quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Novamente, sedevacantismo


"Talvez um certo número de leitores destes “Comentários” possa irritar-se por mais uma vez voltar ao tema dos papas conciliares não serem totalmente papas, mas a tradução recente para o francês de um artigo em inglês de 1991 mostra por que é preciso demonstrar reiteradas vezes que os argumentos em prol do sedevacantismo não são tão conclusivos como parecem ser. Os liberais não precisam de tal demonstração, porque para eles o sedevacantismo não é uma tentação. No entanto, há certo número de almas católicas atraídas pela graça de Deus para longe do liberalismo em sentido à tradição católica para a qual o sedevacantismo torna-se positivamente perigoso. O diabo não se importa se nós perdemos o equilíbrio para a direita ou para a esquerda, desde que percamos nosso equilíbrio.
Pois, na verdade, o erro do sedevacantismo pode, em teoria, não ser um erro tão profundo e grave como a mentalidade universal apodrecida do liberalismo, mas, na prática, quantas vezes se observa que com o sedevacantismo as mentes se fecham, e que o que começou como uma opinião aceitável (que católico pode dizer que as palavras e ações do papa Francisco são católicas?) tende a tornar-se uma certeza dogmática inaceitável (que católico pode julgar com certeza uma questão tal?), para impôr-se como o dogma dos dogmas, como se a catolicidade de uma pessoa precisasse ser julgada pelo fato de ela crer ou não que não temos nenhum papa verdadeiro desde, digamos, Pio XII.
Uma razão oferecida pelos “Comentários” anteriores para essa dinâmica interna frequentemente observada no sedevacantismo pode ser a simplicidade do nó górdio com a qual se remove um problema angustiante e ameaçador para a fé: “Como podem esses destruidores da Igreja ser verdadeiros papas católicos?” Reposta: Na realidade, eles não são papas, absolutamente. “Oh, que alívio! Já não preciso ficar angustiado.” A mente fecha-se, o sedevacantismo deve ser pregado como se fosse o Evangelho para quem quiser ouvir (ou não ouvir), e na pior das hipóteses, ele pode ser estendido desde os papas até todos os cardeais, bispos e sacerdotes, de modo que um católico outrora crente se transforma num “home-aloner”, que desiste totalmente de ir à missa. Será que ele terá sucesso em manter a fé? E seus filhos? Aqui reside o perigo.
Portanto, para manter nossa fé católica em equilíbrio e evitar as armadilhas atuais tanto à esquerda quanto à direita, olhemos para os argumentos de BpS no artigo de 15 páginas mencionado acima. (“BpS” é uma abreviatura que muitos leitores não identificarão à primeira vista, mas não é necessário que seja explicitada aqui, porque estamos mais preocupados com seus argumentos do que com a sua pessoa). Em seu artigo, ao menos ele pensa e tem uma fé católica no Papado, caso contrário os papas conciliares não seriam um problema para ele. Esta lógica e esta fé são o que há de melhor nos sedevacantistas, mas nem BpS nem eles estão trabalhando a partir do quadro inteiro: Deus não pode deixar de velar por sua Igreja, mas ele pode deixar de velar por seus clérigos.
Aqui está, pois, seu argumento em poucas palavras: premissa maior: a Igreja é indefectível. Premissa menor: no Vaticano II a Igreja foi liberal, uma grande defecção. Conclusão: a Igreja Conciliar não é a verdadeira Igreja, o que significa que os papas conciliares que guiaram ou seguiram o Vaticano II não podem ter sido papas reais.
O argumento parece bom. Entretanto, a partir das mesmas premissas pode-se tirar uma conclusão liberal: a Igreja é indefectível, a Igreja tornou-se liberal, então eu também, como um católico, devo ser liberal. Assim, o fato de o sedevacantismo partilhar suas raízes com o liberalismo deveria fazer qualquer sedevacantista pensar duas vezes. BpS percebe as raízes comuns, e chama-as de “irônicas”, mas são muito mais do que isso. Elas mostram os liberais e sedevacantistas cometendo o mesmo erro, que deve estar na premissa maior. Na realidade, tanto aqueles como estes entendem mal a indefectibilidade da Igreja, assim como confundem a infalibilidade dos Papas. Confira estes “Comentários” da semana que vem para uma análise mais detalhada do argumento de BpS.
