segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Machado de Assis e algumas questões atuais (em torno dos contos A Igreja do Diabo e Manuscrito de Um Sacristão)

“Machado de Assis sempre nos obriga a pensar e a tirar alguma conclusão. E isto não só em suas obras maiores, mas também em seus escritos mais singelos. E nas horas vagas, para fugir ao tédio, recompor-se das agruras e espairecer o espírito, reler algumas das suas páginas é uma boa opção. (Espero não ser mal interpretado ou acusado de propor Machado de Assis como livro de meditação espiritual ou alternativa à oração cristã!)
Infelizmente, entre muitos católicos, há certa prevenção contra o grande escritor, considerado, injustamente, como um ímpio, um agnóstico inimigo da religião. Parece-me que para essa falsa opinião sobre Machado de Assis muito concorreram alguns artigos de Jackson de Figueiredo (Cf. Hamilton Nogueira, Jackson de Figueiredo, 1976), bem como o interessante estudo de Dom Hugo Bressane de Araújo, O aspecto religioso da obra de Machado de Assis.
Na verdade, como o fez ver muito bem Miguel Reale em A filosofia na obra de Machado de Assis, o fundador da Academia Brasileira de Letras jamais se ufanou do seu agnosticismo, pelo contrário, em algumas passagens de sua lavra, deixou transparecer uma ânsia pelo eterno. Contudo, deve-se dizer que não é um autor recomendável para qualquer um. O que é remédio para uns pode ser veneno letal para outros. Se Machado de Assis não foi um mestre da boa doutrina, um guia no caminho das virtudes cristãs (e realmente não o foi), isto não significa que tenha sido um deformador, um corruptor dos espíritos. Quem tiver boa vontade e capacidade intelectual poderá sempre extrair boas lições da sua obra.
No saboroso conto A Igreja do Diabo, com seu senso de humor tão peculiar, Machado de Assis me fez pensar nos modernistas desejosos de agora, sob o patrocínio do bispo de Roma papa Bergoglio, querer organizar a sua Igreja. Com efeito, Machado de Assis narra que o Diabo, certo dia, apesar dos seus lucros contínuos e grandes, resolveu fundar a sua Igreja. Estava cansado de tanta improvisação, de não ter nada fixo, nada regular. O Diabo diz: “Enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será a única; não acharei diante de mim nem Maomé nem Lutero.”
Realmente, essas palavras colocadas por Machado na boca do Diabo me reportaram ao sonho dos progressistas de organizar sua religião universal a expensas dos chamados fundamentalistas, tradicionalistas e restauracionistas que, segundo eles, ficam discutindo o sexo dos anjos a pretexto de defender a integridade da fé.
Outra passagem que me fez lembrar dos progressistas, especialmente do Hans Kung e do cardeal Martini, foi o diálogo do Diabo com o Senhor Deus. Diz-lhe o Espírito das trevas que o céu ficaria uma casa vazia, tal o preço de entrada. Então ele fundaria uma igreja capaz de acolher todo tipo de gente. Não seria exclusivista, aceitaria todos, menos os que não fossem nada. Assim também os progressistas dizem que só os integristas devem ficar de fora, porque esses não são nada.
Ora, essas palavras do Diabo são reproduzidas quase que literalmente pelos progressistas de hoje. Hans Kung encheu-se de esperança com a eleição de Bergoglio porque achou que era chegada, finalmente, a hora de fundar a sua igreja que atrairia as multidões que renegaram a fé. Martini, em suas meditações de Jerusalém disse que a ética sexual católica tradicional tinha de ser abandonada e a Humanae Vitae, substituída por um novo documento. O Diabo, também, no conto de Machado de Assis, propõe a reforma completa do Decálogo e a canonização de todos os vícios.
Mas o notável no conto A Igreja do Diabo é a análise da psicologia humana. No final, o Diabo fica decepcionado porque os homens, que a princípio tinham aceitado a sua igreja permissiva e relaxada, voltavam à prática dos antigos valores morais. O Diabo ficou assombrado, sem entender nada (Hoje os próceres do progressismo da época do Vaticano II também estão atônitos diante dos jovens que querem a Missa tradicional). Machado de Assis tenta explicar o fato pela lei da eterna contradição humana. Teria sido mais feliz se dissesse com Platão que a injustiça não pode ser levada às últimas consequências, sob pena de autodestruição. Assim também a igreja progressista caminhará para sua autodestruição se não responder às verdadeiras aspirações do coração humano pelo bem, pelo belo e pelo verdadeiro.
No conto Manuscrito de um sacristão, que a um leitor despreparado poderá parecer talvez uma zombaria do celibato sacerdotal, na verdade se encerra uma fina lição de psicologia sobre a origem e desenvolvimento dos afetos do coração humano. A historieta da amizade entre os primos padre Teófilo e Eulália, amizade que evolui para um romance e termina com a fuga do padre que não quer prevaricar, serve de motivo para reflexão sobre o dever moral de guardar o coração e vigiar sobre os sentimentos. Esse conto de Machado de Assis, longe de ser uma chacota, aponta para o problema da virtude da amizade e da vocação sacerdotal. Teófilo fora encaminhado para o seminário pela família, que tinha por tradição sempre contar com um padre. O conto dá a entender que na infância podia ter havido alguma amizade entre os primos. Depois de muitos anos ambos se revêem numa igreja e renasce o sentimento. Primeiro, a amizade, depois, o amor e, finalmente, para não haver pecado, a fuga do padre Teófilo. Fica, portanto, uma lição de cumprimento do dever, além da advertência sobre a necessidade de controlar os afetos por meio da prudência e outros remédios da graça.
Sem amizade, sem amor, ninguém vive. Estes sentimentos devem ser vividos conforme a lei de Deus e conforme o estado de vida de cada um: jovem, adulto, solteiro, viúvo, casado, consagrado à vida religiosa pelo celibato sacerdotal. A amizade, é claro, supõe afinidade, comunhão de idéias e sentimentos, reciprocidade, lealdade, mas exige, para o seu próprio bem e preservação, que toda familiaridade seja evitada. Manuscrito de um sacristão ajuda a refletir sobre essas coisas e outros problemas das relações humanas no mundo de hoje, que ameaça a saúde dos afetos do coração do homem por meio do abuso das redes sociais da internet.
Para remate, diga-se que, se na obra de Machado de Assis há alguma coisa em desarmonia com os ensinamentos da Igreja, nela o que há de bom, belo e verdadeiro (e há muito) é, certamente, um reflexo do Verbo Eterno de que o grande escritor se nutriu em suas leituras bíblicas apesar de não ter fé.”

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