segunda-feira, 28 de abril de 2014

Entrevista com Philippe Pichot-Bravard (I)

Entrevista com Philippe Pichot-Bravard, historiador político e professor do Instituto católico de estudos superiores, concedida ao Corsaire, administrador do Rouge et Noir, com tradução do Annales Historiae.
Corsaire: Senhor, agradecemos-lhe calorosamente por ter aceitado nosso convite. Antes de tudo, o senhor pode se apresentar rapidamente aos nossos leitores que não o conhecem ainda?
Prof. Pichot-Bravard: Com trinta e nove anos, sou ao mesmo tempo universitário e escritor. Ensino a história das instituições e a história das idéias políticas. Ensino também a história da Igreja, especialmente no seminário de Gricigliano (N.d.t.: seminário do Instituto do Cristo-Rei Soberano Sacerdote). Consagrei minha tese de direito à gênese do Estado de Direito na França; intitulada "Conservar a ordem constitucional (XVIº-XIXº século)", esta tese foi publicada nas edições LGDJ em julho de 2011. Também consagrei um estudo aos católicos franceses da metade do século XIX, que foi publicado em 2008 pela Artège ("O Papa ou o imperador; os católicos e Napoleão III").
Ao longo destes últimos meses, redigi, no Homme Nouveau, uma série de onze artigos sobre a história da noção de direito natural. Devo publicar na volta às aulas, pela Via Romana, uma "História da Revolução Francesa".
Enfim, dirijo já há vários anos um jornal livre na Luz da Esperança, o programa de domingo da Rádio Courtoisie.
Corsaire: A lei de desnaturalização do casamento lançou nas ruas mais de um milhão de opositores em dois momentos, e o movimento de contestação não cessa de fazer ouvir sua voz, ao passo que a lei foi promulgada e que pares de mesmo sexo se casaram. Assistimos a um deslocamento entre o direito positivo e o direito natural, entre legalidade e legitimidade, entre Creonte e Antígona. O senhor é historiador do direito e especialista em ciências políticas: tal deslocamento é freqüente na História jurídica de nosso país? Este é um defeito inevitável e próprio à República e à filosofia das Luzes?
Prof. Pichot-Bravard: Desde a Antiguidade, duas concepções de direito se enfrentam. Uns definem o direito como a expressão da vontade daqueles que exercem a soberania. Outros consideram que o direito é "aquilo que é justo", que ele é uma arte, a arte de atribuir a cada um a parte que lhe convém (Ulpiano), a arte do que é "bom e equitativo" (Celso). Estes últimos estimam que as ordens daqueles que exercem o poder, que as leis só são legítimas com a condição de serem justas, com a condição de respeitaram princípios de direito que escapam à vontade dos homens e que são o reflexo de uma ordem natural objetiva. Aristóteles distinguiu assim a justiça natural e a justiça positiva. A filosofia estoicista afirmou a existência de uma lei natural. Inspirado ao mesmo tempo pela filosofia aristotélica e pela filosofia estoicista, Cícero deu desta lei natural uma definição precisa que alimentou ulteriormente a reflexão dos juristas romanos ou romanistas. Por seu lado, Santo Agostinho definiu a lei como o ato permanente de fazer reinar a justiça, estimando que uma lei injusta não é uma lei e que ninguém está obrigado a obedecê-la, convicção que alimentou profundamente as mentalidades medievais, dominando os espíritos até o século XVII ao menos.
Na Antiga França existia um verdadeiro "Estado de Justiça" que permitia, para além da inevitável imperfeição das instituições humanas, a submissão do Soberano ao Direito.
Este "Estado de Justiça" era alimentado:
1- Pela convicção de que a primeira missão do rei, aquela que fundamenta sua legitimidade, é fazer reinar a Justiça em seu reino, o que implica, sobretudo, que ele se submeta às leis fundamentais e ao direito natural;
2 - Pela reflexão dos canonistas: estes definiram para a Igreja conceitos jurídicos que os legistas do reino da França retomaram em seguida e aplicaram à Coisa pública: por exemplo, a idéia de que existe um estatuto geral da Igreja, corpus de regras que se impõe ao papa, idéia retomada por João de Terrevermeille quando ele afirmou, em 1419, a existência de um Estatuto do reino constituído de regras superiores à vontade do Rei e o impedindo, concretamente, de dispor da Coroa e de alienar o domínio da Coroa;
3 - Por certas máximas de direito romano, sobretudo a constituição Digna Vox, que data de 429;
4 - Pela retórica das Cortes soberanas, em particular a do Parlamento de Paris, que recebeu do rei, desde a primeira metade do século XIV, a missão de verificar, quando do registro das cartas do rei, se estas não compreendiam disposições contrárias à justiça e à reta razão, e, que tinha, neste caso, o dever de atrair a atenção do monarca lhe dirigindo "humilíssimas admoestações". Servindo-se deste dever de conselho, os Parlamentos se afirmaram, a partir do fim do século XV, como o "Senado do reino", verificando se as leis do rei eram conformes às leis do reino. Eis a origem longínqua de nosso controle constitucional das leis.
A consistência deste "Estado de Justiça", e a preocupação dos magistrados em fazer reinar a equidade, assegurava o respeito pelo direito natural. A este respeito, Luís XV, quando da reforma do chanceler Maupeou, afirma que ele está "na afortunada impotência" de atentar contra a vida, a honra e a propriedade de seus súditos.
