quinta-feira, 23 de abril de 2020

Globalismo viral


“A praga do coronavírus, cujas consequências mal começamos a saborear, nos oferece uma ocasião inigualável para mudarmos nossa enlouquecida forma de vida. Contudo, como nos ensina o Apocalipse, os homens se distinguem sempre, depois de sofrer uma calamidade, por voltar aos mesmos caminhos; e esta conduta irracional, tristemente repetida em todos os crepúsculos da História, se repetirá também agora.
A ninguém escapa que a praga do coronavírus teria um caráter estritamente doméstico se não vivêssemos em um mundo globalizado. O coronavírus teriam comido com batatas os chineses, cujos governantes tirânicos teriam que dar explicações a seus súditos, a quem continuam dizimando das formas mais selvagens há muito tempo. Uma praga circunscrita à China teria feito cambalear a horrenda tirania que ali governa, aberrante híbrido de capitalismo e comunismo; e talvez até servido para que o povo revoltado contra seus governantes tivesse descoberto a origem oculta da praga, que desconfio tenha sido escape de laboratório. No entanto, como vivemos em um mundo globalizado, os chineses espalharam no planeta inteiro o coronavírus, como fazem com todas as tralhas, quinquilharias, bugigangas e porcarias que fabricam. E, ao distribuir os estragos do vírus por todas as nações da terra, os chineses acolheram com resignação oriental (ou seja, com fatalismo) o que diz o provérbio: “Mal de muitos, consolo de tolos”.
Também em nossa aceitação da globalização, como na resignação oriental, há um componente aziago de fatalismo. Por fatalismo diante de um progresso ilimitado e inevitável (eis que não se podem colocar portas no campo!) impôs-se o globalismo como modelo indiscutido de organização social, econômica e política. Naturalmente, tal modelo de vida não era mais que o ‘marco’ que a nova mutação do capitalismo precisava para continuar concentrando a propriedade; mas as massas cretinizadas acabaram tomando gosto pelos novos hábitos que tal ‘marco’ lhes impunha, resumíveis em um consumo irrefreado de tralhas, quinquilharias, bugigangas e porcarias. O que inclui tanto a compra de produtos vindos das paragens mais remotas do atlas como o consumo mesmo do atlas, mediante a expansão mastodôntica do turismo. E assim o planeta inteiro se tornou um sabá de bulimia universal, que nos que estão no comando é bulimia de colecionadores e, nas massas cretinizadas, bulimia de criança que entra em loja de guloseimas e as quer comer todas, empanturrando-se como se não houvesse amanhã.
Chesterton afirmava que o capitalismo é uma heresia porque, em lugar de olhar as coisas criadas e ver que são boas (como fez Deus no Gênese), as olha e vê que são bens. Todas as flores, todos os pássaros, todos os pores do sol, todos os rochedos e cumes elevados, todas as estrelas colocadas à venda, cada uma com seu preço correspondente. E a praga do turismo globalista representa a estação última dessa heresia monstruosa, pondo o mundo inteiro em liquidação, para desfrute de consumidores insaciáveis. O mesmo globalista aproveita o fim de semana para ‘dar uma escapadinha’ (na realidade para abarrotar-se de tralhas, quinquilharias, bugigangas e porcarias) a Milão ou Nova York; e, se o fim de semana pode ser esticado alguns dias a mais, dá um pulo até Xangai (para fazer o mesmo). O lugar-comunismo ambiental pretende que ‘cada um faz com seu dinheiro o que quer’; mas o certo é que aqueles que gastam seu dinheiro em ‘dar escapadinhas’ de fim de semana a Milão ou Nova York, além de serem uns globocaipiras e uns consumidores compulsivos, são carcaças vazias, pessoas que precisam buscar fora de si o que não encontram em seu interior, talvez porque só encontrem esterco. E que, ademais, querem transformar o mundo inteiro no reflexo de sua alma. Trazendo o coronavírus para casa, conseguiram-no plenamente.
Se no mundo ainda restasse um pouco de sanidade, depois da hecatombe que o coronavírus vai causar, renegaríamos a loucura que nos levou a aceitar um modelo de organização social, econômica e política decididamente anti-humano. E, com a abolição do globalismo, nos obrigaríamos – antes de assinar um ‘Protocolo de Quioto’ - a ficarmos quietinhos em nossa aldeia, desfrutando de suas modestas belezas, muito melhores de qualquer maneira que as tralhas, quinquilharias, bugigangas e porcarias que trouxemos do outro extremo do atlas, empanadinhas com o coronavírus. Mas está escrito no Apocalipse que os homens, depois de sofrerem uma calamidade, voltam aos mesmos caminhos.”
(Juan Manuel de Prada, Globalismo Vírico)

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