quinta-feira, 19 de julho de 2018

As sete trombetas


“Escrevia Leon Bloy que, toda vez que queria inteirar-se das últimas notícias, lia o Apocalipse. É que, com efeito, no Apocalipse, sob sua aparente linguagem críptica, encontramos uma explicação profunda das vicissitudes da História humana. Ocorre assim, por exemplo, na narrativa das "sete trombetas". Um anjo toca a trombeta e sobre a humanidade se abatem pragas horrendas e arrasadoras; mas os homens, ao invés de se escarmentarem, perseveram no erro: "E os homens que não foram mortos com estas pragas, não se arrependeram das obras saídas de suas mãos, nem deixaram de adorar os demônios, e os ídolos de ouro, de prata, de bronze, de pedra e de madeira, os quais não podem ver, nem ouvir, nem andar; e não se arrependeram de seus homicídios, nem de suas feitiçarias, nem de sua fornicação, nem de seus furtos." Com o que, à praga sofrida, sobrevém outra praga todavia maior. Esta pertinácia no erro é uma das notas mais constantes da História humana: inexplicável se não considerássemos a intervenção do mistério da iniquidade.
Estamos vendo-o no desenvolvimento do que os semiletrados chamam 'crise econômica', autêntica praga bíblica que, como ocorre sempre, tem sua origem em uma obra saída de mãos humanas: o 'dinheiro fantasma' a que aludimos em um artigo anterior, a transformação do dinheiro em um 'ídolo' que deixou de ser um símbolo que representa o valor das coisas para multiplicar-se de maneira mágica, desligado da riqueza real. Bastaria somar o produto interno bruto de todas as nações da terra, por um lado, e o valor – muito maior! - que se atribui ao dinheiro fantasma que flui pelos mercados financeiros, por outro, para que concluíssemos que, com efeito, essa multiplicação é uma 'feitiçaria' e um 'furto'; e para que compreendêssemos que, toda vez que se trata de tornar efetivo esse 'dinheiro fantasma' toda vez que um Estado paga a parcela de sua dívida aos 'investidores' financeiros, toda vez que se realiza uma operação bursátil que torna milionários tais 'investidores', o que na realidade se está fazendo é subtrair dinheiro da espoliada economia real. Pois, não sendo o dinheiro um espírito, senão um símbolo que representa o valor das coisas, só pode fazer-se 'real' encarnando-se nas coisas que existem; ou, como ocorre nas mágicas financeiras, vampirizando-as, arrebatando-lhes a vitalidade, até deixá-las espremidas e exaustas. Por isso sobem nossos impostos, baixam nossos salários ou reduzem as chamadas 'prestações' sociais (que não são senão 'contraprestações', pois previamente as pagamos): porque o 'dinheiro fantasma', para não ser um mero cômputo que passeia errabundo pelos terminais informáticos dos mercados financeiros, necessita "corporizar-se', aniquilando a vítima que lhe presta seu sustento.
Para exorcizar esta praga, bastaria que renunciássemos à obra saída de nossas mãos; ou seja, que deixássemos de 'adorar' esse daimon que é o dinheiro fantasma. Bastaria, enfim, que renegássemos a 'feitiçaria' (a multiplicação fantasmagórica do dinheiro) e o 'furto' (a depredação da economia real, perpetrada através das exações acima mencionadas), instaurando uma economia na qual o dinheiro voltasse a ser um símbolo da riqueza real das nações, recuperando aquela noção de economia como 'administração razoável dos bens necessários à própria vida' que preconiza Aristóteles, frente a essa noção funesta de crematística ou 'arte de enriquecer sem limites' que o mesmo Aristóteles considerava perversão da economia, consistente em fazer crer que o dinheiro pode ser ordenhado como se fosse uma vaca. Mas o dinheiro não pode ser ordenhado, só pode ser consumido; e toda vez que a 'feitiçaria' dos mercados financeiros finge que o está ordenhando, o que na realidade faz é consumi-lo, consumindo-nos. Tudo que até hoje se tentou como paliativo à crise nada mais fez que agravá-la: os 'salvamentos' à banca, os 'ajustes fiscais', a 'flexibilização' do mercado laboral, os 'cortes' nas prestações, etcétera, nada mais são que expressões eufemistas do consumo da economia real, com o qual se pretende inutilmente alimentar o buraco negro gerado pelo dinheiro fantasma. Buraco que nunca será saciado, porque, toda vez que recebe uma nova transfusão de sangue, multiplica seu frenesi vampírico; e toda tentativa estéril de saciá-lo só provocará que, à praga que estamos padecendo, se suceda outra praga ainda maior, como nos ensina a narrativa das sete trombetas."
(Juan Manuel de Prada, Las Siete Trombetas)