O direito da família, casamento e filiação, escapava quase completamente ao Estado, dependente do direito canônico. Contudo, a partir da metade do século XVI, com o poder do Estado afundando, o governo monárquico, sob Henrique II, Henrique III e Luís XIII, manifestou a vontade de intervir neste domínio, a fim de fazer do consentimento do pai de família uma condição de validade do casamento, o que a Igreja não exige. Recusando ceder às exigências francesas, o concílio de Trento recordou a este propósito que o casamento se fundamentava sobre o livre consentimento dos esposos. Os magistrados do Parlamento contornaram então a oposição da Igreja fazendo do consentimento do pai de família a condição de validade do contrato de casamento que deveria preceder o sacramento.
Todavia, a superioridade do direito natural, recordada pela doutrina unânime, é respeitada até 1789. A declaração dos direitos do homem e do cidadão marca realmente uma ruptura. Texto de compromisso, a declaração está marcada por uma tensão entre a influência de Locke (artigo dois) e a de Rousseau (artigo seis). No artigo três, a declaração dos direitos proclama o princípio da soberania nacional.
Esta afirmação marcaria uma inversão completa da ordem do mundo: o poder não vinha mais do alto, mas de baixo. Desde então, o soberano estava livre do respeito de uma ordem jurídica superior, exterior à sua vontade. A definição da lei se encontrou radicalmente transtornada. Segundo o artigo seis, "a lei é a expressão da vontade geral". A lei não se definia mais em função de sua finalidade, mas em função de sua origem. A lei não é mais o ato que participa no reino da justiça, mas o ato que exprime a vontade do soberano. Havia aí uma tensão evidente entre a afirmação da existência de "direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem" e o legicentrismo contido pelo artigo seis. A ausência de procedimento jurisdicional de controle da constituição das leis impediu de verificar se as vontades do legislador eram efetivamente respeitosas destes "direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem".
Esta ausência era voluntária, como demonstra o debate de 8 de agosto de 1791. Os deputados não queriam que um órgão conservador da ordem constitucional viesse fazer obstáculo à sua vontade soberana.
Corsaire: Como podemos conciliar hoje o respeito pelas leis francesas e a fidelidade aos nossos valores católicos e à nossa Fé? Estamos fadados à dissidência?
Prof. Pichot-Bravard: Esta questão é essencial. Ela foi levantada desde os primórdios do cristianismo. De um lado, todo poder vindo de Deus, como ensina São Paulo, o cristão deve à autoridade legítima uma obediência de princípio. Do outro, quando o detentor do poder dá uma ordem contrária aos mandamentos de Deus, o cristão tem o dever de obedecer "antes a Deus que aos homens", segundo a expressão utilizada pelo próprio São Pedro. Deus está, com efeito, acima do príncipe. "Não terias nenhum poder sobre mim se ele não te tivesse sido dado do alto", explica Cristo a Pôncio Pilatos.
O cristão está no Mundo, mas ele não pertence ao Mundo. Ele é, para retomar a famosa expressão de Santo Agostinho, cidadão da cidade de Deus. Vivendo no Mundo, ele deve testemunhar a Verdade de Cristo e trabalhar para estabelecer o reinado social de Cristo, o qual consiste principalmente no respeito ao direito natural. Não pertencendo ao Mundo, ele se encontra necessariamente, perante o Estado e suas exigências, em uma situação de dissidência potencial, que se torna, pois, real, quando esse Estado não somente não é um Estado cristão, mas manifesta uma hostilidade mais ou menos aberta relativa aos princípios do cristianismo, o que é o caso atualmente.
Guiado pela vontade de proceder a uma regeneração ideológica da sociedade e do homem, como recorda Vincent Peillon, o Estado pós-revolucionário tem a pretensão de se apoderar de todos os aspectos da vida humana, aí compreendidos os mais íntimos. Com a lei Taubira, e a ideologia do gênero que a alimenta, o Estado pretende mudar a definição das coisas. Ele pretende impor a idéia de que as coisas não são o que elas são, mas o que eles dizem que elas são. Isso é extremante grave. Em face de tal pretensão, que Pio X, visando então o fascismo italiano, tinha condenado empregando o termo de "estatolatria", é do dever dos católicos, como exortou o bem-aventurado João Paulo II e o bem-amado papa Bento XVI, colocar tudo em obra para defender "a cultura da vida" (João Paulo II). É de seu dever nunca transigir com "os princípios não negociáveis", a saber, o respeito pela vida, a família fundamentada sobre o casamento tradicional e a liberdade dos pais de educar seus filhos (Bento XVI). Isso implica, especialmente, continuar a se manifestar contra as leis promulgadas a fim de denunciar com isso a injustiça e preparar sua revogação, como nos convidava no mês de junho passado o cardeal Burke, prefeito do supremo tribunal da Assinatura apostólica, enquanto ele saía de uma entrevista com o papa Francisco I.
Corsaire: Voto a mão levantada na Assembléia, tramitação legislativa de uma rapidez desconcertante, desprezo pelas petições dirigidas ao CESE, tirania midiática, ataque com gás contra famílias e detenções massivas de manifestantes pacíficos: a conta é salgada e o país real brame. "A República governa mal, mas ela se defende bem". O regime republicano está no fim?
Prof. Pichot-Bravard: A Vª República está efetivamente muito enfraquecida. Várias razões podem explicar isso.
A função presidencial, que é seu pilar principal, perdeu muito de seu prestígio desde metade dos anos 1990. Os três últimos presidentes se caracterizaram por um desvio crescente entre as exigências da função e o comportamento daquele que a assume.”