Todos os outros, por mais gratos ao progresso técnico e ao conforto material, sentem que no mundo capitalista algo de muito essencial e precioso lhes foi roubado: não adianta você dispor de todos os meios se a vida não tem outra finalidade senão produzir mais meios.
Se o capitalismo obteve mais sucesso nos EUA do que em qualquer outro lugar foi apenas porque aí, desde o início, o esforço de produzir e lucrar veio associado à ética cristã da ajuda ao próximo e ao sonho heróico da conquista do território – dois objetivos de vida mais do que suficientes para animar o espírito de um povo.
O capitalismo puro, reduzido ao esquematismo de uma fórmula econômica, tal como se viu nos romances de Balzac e nas análises de Karl Marx que eles inspiraram, jamais existiu nos EUA até o fim da II Guerra.
O que existiu foi um capitalismo vivificado e embelezado pela religião cristã e pelo espírito de aventura. Tão logo o primeiro desses fatores começou a debilitar-se no cenário cultural, e o segundo perdeu todo sentido no território já integralmente dominado, o capitalismo americano deixou de ser um ideal para se tornar uma máquina de auto-reprodução que prescinde de qualquer outra justificativa além da própria capacidade de reproduzir-se e crescer ilimitadamente.
David Riesman, no clássico The Lonely Crowd (1950), assinala que, a partir desse momento, um novo tipo de personalidade-padrão passou a predominar na sociedade americana em substituição ao homem devoto da era colonial e ao self made man dos tempos heróicos: o homenzinho trêmulo e obediente, perfeitamente ajustado ao mecanismo do qual espera proteção e segurança – o Organization Man (1956), como o chamou William H. Whyte Jr. em outro livro clássico.
Não espanta que desde então a burocracia estatal interferisse cada vez mais na economia e até na vida pessoal dos cidadãos, descaracterizando o capitalismo americano e transformando-o cada vez mais num tipo incipiente de socialismo, onde os interesses do Estado convergem com o das grandes corporações no sentido de realizar, por via burocrática, o império da organização econômica como único padrão e critério de julgamento, a que todos os valores religiosos, morais e culturais devem se submeter.
Na mesma medida, uma ética coletivista passa a predominar sobre o ideal da responsabilidade individual, e a crítica cultural de esquerda ao capitalismo, forçando sob esse pretexto a redução de tudo às exigências da economia que ela mesma condena, se torna uma profecia autorrealizável.
Nos EUA, essa situação construiu-se sobre os escombros da tradição cristã e do espírito aventureiro. Nos países onde não encontrou semelhantes fatores de resistência, esse resultado se obteve de maneira muito mais rápida e direta, em muitos deles com o agravante do subdesenvolvimento, onde o misto de capitalismo incipiente, ineficiência e permanente exasperação socialista reduz a vida a uma “luta contra a pobreza”, que é a versão favelada da luta pela prosperidade.
Seja nesses países, seja no capitalismo americano esvaziado de seus valores culturais, onde quer que a economia subjugue dessa maneira as outras dimensões da vida social, o resultado é aquele tipo de existência sem sentido, no qual só se sentem à vontade, de um lado, os mais materialistas, que regem o espetáculo e, de outro lado, os mais burrinhos, incapazes de aspirar a qualquer coisa mais alta que uma sobrevivência protegida.
É aí que começam a brotar, em número cada vez maior, os desajustados, os revoltados, os outsiders.
Há basicamente três tipos de outsiders. Para abreviar, vou chamá-los de “o fracassado”, “o gênio” e “o militante”.
O primeiro é o desajustado em sentido estrito, incapaz de jogar o jogo e até de assimilar as regras. Por mais que tentem ajudá-lo, fracassa nos estudos, no trabalho e na vida social, caindo logo para a loucura, o vício, o crime. Em muitos países – o Brasil, por exemplo – esse tipo representa mais de dez por cento da população.
O segundo compreende muito bem as regras e sabe usá-las, mas prefere jogar o seu próprio jogo. Buscando no interior da sua alma a raiz do espírito que vivifica e fortalece, ele pode enfrentar no início o isolamento e a rejeição, mas acaba sempre obrigando a sociedade a aceitá-lo como ele é, e não raro a render-lhe homenagem, mesmo a contragosto.
Gênios, sobretudo literários, existiram antes do capitalismo, é claro, mas não eram outsiders. Passaram a sê-lo no tempo de Baudelaire e Flaubert, ou, nos EUA, uns poucos a partir da I Guerra e em massa a partir da II.
O terceiro é um misto, feito de versões diluídas e atenuadas dos outros dois. Tem a fraqueza do primeiro, sem o seu derrotismo, e a ambição do segundo, sem a sua força.
Não compreende a sociedade, mas não aceita que ela o esmague. Junta-se portanto a outros milhares iguais a ele, buscando no apoio do grupo as forças que o gênio encontra em si próprio. Incapaz de transformar-se, jura que vai transformar o mundo.
O número de correligionários é o fator decisivo na vida dos militantes. Quando em minoria, reúnem-se para compensar o isolamento grupal com a reiteração histérica do discurso crítico, que lhes infunde um sentimento forçado de superioridade.
Quando se tornam maioria dominante, esse sentimento se transmuta em critério de normalidade, impondo-se à sociedade inteira e marginalizando como doentes ou criminosos aqueles que ainda permanecem normais no sentido antigo.
A pletora de gênios literários que floresceu no mundo desde o século XIX conferiu ao outsider um prestígio quase sacral, que dos gênios se estendeu por osmose aos loucos e aos militantes, como se a doença de uns e a auto-hipnose grupal dos outros fossem formas de genialidade.
As modalidades de existência mais capengas que existem tornaram-se modelos de perfeição humana.
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Talvez o sinal mais patente de que a militância revolucionária é uma forma inferior e mórbida de existência é a absoluta impossibilidade que um escritor revolucionário tem de enxergar como seres humanos normais, sem deformações sádicas ou grotescas, os que não compartilham das suas crenças.A literatura mundial está repleta de personagens revolucionários tratados com simpatia e compreensão por escritores conservadores e reacionários, como Balzac, Dostoiévski, Bernanos, Joseph Conrad ou o nosso Octávio de Faria.
Um reacionário que não seja mau ou ridículo é algo que simplesmente inexiste na literatura comunista. Isso mostra, da maneira mais patente, que a visão do mundo revolucionária é uma fantasia histérica, em que a percepção direta do ser humano, tal como ele aparece na vida real, é sufocada sob o peso do estereótipo ideológico.”
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