segunda-feira, 16 de julho de 2018

Figuras de linguagem


“Toda figura de linguagem expressa compactamente uma impressão sem indicar com clareza o fenômeno objetivo que a suscitou. Decomposta analiticamente, ela se revela portadora de muitos significados possíveis, alguns contraditórios entre si, que podem corresponder à experiência em graus variados. No Brasil de hoje, todos os “formadores de opinião” mais salientes, sem exceção visível – comentaristas de mídia, acadêmicos, políticos, figuras do show business -- pensam por figuras de linguagem, sem a mínima preocupação – ou capacidade – de distinguir entre a fórmula verbal e os dados da experiência. Impõem seus estados subjetivos ao leitor ou ouvinte de maneira direta, sem uma realidade mediadora que possa servir de critério de arbitragem entre emissor e receptor da mensagem. A discussão racional fica assim inviabilizada na base, sendo substituída pelo mero confronto entre modos de sentir, uma demonstração mútua de força psíquica bruta que dá a vitória, quase que necessariamente, ao lado mais barulhento, histriônico, fanático e intolerante. Como as pessoas pressentem de algum modo que essa situação ameaça descambar para a pura e simples troca de insultos, se não de tapas ou de tiros, o remédio que improvisam por mero automatismo é apegar-se às regras de polidez como símbolo convencional e sucedâneo da racionalidade faltante, como se um sujeito declarar calma e educadamente que os gatos são vegetais fosse mais racional do que berrar indignado que são animais. O resultado é que a linguagem dos debates públicos se torna ainda mais artificiosa e pedante, facilitando o trabalho dos demagogos e manipuladores.
É um ambiente de alucinação e farsa, no qual só o pior e mais vil pode prevalecer.
O cúmulo da devassidão mental se alcança quando as leis penais passam a ser redigidas dessa maneira. Se a definição de uma conduta delituosa é vaga e imprecisa, a tipificação do crime correspondente se torna pura matéria de preferência subjetiva do juiz ou de pressão política por parte de grupos interessados. Assim, por exemplo, o agitador que pregue abertamente a inferioridade da raça negra e o engraçadinho que faça uma piada ocasional sobre negros podem ser condenados à mesma pena por delito de “racismo”. Duas condutas qualitativamente incomparáveis são niveladas por baixo: não há mais diferença entre delito e aparência de delito. É a mulher de César às avessas: não é preciso ser criminoso, basta parecê-lo. Basta caber numa definição ilimitadamente elástica que inclui desde o uso impensado de certas palavras até a doutrinação genocida explícita e feroz. “Racismo” é uma figura de linguagem, não um conceito rigoroso correspondente a condutas determinadas. Uma lei que o criminalize é um jogo de azar no qual a justiça e a injustiça são distribuídas a esmo, por juízes que têm a consciência tranqüila de estar agindo a serviço da liberdade e da democracia. É uma comédia. Quem se der o trabalho de distinguir analiticamente os vários sentidos com que a palavra “racismo” é usada em diversos contextos verificará que eles correspondem a condutas muito diferentes entre si, das quais algumas podem ser criminosas. Estas é que têm de ser objeto de lei, não o saco de gatos denominado “racismo”. E “homofobia”, então? Seu sentido abrange desde o impulso homicida até devoções religiosas, desde a discussão científica de uma classificação nosológica até a repulsa espontânea por certo tipo de carícias – tudo isso criminalizado por igual. Quem cria e redige essas leis são obviamente pessoas sem o mínimo senso de responsabilidade por seus atos: são adolescentes embriagados de um delírio de poder; são mentes disformes e anti-sociais, são sociopatas perigosos. Só eleitores totalmente ludibriados podem ter elevado esses indivíduos à condição de legisladores, dando realidade à fantasia macabra do “Doutor Mabuse” de Fritz Lang: a revolução dos loucos, tramada no hospício para subjugar a humanidade sã e impor a demência como regra. E não pensem que ao dizer isso esteja eu mesmo apelando a uma figura de linguagem, hiperbolizando os fatos para chamar a atenção sobre eles. A incapacidade de distinguir entre sentido literal e figurado, a perda da função denominativa da linguagem, a redução da fala a um jogo de intimidação e sedução sem satisfações a prestar à realidade, são sintomas psiquiátricos característicos. Quando tomei conhecimento dos diagnósticos político-sociais elaborados pelos psiquiatras Joseph Gabel e Lyle H. Rossiter, Jr., que indo além da concepção schellinguiana da “doença espiritual” classificavam as ideologias revolucionárias como patologias mentais em sentido estrito, achei que exageravam. Hoje sei que estavam certos.
As figuras de linguagem são instrumentos indispensáveis não só na comunicação como na aquisição de conhecimento. Quando não sabemos declarar exatamente o que é uma coisa, dizemos a impressão que ela nos causa. Todo conhecimento começa assim. Benedetto Croce definia a poesia como “expressão de impressões”. Toda incursão da mente humana num domínio novo e inexplorado é, nesse sentido “poética”. Começamos dizendo o que sentimos e imaginamos. É do confronto de muitas fantasias diversas, incongruentes e opostas que a realidade da coisa, do objeto, um dia chega a se desenhar diante dos nossos olhos, clara e distinta, como que aprisionada numa malha de fios imaginários – como a tridimensionalidade do espaço que emerge das linhas traçadas numa superfície plana. Suprimir as metáforas e metonímias, as analogias e as hipérboles, impor universalmente uma linguagem inteiramente exata, definida, “científica”, como chegaram a ambicionar os filósofos da escola analítica, seria sufocar a capacidade humana de investigar e conjeturar. Seria matar a própria inventividade científica sob a desculpa de dar à ciência plenos poderes sobre as modalidades “pré-científicas” de conhecimento.
Mas, inversamente, encarcerar a mente humana numa trama indeslindável de figuras de linguagem rebeldes a toda análise, impor o jogo de impressões emotivas como substituto da discussão racional, fazer de simbolismos nebulosos a base de decisões práticas que afetarão milhões de pessoas, é um crime ainda mais grave contra a inteligência humana; é escravizar toda uma sociedade – ou várias – à confusão interior de um grupo de psicopatas megalômanos.”

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