segunda-feira, 9 de maio de 2011

Pôncio Pilatos

“Sempre dizemos ao recitar o Credo, ou Símbolo da Fé, que Nosso Senhor Jesus Cristo padeceu “sob o poder de Pôncio Pilatos” (sub Pontio Pilato). Não deixa de ser surpreendente que se mencione em tão elevada ocasião a um mero governador romano de província que não procurou nem desejou a morte de Jesus – que tratou até mesmo de evitá-la - , e não a Herodes ou a Caifás ou aos Príncipes dos Sacerdotes que a promoveram e conseguiram, ou a Judas que o entregou, ou, em outro caso, ao Imperador de Roma de quem Pilatos era um simples delegado.
A atual tradução em castelhano, realizada pela Igreja pós-conciliar, substitui a expressão “sob o poder de” para “nos tempos de”. A inépcia é tamanha que não poderia ter sido um simples “aggiornamento” da língua. Em todo o mundo, ninguém conservaria a memória de Pôncio Pilatos se ele não tivesse intervindo no processo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Um biógrafo de Pilatos poderia ter dito que viveu nos tempos de Cristo, mas que Cristo morreu nos tempos de Pilatos carece por completo de sentido e possui um certo caráter grotesco. Seria como dizer de Napoleão que morreu nos tempos de Fouché. Até mesmo dizer que morreu nos tempos do Imperador Tibério soaria estranho, porque a situação histórica de Cristo é incomparavelmente mais relevante que a cronologia dos imperadores romanos. Mas colocar a referência logo em Pôncio Pilatos?
É evidente que essa alusão a Pilatos jamais foi considerada como uma referência temporal e não seria hoje que se lhe outorgaria um tal caráter, passados dois mil anos daqueles fatos. Trata-se, ao invés, de substituir outra coisa por essa localização histórica. E de fazer essa substituição por algum motivo. Que coisa e que motivo? Eis aqui a questão.
Antes de mais nada, por que se menciona a Pôncio Pilatos no Credo e não àqueles outros personagens mais diretamente interessados na morte de Cristo? Por que foi condenado a ser mencionado na morte de Cristo durante séculos e séculos um homem que unicamente se mostrou débil e atemorizado, que procurou, até certo ponto, evitar o desenlace?
Há uma primeira resposta, que talvez pudesse ser suficiente: porque em Pilatos estava o poder - e o livre arbítrio - de decidir a morte e suplício de Cristo. Os judeus não teriam esse poder se Pilatos não lhes tivesse concedido. O César estava muito longe e não se inteirava sequer do que acontecia e do que em seu nome se decidia em Jerusalém.
Essa explicação significaria a responsabilidade pessoal que cabe a cada homem em suas grandes decisões e a responsabilidade muito especial do governante que não exerce uma simples função moderadora e dialogante, mas um ministério sagrado de justiça. Pilatos não queria a morte de Cristo, mas era o único que poderia evitá-la, e não a evitou; pelo contrário, sancionou-a com sua inibição e sua vênia. Essa estranha menção àquele obscuro governador de província seria como uma proclamação, no Símbolo de nossa fé, da realidade do livre arbítrio humano, da responsabilidade pessoal e do sagrado ministério do governante ou do juiz.
Contudo, caberia ainda uma outra interpretação (entre tantas mais, dado que a Palavra inspirada é insondável):
Que sabemos nós de Pôncio Pilatos? Segundo o Evangelho de São João, quando Cristo se declara testemunha da verdade diante dele e afirma que os que são da verdade escutam sua voz, Pilatos pergunta: “que é a verdade?” (quid est veritas?) Não pergunta “que verdade é essa?” ou “de qual verdade falas?”, mas “que é a verdade?” Ao que Cristo não respondeu.
Pilatos, como tantos romanos decadentes e céticos, não acreditava na verdade nem servia a nenhuma verdade. Cria na verdade de cada um, na verdade relativa do homem, de cada homem, verdade subjetiva, em evolução. Se tivesse falado a linguagem de hoje, teria contestado: “A verdade! Então és um radical? Talvez queiras dizer tua verdade, tua opinião, não mais valiosa que qualquer outra opinião.”
Pilatos não professava o liberalismo como doutrina pública porque tal teoria não existia em seu tempo: só havia então o ceticismo pessoal e o relativismo da verdade. Ele pertencia a um povo religioso - o romano - que sacralizava o poder até a própria figura do Imperador. Tampouco os judeus eram liberais; eram, ao invés, governados por uma teocracia. Ali só Pilatos era um precursor, em caráter individual, da teoria que nega a verdade e o bem objetivos, com relação aos quais se deve julgar e governar. Como liberal subjetivo, para resolver a questão socorreu-se da única fonte que resta a quem só crê em verdade e ordem subjetivos: a opinião da multidão. Governar, em tal caso, é responder aos desejos da maioria, “ouvir o povo”, facilitar a paz e a convivência, dado que a sociedade nada mais é que convivência e ninguém pode se arvorar como dono da verdade, porque “que é a verdade?” Em conseqüência, lavou as mãos no assunto para não sublevar o povo: uma solução “democrática”. Além disso, César, como qualquer homem, não gostava de complicações e tampouco analisaria detidamente a justiça daquele processo remoto que só tinha uma vítima...
