aprofundar o conhecimento sobre o existir humano na pós-modernidade.
O objetivo deste artigo é analisar, do ponto de vista psicológico e social, o significado dos programas televisivos denominados "reality shows", mais especificamente o Big Brother Brasil.
O sentido da encenação
Os processos de identificação parecem estar na base do sucesso das representações da vida real, ou seja, a possibilidade de encontrar eco para as próprias experiências pode ser um meio de sentir-se incluído no mundo dos humanos, de encontrar elementos que auxiliem na elaboração de vivências e de amenizar a solidão intrínseca à própria existência humana.
Buscamos, nas manifestações artísticas, o familiar, aquilo que nos conecta com a subjetividade, com experiências emocionais que se reatualizam e ganham forma através da representação do artista.
A imitação da vida nos permite compartilhar a essência humana com os outros: o estritamente pessoal ganha o terreno social. Já não somos os únicos; é possível compreender as situações humanas à luz da esfera cultural. Não estamos completamente sós, pois os outros participam do drama que julgávamos exclusivamente nosso.
Por outro lado, assistir a um espetáculo cênico significa ausentar-se da própria vida, abandonando provisoriamente o lugar ativo de gerir a própria existência. O ator passa a representar a cena real na ficção, assumindo a atividade do viver. A suspensão da atividade permite o descanso necessário à elaboração das experiências vividas. No entanto, à aparente passividade do espectador, corresponde a atividade de observação de si mesmo no outro, o movimento afetivo-cognitivo de compreensão da essência humana.
A lembrança do caráter fictício da encenação tranqüiliza o espectador, oferecendo-lhe condições de experimentar emoções e sentimentos, mantendo-o sob controle, além de poder pensar a respeito do que vê e sente. Do ponto de vista psicológico, podemos dizer que o quantum de energia psíquica mantém-se em um nível suportável, permitindo ao ego colocar seus recursos a serviço da percepção, conscientização, rememoração e elaboração das experiências vividas.
Além de todos os processos psíquicos envolvidos, a encenação promove a reunião de pessoas que compartilham o mesmo espaço-tempo da representação. A convivência une e configura um fenômeno social que propicia, por um lapso de tempo, certo sentimento de cumplicidade capaz de mover os espectadores em manifestações coletivas, que vão do êxtase à decepção, da alegria esfuziante à profunda tristeza, do riso aberto ao choro incontido. Mais do que um movimento catártico, há aqui a possibilidade de tornar público o privado, de socializar o individual, dando-lhe novo sentido.
O cenário contemporâneo
As últimas décadas vêm sendo caracterizadas por profundas mudanças no campo das ciências e das artes, cujas sementes já haviam sido lançadas no final do século XIX e início do século XX. Tais transformações caracterizam o que se denomina pós-modernidade, que, para alguns autores, é a amplificação do paradigma moderno em nossos dias. Sua marca registrada é a revolução tecno-eletrônica, que vem alterando sensivelmente o modo de produção do conhecimento e as relações humanas. Tais avanços tecnológicos têm como ícone a velocidade que está a serviço da otimização das performances, no que tange à produtividade, ao consumo e ao ganho de capital.
A aceleração dos processos e procedimentos da produção e do consumo acaba alterando as formas de pensar e de agir do indivíduo, e, em conseqüência, dos agrupamentos sociais. Hoje é possível obter informações em tempo real e manter contato com o mundo todo a qualquer momento. A conexão rápida dos artefatos eletrônicos vem acompanhada do enorme fluxo de informações e de contatos humanos fugazes e superficiais.
Em outra oportunidade (Millan, 2000), já havíamos discutido tais aspectos:
A aceleração de giro na produção e no consumo vem influenciando a forma de pensar e agir do indivíduo. Como conseqüência, presenciamos a crescente volatilidade e efemeridade de modas, produtos, idéias, valores e práticas sociais.
O instantâneo e o descartável permeiam nossa experiência, desde os utensílios que empregamos no dia a dia até nossa maneira de pensar, viver e nos relacionar (p.64).
Observa-se que a estética superou a ética enquanto foco de interesse intelectual e social; as imagens dominaram as narrativas; o efêmero e o fragmentário triunfaram sobre os valores perenes e universais. Em outras palavras, ocorreu a hegemonia do significante sobre o significado, o que deslocou a importância da História para um segundo plano e imprimiu valor à forma e à imagem.
Assim, a televisão e o computador são, por excelência, os representantes do ideal pós-moderno na medida em que priorizam a velocidade absoluta, tornam desnecessários os deslocamentos espaciais e anulam a importância do tempo e da duração (Pelbart,1996). Ambos disponibilizam a interatividade (sobretudo com a TV digital), convidando as pessoas a se relacionarem, cada vez mais, por meio dos artefatos eletrônicos. Os relacionamentos sociais mediados pelas máquinas concorrem para a redução dos encontros ao vivo e alimentam aqueles de natureza virtual.”
(Marília Pereira Bueno Millan, Reality Shows - Uma Abordagem Psicossocial)