sexta-feira, 29 de abril de 2016

Efeitos da negação do pecado original na política


“Donoso Cortés nos ensinava que não há nenhum erro contemporâneo que não implique um erro teológico. Comprovamo-lo nestes dias em que a mácula da corrupção se assenhoreia de nossa vida política; e em que se impõem leis de transparência, em um esforço espalhafatoso por combatê-la, ou aparecem messias populistas que se proclamam látegos da corrupção e se pretendem incorruptíveis. Em todo este alarde sobre a transparência, como no truque messiânico, só encontramos puritanismo (ou seja, o vício disfarçado com as plumas de pavão real da virtude). E por trás de todo puritanismo não há outra coisa que negação do pecado original, que curiosamente é a única verdade teológica que pode ser aceita sem necessidade de ter fé, pois salta aos olhos que a natureza humana está manchada.
No entanto, sendo o pecado original o único dogma teológico que admite comprovação empírica, é o que mais recusa e aversão provoca entre as pessoas. Essa recusa de uma verdade tão evidente só se explica pela soberba humana, que deu para crer contra toda evidência na estupidez rousseauniana de que o homem é bom por natureza e pode, sem auxílio divino, alcançar a perfeição. Tão perturbador absurdo leva, segundo Donoso Cortés, primeiramente à afirmação da soberania da inteligência e depois à afirmação da soberania da vontade, para terminar na afirmação da soberania das paixões, que arrasta os homens à perdição. Essas três afirmações comprovam sua demência no assunto da corrupção política.
Ao afirmar a soberania da inteligência, crê-se ridiculamente que nossa razão é luminosa e infalível; e a razão ensoberbada engendra delírios de grandeza que nos fazem pensar que publicando as rendas ou os patrimônios dos políticos acabar-se-á com a corrupção. Essa primeira etapa de soberba é em seguida superada pelos messias do populismo, que à soberania da inteligência acrescem a soberania da vontade; e, considerando que sua vontade é reta, prometem acabar com toda forma de corrupção. Mas quem crê que sua razão é luminosa e sua vontade reta acaba crendo também, mais cedo que tarde, que suas paixões são excelentíssimas, e que nada pode permanecer subtraído a sua jurisdição soberana (nem concessão de licenças nem requalificação de terrenos nem conselhos de administração de contas de poupança nem patronatos de fundações nem sequer os “tomates” do pequeno Nicolau); e então sua ambição de poder, sua mesma paixão insaciável (a grama sempre é mais verde do outro lado da cerca!) empurrá-lo-á, inevitavelmente, a corromper-se. E fá-lo-á, como é óbvio, ainda que publique suas rendas, pois já se sabe que quem faz a lei, faz também as brechas; e, logicamente, continuará perseguindo os corruptos, pois ninguém emprega tanto furor em castigar os pecados do próximo como o hipócrita que esconde os seus.
Uma política que reconhecesse a existência do pecado original, em lugar de adornar-se com as plumas de pavão real da virtude, começaria por limitar sua jurisdição aos puros trabalhos de representação política, em aceitação ao mandato que recebe de seus representados. E, uma vez limitada sua jurisdição à pura representação política, suplicaria o auxílio divino. Continuaria, desde logo, havendo corruptos, mas seriam muito menos dos que padecemos ali onde a inteligência que se crê luminosa impõe leis de transparência espalhafatosas e a vontade que se crê reta se pretende incorruptível; pois é ali onde inteligência e vontade se proclamam soberanas onde uma e outra acabam sucumbindo mais facilmente ao império das paixões.”
(Juan Manuel de Prada, Pecado Original)