“Tresmontant não é uma figura muito querida entre tradicionalistas, de fato, seu passado de juventude como um “chardiniano” não é de garbo. Todavia, seu trabalho é muito maior do que modas juvenis, e o assunto tratado aqui é de importância seminal, assunto este que o helenista francês prestou devidas explicações valiosas.
Entre suas teses notórias - que longe de serem originais, ressoam perfeitamente como ratificações de verdades milenares - está a de que, desde a gênese do Cristianismo, existe algo muito próprio da cosmogonia cristã, definido e distinto dos eleáticos, dos heraclitianos, platônicos, aristotélicos e etc. Esse algo é alcunhado de metafísica cristã, pois são realidades, mesmo que reveladas, racionalmente concebíveis e justificáveis. Evidentemente, como ele mesmo diz em seus comentários sobre o marxismo (o qual talvez eu comente sobre posteriormente) “outras verdades podem ser assumidas pelos cristãos, pois todas as verdades devem ser entendidas como provenientes, de alguma forma, da Verdade”, portanto existem linhas de conciliação entre platônicos e aristotélicos com o Cristianismo, mas essa conciliação se dá em um enfrentamento; isto é, realiza-se a comparação entre dois modelos existentes, o Cristão e o exógeno.
É mister depreender: não pode ser o Cristianismo um conjunto de forças da moda, mas antes uma Doutrina sólida qual, se pode ser conciliada com algum esquema, o é parcial e combativamente - no sentido clássico de “enfrentamento de teses”.
Essa afirmação, embora nos aparente óbvia, é extremamente atacada em meios inclusive ditos “conservadores”, que seguem a doutrina de Bauer, tacitamente assumida por Eric Voegelin.
Tal concepção consiste em afirmar que não havia “ortodoxia” ou “Doutrina” no Cristianismo Primitivo, apenas um acontecimento puro que, com o passar das eras, foi se adornando com coisas que não lhe eram próprias na gênese (daí o fato de Voegelin se declarar um cristão “pré-Niceno”). Essa negação de um saber sistemático é anteposta por Tresmontant; ele afirma, indubitavelmente, que há nos Pais da Igreja e mesmos nos apóstolos um conjunto subjacente de signos, crenças e teses, sem as quais nada que é explanado pelo Cristianismo primitivo significa em absoluto. Entre tais signos está o já tratado aqui; a Criação, formalmente considerada.
Mas, um argumento antagônico é levantado por alguns: como pode um acontecimento histórico - nomeadamente, a Encarnação, que possibilita o Cristianismo e é seu fundamento último - ter uma filosofia eterna, para todos os tempos e causas, metafísica? Se é histórico é contingente, se é contingente pode assumir diversas verdades em diferentes períodos de tempo, e não é, por conseguinte, uma Verdade única.
Tal concepção é respondida em seu outro livro “São Paulo e o mistério do Cristo”, quando ele apresenta algumas noções sobre a Encarnação. Segundo Tresmontant - e em perfeita confluência com a Doutrina Católica - a Encarnação escolheu, lhe aprouve o tempo onde sucedeu-se. Com esta informação somente podemos dizer que este evento é de uma natureza distinta do que outras ocorrências históricas (no suceder em algum lugar). Enquanto o que é contingente não tem pleno controle sobre o suceder, a Encarnação, segundo a Doutrina de sempre, assumida por todos os cristãos desde os apóstolos - a Metafísica Cristã! -, tem controle sobre quando irá suceder-se, e se tem é porque vem de outro mundo, como Cristo mesmo diz.
Assim, a estrutura interna da Encarnação, assumida na Metafísica Cristã de Tresmontant, tem uma maneira própria de operar, distinta das demais ocorrências alcunhadas de “contingentes”. É um fato histórico que, na verdade, vem do Eterno, e é essa a base de toda a noção de Revelação; o Superior descendo ao inferior.
Não só isso como a história, dentro da própria concepção cristã, é profundamente dependente de toda a Encarnação. Todo o homem tem a vontade de se “religar” a um “saber de salvação”, ao ponto de alguns antropólogos, como o Cardeal Julien Ries, alcunharem o homem de
homo religiosus. A tragédia e o drama humano, a impotência e as prefigurações salvíficas; toda essa suposta “ausência” do acontecimento histórica clama uma presença; uma presença latente, mais ainda presença.
Assim, é ingênuo falar da Encarnação como um simples acontecimento histórico, pois ela é, segundo os Cristãos
1. Voluntária e ciente de todos os períodos históricos ao ponto de escolher um para evidenciar-se.
2. Requerida pela natureza humana enquanto insuficiente e “religada”.
3. Ciente de todas as pessoas sob as quais poderia se alojar, escolhendo aquela que foi salva preventivamente de toda a mancha do pecado, a Virgem Maria.
Tais exigências são “predisponências da Encarnação”, que são escolhidas por ela mesma, e portanto suas categorias são totalmente distintas de quaisquer outras “historicamente aceitáveis”. Com efeito, nenhum evento contingente escolhe quando ele mesmo se sucede, pois na Natureza é a razão da causa que determina o efeito. No caso da Encarnação, o Efeito é Causa. Tentar adequar este acontecimento singular à contingência é perder de vista o horizonte hermenêutico que o Cristianismo imbui nele.
Qual o pano de fundo que legitima a encarnação? Precisamente o pano de fundo Uno e Verdadeiro que advoga Tresmontant, aquilo tácito e presente desde a gênese do Cristianismo. Consequentemente, o que parece uma objeção apenas reforça o caráter Doutrinal e único dos cristãos.
O Deus cristão não é um Deus contingente, mas que se manifesta no contingente, já eternamente decidido que o fará. E tal aspecto é apenas um, dentre tantos outros, que implicam a filosofia cristã sistemática e básica, sem a qual o Cristianismo não teria esta lógica interna, evidente desde os primeiros apóstolos, evidente na própria estrutura da Revelação.
Sobre o aspecto imortal da Encarnação, pedida desde o primeiro homem a cair no Pecado, pego de empréstimo as palavras de Carl Schmitt em suas “Três possibilidades de uma concepção cristã de História”:
"História que não é apenas um arquivo do que foi, mas também não é um auto-espelho humanístico ou um mero pedaço da natureza circulando em torno de si mesma. Em vez disso, a história sopra como uma tempestade em grandes testemunhos. Ela cresce por meio de criações fortes, que inserem o eterno no decorrer do tempo. É um ataque de raízes no espaço de sentido da terra. Através da escassez e da impotência, esta história é a esperança e a honra de nossa existência”.
E não é esse conjunto de tropeços, essa vacuidade e impotência da alma humana, os testemunhos heróicos e os dramas da condição humana apenas esperançosos enquanto esperam, todos, a Cristo Encarnado?”
https://andretheophorus.medium.com