segunda-feira, 2 de março de 2015

Juan Vázquez de Mella sobre a tradição

“O homem se desenvolve e, portanto, inventa, combina, transforma, quer dizer, progride, e transmite aos demais as conquistas de seu progresso. O primeiro invento foi o primeiro progresso; e o primeiro progresso, ao transmitir-se aos demais, foi a primeira tradição que começava. A tradição é o efeito do progresso; mas como o comunica, quer dizer, o conserva e o propaga, ela mesma é o progresso social. O progresso social não chega a ser social se a tradição não o recolhe em seus braços. É a tocha que se apaga tristemente ao alcançar o primeiro resplendor se a tradição não a recolhe ou a levanta para que passe de geração em geração, renovando em novos ambientes o resplendor de sua chama.
A tradição é o progresso hereditário; e o progresso, se não é hereditário, não é progresso social. Uma geração, se é herdeira das anteriores, que lhe transmitem por tradição hereditária o que receberam, pode recolhê-la e fazer o que fazem os bons herdeiros: aumentá-la e aperfeiçoá-la, para comunicá-la melhorada a seus sucessores. Pode também malbaratar a herança ou repudiá-la. Neste caso, chega a miséria ou a ruína: e se edificou algo, destruindo o anterior, não tem direito a que a geração seguinte, deserdada do patrimônio desfeito, aceite o seu: e o provável é que fique sem os dois. É que a Tradição, se inclui o direito dos antepassados à imortalidade e ao respeito de suas obras, implica também o direito das gerações e dos séculos posteriores a que não se lhes destrua a herança das precedentes por uma geração intermediária amotinada. A autonomia selvagem de fazer tábua rasa de todo o anterior e sujeitar as sociedades a uma série de aniquilamentos e criações é uma espécie de loucura que consistiria em afirmar o direito da onda sobre o rio e seu leito, quando a tradição é o direito do rio sobre a onda que agita suas águas.
O anel vivo de uma cadeia de séculos, se não está conforme com os que precedem e quer que só o estejam os que o seguem, pode sair da cadeia para existir por sua conta; mas não tem direito a destruí-la nem a privar os posteriores dos anéis precedentes.
E sendo todas as autonomias iguais, as dos séculos precedentes e as dos posteriores valem mais que as de um momento dado da História, ainda supondo – o que jamais aconteceu – que uma oligarquia não usurpe o nome de todos e não faça passar o capricho dos menos pela vontade dos mais. Logo por cima dessa imaginária autonomia está o dever de subordinar-se à tradição até pelo império das maiorias, que rara vez são simultâneas; mas que, quando se trata das instituições que expressam os grandes feitos de um povo, são sempre sucessivas.
Vede, senhores, como a tradição, ridiculamente desdenhada pelos que nem sequer penetraram seu conceito, não só é elemento necessário do progresso, mas uma lei social importantíssima, a que expressa a continuidade histórica de um povo, embora não tenham parado para pensar sobre ela certos sociólogos que, por se deterem demasiado a admitir a natureza animal, não tiveram tempo de estudar a humana em que radica.
Esta é a razão por que todo homem, ainda que não perceba e sem querer, seja tradicionalista, porque começa por ser já uma tradição acumulada. Que se despoje, se pode, do que recebeu de seus ancestrais e verá que o que resta não é ele mesmo, mas uma pessoa mutilada que reclama a tradição como o complemento de sua existência. O revolucionário mais audaz que, em nome de uma teoria idealista, formada mais pela fantasia que pelo entendimento, se propõe derrubar o edifício social e pulverizar até os blocos de suas fundações para levantar outros de nova planta, se antes de começar a demolição se detém a perguntar-se a si mesmo quem é; se a paixão não o cega, ouvirá uma voz que lhe diz desde os muros que ameaça e desde o fundo de sua alma: És uma tradição compendiada que se quer suicidar; és o último descendente de uma dinastia de antepassados tão antiga como a linhagem humana; nenhuma é mais secular que a tua. Se um só faltasse nessa cadeia de milhares de anos, não existirias; queres derrotar uma estirpe de tradições e és em parte obra delas. Queres destruir uma tradição em nome de tua autonomia e começas por negar as autonomias anteriores e por desconhecer as seguintes; ao inaugurar tua obra, queres que continue uma tradição contra as tradições passadas e contra as tradições vindouras, proclamando a única verdade da tua. Olhando para trás, és parricida; olhando para frente, assassino, e olhando para ti mesmo, um demente que crê destruir os demais quando se mata a si mesmo.
Os homens grandes são aqueles que sabem conservar, em uma sociedade intangível, a herança da tradição; os que não só a conservam, mas que a corrigem; os que, não satisfeitos em conservá-la e corrigi-la, a aperfeiçoam e a aumentam. E o mais tradicionalista não é o que só preserva, mas o que, além de conservar, corrige, o que adiciona e acrescenta, porque segue melhor o exemplo dos fundadores, não se limitando a manter o caudal, mas fazendo o que eles fizeram: produzir e prolongar com seu progresso suas obras.
Por isso os maiores homens da história são os mais tradicionalistas; quer dizer, os que não deixam atrás de si mais que tradição. Só o vulgo que não funda não transmite nada próprio: e muitas vezes, sem as conhecer sequer, repudia as heranças dos demais. Em suma, a autonomia individual é a solidão do isolamento, rompendo a trama social das gerações e interrompendo bruscamente, se a tanto alcança sua força dissolvente, a continuidade da vida de um povo. A tradição é a família agrupada ao redor do mesmo lar, onde se substituem os homens e as chamas, que duram mais que os homens.”
(Juan Vázquez de Mella, Discurso del Parque de la Salud de Barcelona, 17 de mayo de 1903)