Caberia então pensar que, quando se diz no Credo que “padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos” (ao outorgar tal relevância a esse nome), está-se querendo dizer – vendo em Pilatos um símbolo - algo como “Cristo morreu sob o poder do liberalismo e da democracia” (Não como regime jurídico ou político válido, mas como disposição subjetiva na mente e no coração de um homem). Se apenas soubéssemos de Pilatos que autorizou a morte de Cristo por debilidade ou por medo, essa alusão única permaneceria misteriosa, mas essa pergunta prévia, “que é a verdade?”, à distância em que nos encontramos, é bastante reveladora.
Aquilo que, em conseqüência, pretende esconder a Igreja pós-conciliar nas atuais traduções, com essa absurda localização cronológica em Pôncio Pilatos, é a referência a seu poder, à índole de seu poder e ao liberalismo de seu coração. E a razão está em que o espírito que anima essa Igreja atual (apesar de atual) está sumamente próximo do espírito de Pilatos: compreende-o e acompanha-o cordialmente. Ela também crucificaria ou permitiria a crucifixão de quem afirmasse uma verdade ou o dever de pertencer a essa verdade e somente a ela.
Na aurora de nosso século, São Pio X - o único pontífice santo da modernidade - teve de enfrentar (e julgar) uma doutrina - e uma atitude - a que chamou de “modernismo”. Tratava-se, a rigor, do liberalismo dentro da própria Igreja.
O modernismo afirmava que o conjunto de verdades ou dogmas dos quais a Igreja se supõe depositária é, na realidade, patrimônio da humanidade inteira, e que a religião - que deve ser dinâmica e não, estática - se identifica com a razão humana e seu desenvolvimento, quer dizer, com o progresso da ciência. Todas as religiões - segundo essa teoria - possuem uma parcela de verdade, e sua evolução as aproxima em convergência até uma religião do futuro, totalmente racional e humana. As verdades absolutas ou dogmáticas não existem: a religião, como as demais manifestações culturais, deve responder à mentalidade e às necessidades do homem em cada época. O evolucionismo (vitalista ou dialético), o liberalismo, a democracia e até mesmo o socialismo não se opõem em absoluto ao cristianismo nem a essa futura religião planetária, mas devem ser considerados como criações cripto-cristãs, quer dizer, cristãs mesmo sem sabê-lo. Sua oposição ao cristianismo é - segundo o modernismo - fruto somente do enquistamento ou da imobilização dogmática da fé. Essa teoria, exposta e condenada por São Pio X em sua encíclica “Pascendi”, é a doutrina que hoje aparece disseminada em toda a Igreja pós-conciliar com o nome de progressismo ou “humanismo” cristão.
Como julgou o santo pontífice a essa doutrina? Simplesmente: como “movimento de apostasia geral” e como “germe e compêndio de todas as heresias”. E não se limitou a condená-la, mas estabeleceu para todas as ordenações, consagrações episcopais e tomadas de posse de cátedras eclesiásticas o prévio “juramento antimodernista” (suprimido sob o pontificado de João Paulo II) pelo qual os clérigos e bispos se comprometiam a lutar até o fim contra tais doutrinas: tal era a extrema periculosidade para a fé que nela reconhecia.
Os fatos se me parecem, desta forma, emparelhados em sua significação e simétricos: nas origens da Igreja, na redação em Nicéia do Símbolo da fé, destaca-se com menção especial e única a Pôncio Pilatos, que professava um liberalismo e um democratismo pessoais ou subjetivos (ao desconhecer a verdade e recorrer à multidão), acima daqueles que por traição ou malevolência procuravam a morte de Cristo. Passam os séculos, quase dois milênios: o liberalismo se converteu em teoria, primeiro política, depois religiosa, e passou da teoria à vigência como forma de governo. Em nosso século um Papa santo se destaca sobre todas as heresias e cismas, vê nessa teoria a fonte de todos os males para a fé, e trata de proteger a Igreja mediante um juramento insólito e solene que deveriam prestar todos os eclesiásticos e todas as hierarquias da Igreja.
A razão, no mais, é óbvia: se uma heresia nega uma ou várias verdades da fé, por exemplo, a Trindade ou a Virgindade de Maria, nem por isso deixa Deus de ser Uno e Trino, nem Maria, Virgem. Mas se uma heresia põe em dúvida - com a quebra de sua própria identidade - o Sacramento da Eucaristia e reduz a Missa a uma assembléia ou a um “memorial da Paixão”, pode conseguir que deixe de acontecer o fato da Transubstanciação sobre a terra. Ou seja, que se rompa definitivamente a ligação principal entre o Céu e os homens, o efeito vivo da Redenção.”
(Rafael Gambra, Bajo el Poder...)