terça-feira, 31 de março de 2015

O solitário Andreas

“Sempre que se comete um crime, preferivelmente monstruoso, os noticiários televisivos incluem uma reportagem especialmente grotesca na qual vizinhos e conterrâneos do criminoso tratam de esboçar seu retrato. Naturalmente, são retratos atoleimados, cheios de vacuidades e necedades orgulhosíssimas de haver-se conhecido. “Era um rapaz muito calado”, dizem; ou ainda: “Falava de preferência pouco, mas sempre me cedia o lugar no elevador”; ou ainda: “Todas as manhãs cruzava com ele fazendo footing, e nunca deixava de saudar-me”; ou ainda, com uma pitada de patetismo: “Não consigo entender que tenha podido matar cento e cinqüenta pessoas! Se até se negava a fumigar o edifício, por amor aos cupins!”. Naturalmente, uma vez que se soube que o louco Andreas Lubitz havia assassinado com premeditação os passageiros do avião que pilotava, os repórteres viajaram até sua aldeia, para entupir os noticiários com um enxame de vacuidades e necedades de seus vizinhos e conterrâneos.
O que, ao final, resulta diáfano é que Lubitz era um solitário que ninguém conhecia deveras; só que sua vida solitária nem sequer chamava a atenção de seus vizinhos e conterrâneos, pela simples razão de que eles levam uma vida tão solitária quanto ele. E aqui chegamos ao cerne que nos importa. Nada foi criado desde os átomos até os anjos para sobreviver em solidão; e das três tendências naturais do ser humano, a conservação própria, a propagação da espécie e a vida comunitária, no mínimo as duas últimas estão ordenadas a evitá-la. Querer a solidão pela solidão em si mesma (quero dizer, sem anelar um fim mais alto) talvez seja o modo mais aberrante de desobedecer nossa vocação natural; e, talvez para justificar esta desobediência, costuma-se imbuir na pobre gente a crença maluca de que se pode ser eminente contemplativo, místico sutil, filósofo genial e artista arrebatado tão somente com buscar a solidão, que deste modo se apresenta como uma grande medicina espiritual. Mas o certo é que, salvo para uns poucos privilegiados (e mesmo para estes), a solidão é um terrível veneno que cedo ou tarde gangrena as almas, engendrando acídia, abulia, tédio, desespero e angústia, além de transtornos e condutas aberrantes, por ensimesmamento e falta de afetos humanos. É que a vida comunitária, ademais de velar pela saúde física e espiritual do homem, atua como freio moral insubstituível e sentinela daqueles demônios que buscam se aninhar na alma do solitário, para primeiro destruí-la e depois imbuir-lhe idéias criminosas que atentem contra a comunidade.
Refletindo sobre o Quixote, Thomas Mann contrapõe a liberdade cervantina com a liberdade do homem contemporâneo, assinalando a aziaga mania que nosso atual conceito de liberdade tem de “começar pelo eu, pelo espírito, pela solidão”. E enfatiza Mann: “Este processo deve se considerar mórbido, pois termina fazendo do homem um ser enfermo, solitário, melancólico, isolado, incompreendido”. Este afã de desvincular e isolar os homens, transformando-os em mônadas auto-suficientes, tem sido sem dúvida uma das maiores “conquistas” do mundo moderno; pois, desvinculando e isolando os homens, conseguiu adoecê-los, debilitá-los e fazê-los mais manipuláveis. E, inevitavelmente, em um mundo de homens solitários, melancólicos, isolados e incompreendidos é inevitável que surjam monstros como este Lubitz; como é inevitável que seus vizinhos fossem por completo incapazes de detectar sua enfermidade e agora também o sejam de fazer outro retrato seu que não seja um enxame de necedades e vacuidades. É a maldição que caiu sobre um mundo de solitários.”
(Juan Manuel de Prada, El Solitario Andreas)