“Sessenta anos depois de sua morte – lembrados em 15 de abril –, Robert Musil continua ganhando em importância; ano a ano, ensaio a ensaio.
Quando o segundo milênio dava seus últimos suspiros a Alemanha fez o que todo mundo fez... Atendendo à necessidade dos registros – que é interessante e polêmica – e explorando o fim do milênio na justificativa de preservar a memória – e aproveitando para armar debates e aquecer as vendas –, a Alemanha também listou suas obras-primas... O resultado? O melhor romance alemão do século XX – na opinião de 33 autores, 33 críticos e 33 germanistas dos mais conhecidos e importantes do país; que votaram, cada um, em três títulos – é O homem sem qualidades (Der Mann ohne Eigenschaften) de Robert Musil.
Setenta e seis romances receberam voto. E o romance de Musil apareceu em primeiro lugar, com uma vantagem confortável sobre o segundo colocado: O processo, de Kafka. Pausa para a curiosidade... O terceiro da lista – e não vou promover contendas, apenas mencionar resultados – foi A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Desculpem, mas não posso me furtar ao questionamento; o Doutor Fausto é muito mais romance, embora tenha aparecido apenas em décimo lugar, depois de Os Budenbrook, inclusive, sétimo colocado, também de Thomas Mann... Em quarto lugar ficou Berlim Alexanderplatz, de Alfred Döblin; o quinto colocado foi O tambor, de Günter Grass; o sexto, Aniversários (Jahrestage), de Uwe Johnson – 2000 páginas inéditas no Brasil.
Mas voltemos a Musil, primeiro na lista e foco desse texto...
A vida
Robert Edler von MUSIL (1880-1942) nasceu em Klagenfurt, na Áustria, e morreu pobre – quase esquecido e dependendo da ajuda de amigos – em Genebra, na Suíça, em plena II Guerra Mundial.
Aos dez anos Musil entrou para a Escola Militar em Eisenstadt, destinado à carreira de oficial. Estudou durante mais de cinco anos em instituições do exército até chegar à Academia Militar de Viena, em 1897. Um ano depois, Musil decidiu largar a carreira de oficial e passou a estudar Engenharia em Brünn, obtendo o diploma da graduação em 1901. Depois de uma temporada em Stuttgart, cursou Filosofia e Psicologia experimental na Universidade de Berlim, doutorando-se em 1908 com tese sobre Ernst Mach (1838-1916), físico e filósofo austríaco. Os estudos de Mach sobre o fenômeno da descontinuidade e da dissociação, assim como suas teses a respeito do “eu condenado” (unrettbares Ich), seriam decisivos na formação de vários escritores vienenses, entre eles Arthur Schnitzler e o próprio Musil.
De 1914 a 1918, Musil participou ativamente da I Guerra Mundial na condição de oficial de Infantaria do exército austríaco. Ao final dos combates chegou a capitão, condecorado com a principal ordem de guerra do moribundo império (Ritterkreuz des Franz-Josephs-Ordens). Só a partir de 1923, e já morando em Berlim, é que Musil passaria a viver exclusivamente de sua condição de escritor.
A ascensão do nazismo, em 1933, obrigou o autor a se mudar para Viena e, mais tarde – depois de se sentir numa ratoeira, conforme ele mesmo chegou a escrever em seu diário –, para Genebra, onde veio a falecer em 15 de abril de 1942.
A arte
A publicação da primeira obra de Musil – O jovem Törless (Die Verwirrungen des Zöglings Törless, 1906) – só foi levada a cabo através do incentivo do crítico berlinense Alfred Kerr. O sucesso posterior, e também a aprovação da crítica, foi imediato. No romance, Musil detém-se – com admirável agudeza psicológica – na consciência de um estudante de internato, às voltas com situações que antecipam – de maneira genial e visionária – o sadismo e a opressão nazistas. O filme baseado no livro, realizado sessenta anos depois da publicação da obra, foi um grande êxito na Alemanha envolvida com a expurgação de um passado tenebroso.
As reuniões, de 1911 – duas novelas – e Três mulheres, de 1924 – três contos esticados –, foram as outras duas obras ficcionais publicadas por Musil antes de O homem sem qualidades. O drama Os entusiastas (Die Schwärmer, 1921) e a comédia Vicente ou A amiga dos homens importantes, de 1923, provaram que a pena de Musil também era afiada no teatro. O espólio literário do autor ainda revelaria várias obras de qualidade, entre elas o conto O melro (Die Amsel).
