sexta-feira, 1 de junho de 2018

Olavo de Carvalho sobre o Estado e a unidade nacional


“Faço aqui, mutatis mutandis, uma analogia com o que Eric Voegelin observou sobre o Estado alemão nos anos 30 do século passado. Os modelos de convivência e associação vigentes na sociedade civil determinam a estrutura real do poder de Estado, independentemente das normas legais consagradas oficialmente. Ou estas últimas refletem aqueles modelos, e aí temos uma sociedade política funcional, ou se sobrepõem a eles como um verniz, encobrindo sob uma camada de adornos jurídicos as relações reais de poder. Neste caso, tudo na vida política é farsa e língua dupla, às vezes sem que os personagens envolvidos se dêem plena conta disso. O deslocamento entre a racionalidade aparente do discurso político e a substância dos fatos traduz-se em ineficiência administrativa e corrupção, e a revolta popular contra os maus governantes, ao expressar-se na linguagem institucional vigente, erra o alvo por muitos metros, apegando-se a soluções aparentes que, no fim das contas, agravam a situação.
Um breve exame dos modelos de convivência existentes na sociedade brasileira revela comunidades atomizadas, onde cada um age de maneira imediatista, sem ter a menor consciência dos efeitos das suas ações sobre os seus próximos e às vezes nem sobre o seu próprio futuro. A mesma conduta observa-se em grupos formados por interesses corporativos, sem muita noção do seu papel na sociedade como um todo e na convivência com outros grupos (os professores são o exemplo mais enfático: defendem bravamente os seus interesses de classe sem sentir-se, no mais mínimo que seja, responsáveis pelos efeitos devastadores que a educação que fornecem produz sobre os seus alunos). Um senso de unidade popular só aparece na dissolução dos indivíduos na massa carnavalesca alucinada, e um rudimento de identidade nacional nos campeonatos de futebol.
Não é de espantar que, por baixo do belo quadro institucional e de todos os discursos, a política não passe da disputa animal entre interesses grupais e corporativos, ora sob o pretexto dos direitos humanos e da igualdade, ora sob o da legalidade e da ordem, conforme os agentes se considerem “progressistas” ou “liberal-conservadores”. Mas até os pretextos são intercambiáveis, conforme as conveniências do momento. A linguagem dos debates públicos não serve para descrever a situação, mas para “dar impressão”.
Um princípio de identidade nacional, o sinal da emergência de um autêntico povo brasileiro apareceu nas manifestações de protesto a partir de março de 2015, mas logo a energia ali reunida foi desviada para as “soluções institucionais” em favor da elite política e da “pacificação nacional”. Pela enésima vez a elite salvou-se pela mágica da “conciliação”, repetindo o mecanismo tão bem descrito em dois clássicos dos estudos brasileiros, A Consciência Conservadora no Brasil, de Paulo Mercadante, e Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro. A linguagem do fingimento, ameaçada por uns instantes, restaurou-se triunfalmente, sufocando uma vez mais a realidade.
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Eric Voegelin diz que na Alemanha o apelo à “raça” surgiu como substitutivo de uma identidade nacional inexistente e fez sucesso justamente porque parecia preencher uma lacuna. Mas é impossível haver uma unidade nacional fundada na pura biologia.
No Brasil, uma unidade nacional pareceu emergir em quatro momentos da nossa História: a guerra do Paraguai, o governo Getúlio Vargas (com a II Guerra Mundial, a campanha “O Petróleo é Nosso” e a promoção governamental do Rio de Janeiro a símbolo condensado do país) e os movimentos de protesto a partir de 2015. Em todos esses casos o fundamento escolhido era temporário, ou então, pior ainda, baseado na pura geografia.
Uma verdadeira unidade nacional nasce quando as formas de associação e convivência reais da sociedade civil de consolidam em instituições e leis, como o senso comunitário da América colonial se consolidou na Declaração da Independência, na Constituição e no Bill of Rights, ou como, na Inglaterra, as relações tradicionais entre o povo e o “gentleman farmer” se consolidaram nas formas do Direito consuetudinário.
Quando há um hiato, para não dizer um abismo, entre as formas de associação popular e a esfera das instituições, a sociedade política não tem verdadeira representatividade, vive de fingimento em fingimento e de crise em crise, até que apareça algum substitutivo forçado da ordem faltante (por exemplo, o mito da raça superior ou o mero senso da propriedade territorial, o “nosso petróleo”).
Se, por seu lado, as formas populares de associação são toscas e não fornecem base suficiente para uma ordem institucional fundada nelas, então o problema se agrava formidavelmente.”

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