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Para qualquer alma católica que hoje compreende a gravidade da crise na Igreja e se aflige em relação a isto, a simplicidade do sedevacantismo, que rejeita como inválidos a Igreja e os papas do Vaticano II, pode tornar-se uma séria tentação. Pior, a aparente lógica dos argumentos dos eclesiavacantistas e dos sedevacantistas podem tornar esta tentação uma armadilha mental que pode, na pior das hipóteses, levar um católico a perder a sua fé completamente. É por isso que estes “Comentários” retornarão mais detalhadamente ao argumento principal dos muitos argumentos expostos por BpS no artigo de 1991, mencionado aqui semana passada. Eis, novamente, o tal argumento:
Premissa maior: a Igreja Católica é absolutamente infalível (tem a garantia do próprio Deus de que durará até o fim do mundo – cf. Mt. XXVIII,20). Premissa menor: Mas a Igreja Conciliar ou Igreja Novus Ordo, solapada pelo neomodernismo e pelo liberalismo, representa uma absoluta falibilidade. Conclusão: a Igreja Novus Ordo é absolutamente não católica e seus papas são absolutamente não papas. Em outras palavras, a Igreja é absolutamente branca enquanto a Neoigreja é absolutamente preta, de modo que a Igreja e a Neoigreja são absolutamente diferentes. Para mentes que gostam de pensar no preto e no branco sem algo entre eles, este argumento tem muito apelo. Mas para mentes que reconhecem que na vida real as coisas são frequentemente cinzas, ou uma mistura de preto e de branco (sem que o preto deixe de ser preto ou o branco deixe de ser branco), o argumento é muito absoluto para ser verdadeiro. Assim, na premissa maior há um exagero sobre a infalibilidade da Igreja, e na premissa menor há um exagero em relação à falibilidade da Neoigreja. A teoria pode ser absoluta, mas a realidade raramente o é. Vejamos a infalibilidade e a falibilidade conciliar como são na realidade.
Quanto à premissa maior, os sedevacantistas frequentemente exageram a infalibilidade da Igreja, assim como frequentemente exageram a infalibilidade do papa, porque é isto que precisam para suportar seu horror emocional em relação ao que se tornou a Igreja Católica a partir do Concílio. Mas, na realidade, assim como aquela infalibilidade não exclui grandes erros de alguns papas na história da Igreja e somente se aplica quando o papa está seja ordinariamente dizendo o que a Igreja sempre disse, seja extraordinariamente empregando todas as quatro condições da definição de 1870, também a infalibilidade da Igreja não exclui absolutamente algumas grandes falibilidades em certos momentos da história eclesiástica, tais como os triunfos do Islã, do Protestantismo ou do Anticristo (Lc. XVIII,8), senão que exclui absolutamente uma falibilidade total ou uma falha total (Mt. XXVIII, 20). Assim, a infalibilidade não é tão absoluta quanto BpS pretende que seja.
Quanto à premissa menor, é verdade que a falibilidade do conciliarismo é consideravelmente mais grave do que aquela do Islã ou do Protestantismo, porque ataca a cabeça e o coração da Igreja em Roma, algo que estas últimas não fazem. Não obstante, mesmo meio século de conciliarismo (1965 a 2016) não fez a Igreja falhar totalmente. Por exemplo, Dom Lefebvre – e ele não estava sozinho – manteve a fé de 1970 a 1991, seus sucessores fizeram o mesmo, mais ou menos, de 1991 a 2012, e a combatida “Resistência” mantém-se na linha dele; e antes que a Igreja humanamente entre em colapso, num futuro não tão distante, sua infalibilidade inquestionavelmente será divinamente salva, antes do fim do mundo – Mt. XXIV, 21-22. Assim, o conciliarismo como uma falibilidade da Igreja também não é tão absoluto quanto BpS pretende que seja.
Desse modo, seus silogismos precisam ser reformulados – Premissa maior: a infalibilidade da Igreja não exclui grandes falhas, mas tão somente uma falibilidade total. Premissa menor: o Vaticano II foi uma grande, mas não total, falibilidade da Igreja (mesmo se os católicos conscientes de seu perigo tenham de evitá-la por completo, sob o risco de contaminação). Conclusão: a infalibilidade da Igreja não exclui o Vaticano II. Brevemente, a Igreja do próprio Deus é maior que toda a iniquidade do Demônio ou do homem, mesmo o Vaticano II. A falibilidade conciliar pode bem ser de uma gravidade sem precedente em toda a história da Igreja, mas a infalibilidade da Igreja e a infalibilidade dos papas vêm de Deus e não dos homens. Como liberais, os sedevacantistas estão pensando humanamente, todos humanamente demais.”
(Mons. Richard Williamson, Again, Sedevacantism)

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