"Sempre há pessoas que se revoltam quando um escritor se atreve a desafiar as convenções do pensamento hegemônico. Chesterton e Belloc, por exemplo, tornavam frenéticos certos leitores do G. K's Weekly cada vez que escreviam que capitalismo e comunismo eram heresias que, sob sua aparência dialética, encobriam uma meta comum; e os leitores mandavam aos periódicos cartas furiosas nas quais os apelidavam de "papistas", ante o que Chesterton e Belloc empunhavam o rosário e os espantavam. Hoje há pessoas que continuam se aborrecendo se um escritor se atreve a equiparar capitalismo e comunismo; mas já ninguém utiliza o insulto de "papista", talvez porque o Papado perdeu ascendência espiritual, ou porque convém fazer que o Papa seja um tipo estupendo. Assim que, quando alguém se irrita contra ti por repetires exatamente o mesmo que Chesterton e Belloc denunciavam há um século, já não te chamam papista, mas "integrista" (e nem sequer faz falta que empunhes o rosário!), que é insídia que, em um mundo tão esquerdopata como o nosso, lança uma condenação indelével sobre o réprobo.
Também se tende a apelidar um escritor de "integrista" quando se atreve a denunciar a deriva totalitária da democracia. Já nos advertia Ortega, esse feroz integrista, que "a democracia, como democracia, ou seja, estrita e exclusivamente como norma do direito político, parece uma coisa ótima. Mas a democracia exasperada e fora de si é a mais perigosa doença de que pode padecer uma sociedade"; pois "quanto mais reduzida seja a esfera de ação própria de uma idéia, mais perturbadora será sua influência, se se pretende projetá-la sobre a totalidade da vida". É que, com efeito, a democracia, nesta fase da história, deixou de ser uma forma de governo para tornar-se uma religião antropoteísta que, enquanto esfuma ou prostitui o mandato representativo, proclama-se instância última para estabelecer o bem e o mal, o justo e o injusto, entregando à aritmética das maiorias toda a regulação da vida humana. Esta "vontade de regular a totalidade da vida humana" – nos recordava Malraux, outro integrista descomunal e lefevriano – é o que caracteriza o totalitarismo; e da deriva totalitária da democracia já nos advertia Tocqueville, sumo pontífice do integrismo, em A Democracia na América: "Cadeias e verdugos eram os instrumentos grosseiros que no passado empregava a tirania, mas em nossos dias a civilização aperfeiçoou até o mesmo despotismo. Os príncipes haviam, por assim dizer, materializado a violência; mas as repúblicas democráticas de nossos dias tornaram-na tão intelectual como a vontade humana que querem reduzir. Sob o governo absoluto de um só, o despotismo, para chegar à alma, golpeava vigorosamente o corpo; e a alma, escapando a seus golpes, se elevava gloriosa por cima dele. Mas nas repúblicas democráticas a tirania deixa o corpo e vai direto à alma. O amo já não diz: "Pensai como eu ou morrereis", mas: "Sois livres de não pensar como eu. Vossa vida, vossos bens, tudo conservareis, mas a partir deste dia sereis estranhos entre nós. Permanecereis entre os homens, mas perdereis vossos direitos de humanidade. Quando vos aproximardes de vossos semelhantes, fugirão de vós como de empestados e até aqueles que creiam em vossa inocência vos abandonarão. Deixo-vos a vida, mas a que vos deixo é pior que a morte".
Esse inferno totalitário já está entre nós. E nele se enlanguescem os empestados, enquanto as massas desprevenidas não estão nem aí e arrotam felicíssimas os vapores da alfafa sistêmica que engolem sem reclamar."
(Juan Manuel de Prada, Democracia y Totalitarismo)
El martirio según el martirologio
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