O homem sem qualidades é a síntese final, tanto da obra quanto da vida de Robert Musil. Todas as obras anteriores do autor são uma espécie de preparação ao Homem sem qualidades, toda sua vida parece ter sido direcionada para a escritura final do romance. Contando apenas o tempo ativo, Musil trabalhou em sua obra-prima durante cerca de 15 anos, de 1927 até o dia da morte. A primeira parte foi publicada em 1930. Logo depois de ter sido lançada a segunda parte – em 1933 –, a obra foi proibida tanto na Alemanha quanto na Áustria. A terceira parte, ainda organizada pelo autor, seria publicada em 1943, na Suíça. A edição de 1952, traria o acréscimo de um quarto volume, organizado por Adolf Frisé e baseado nas notas deixadas pelo autor.
A ação de O homem sem qualidades transcorre na Áustria imperial, dissimulada sob o nome de Kakânia. O romance constitui um vigoroso painel da existência burguesa no início do século XX e antecipa, de certa forma, as crises que a Europa viveria apenas na segunda metade daquele mesmo século. A obra é – em suma – o retrato ficcional apurado de um mundo em decadência.
Elaborado com fortes doses de sátira e humor, O homem sem qualidades é uma bola de neve de ações paralelas, que rola pela montanha do século abaixo, abarcando tempo e espaço, para ao fim engendrar um romance inteiriço, ainda que multiabrangente, pluritemático e panorâmico. Ulrich – o homem sem qualidades – faz três grandes tentativas de se tornar um homem importante. A primeira delas é na condição de oficial, a segunda no papel de engenheiro (vide a carreira do próprio Musil) e a terceira como matemático, exatamente as três profissões dominantes – e mais características – do século XX. Os três ofícios são essencialmente masculinos e revelam o semblante de uma época regida pelo militarismo, pela técnica e pelo cálculo que, juntos, acabaram desmascarando o imenso potencial autodestrutivo da humanidade. O relato acerca da busca “desencantada” de Ulrich lembra a velha busca – ainda sagrada – do Santo Graal.
A compreensão da realidade característica da obra e do pensamento de Musil é rematadamente satírica. A índole “ensaística” do autor arranca máscaras e sua ficção trabalha na confluência dos gêneros. Musil é um escritor “contemplativo”, de “postura clássica”, situado à janela do mundo e atento a seus movimentos. (Tanto que, em várias situações de suas obras, seus personagens aparecem à janela). Ao utilizar vários elementos do ensaio, e inclusive ensaios inteiros no corpo da ficção, além de fazer uso livre do discurso falsamente científico – ainda carregado de poesia – na compleição do romance, Musil dá vida à hibridez de sua narrativa. A frialdade da linguagem, a formalidade da postura do narrador são apenas superficiais. Se à primeira vista o olhar do narrador é marcado pelo intelectualismo – frio e impessoal –, logo se descobre que isso é apenas um meio apolíneo contra o perigo dionisíaco do mundo, e que a indiferença gelada da superfície apenas mascara a paixão ardente do interior.
Adotando uma atitude fundamentalmente irônica diante da sociedade, e decidido a lutar contra a estultice do século – contra “a imensa raça das cabeças medíocres e estúpidas” –, Musil muitas vezes foi compreendido como utopista, ou até místico, por alguns críticos, decididos a dinamitar o vigor de sua obra. O autor que foi tão corrosivo ao representar o mundo em sua realidade distorcida e deformada na figura mítica de uma Kakânia caquética, é transformado assim num sujeito extravagante e pouco afeito à realidade. Um leão sem garras nem dentes...
Já em 1972, Helmut Arntzen – crítico da obra de Musil – dizia que os críticos pareciam fazer gosto em apresentar o autor na condição de animal exótico, místico e de movimentos graciosos. Dessa forma, o escritor combativo e heróico – conforme Musil se compreendia – era transfigurado num metafísico dócil, no homme de lettres que ele sempre renegou, num autor distanciado da realidade, provido de alguns requintes matemáticos na linguagem e de outros tantos talentos psicológicos na análise da alma humana.
A postura “contemplativa” de Musil foi entendida como passiva, a “utopia do ensaísmo” pregada por Ulrich – seu personagem – como uma visão utópica do mundo. Na verdade, Musil fez apenas lutar pela recuperação da atividade de mensurar melhor, quantitativa e qualitativamente, os sentimentos e o “volume espiritual” das relações humanas; sem a ingenuidade do romantismo, mas sem a secura do realismo bruto. De quebra, deu nova fisionomia ao sujeito, nova potência ao “eu”, tornando-o estética e radicalmente consciente, ainda que fazendo-o perambular no âmbito daquilo que um outro crítico – Wolfgang Lange – chamou de “loucura calculada” ou “suspensão calculada da razão”.
A intuição poética de Musil, enriquecida por seu aguçado espírito científico, proporcionou ao autor a capacidade de traçar um vasto panorama ficcional de sua terra e da Europa do século XX. Postado à janela do mundo, Musil examina, em última instância, o valor da inteligência objetiva do homem diante das casualidades mundanas.”
(Marcelo Backes, Um Autor na Janela – A Vida e a Obra de Robert Musil num Instantâneo Panorâmico)
http://www.marcelobackes.com
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