sábado, 22 de março de 2014

A Tradição católica

“Quando falamos de tradição católica não nos estamos referindo somente a uma tradição intelectual, nem sequer a uma completa visão do mundo, mas a uma civilização. (…) Ou seja, a tradição católica implicava costumes, instituições e idéias. Igualmente, as transformações ideológicas revolucionárias conduziram primeiro à fratura das instituições, que por sua vez levou generalizadamente à dos costumes. E a resistência à revolução progressivamente foi ficando no âmbito dos costumes, que, ao não contarem com o apoio institucional, foram também se quebrando, resistindo somente o reduto das idéias. Idéias progressivamente mais depuradas quanto mais se isolavam no cenáculo dos “militantes” ou dos “tradicionalistas conscientes”. Esse é o processo de transformação (desnaturalização) de um tradicionalismo pleno em algo semelhante a uma société de pensée ou, no melhor dos casos, em um gueto de famílias em meio às ruínas.
Contudo, está claro que uma tal situação vem marcada pelo equilíbrio instável. Pois o restante das famílias vai resistindo com dificuldade à pressão exterior, enquanto o agregado ideológico, isolado, tende a fragmentar-se, perdendo o sinal de unidade de toda tradição, de toda civilização. Hoje é muito comum encontrar defesas da moral sexual e familiar mais tradicional pelos mesmos grupos que contribuem para manter uma política que progressivamente torna impossível a manutenção dessa moral. Outros defendem a tradição litúrgica despreocupados com a tradição política. Alguns por fim reivindicam pedaços da cosmovisão tradicional de modo “ideológico”, às vezes “conservador”, outras “revolucionário”. A conseqüência é desoladora para os que querem continuar recebendo a “boa notícia” no seio da civilização que ela gerou para nós. Porque é impossível inculturar o cristianismo na civilização moderna e suas versões atuais, tanto a “forte”, tecnocrática e prometéica (que caberia chamar de hipermoderna), como a “fraca”, desconstrutiva e niilista (que podemos chamar propriamente de pós-moderna). (…)
Nessa situação, a conjuntura impele muitos a salvarem o que se puder de um velho navio naufragado. Enquanto outros se esforçam por lembrar que os despojos à deriva pertenceram a um navio cujas dimensões, características etc são possíveis de conhecer. E tudo se deve fazer. Mas o que não se pode esquecer é que, sem o acolhimento de uma civilização coerente, todos os restos que se salvam, por um lado, estão mutilados, desnaturalizados, e - por outro - dificilmente podem subsistir muito tempo em sua separação. Assim, a solução não pode ser encontrada senão na incessante restauração-instauração (como não recordar o memorável texto de São Pio X?) da civilização cristã, que ademais não poderá ser alheia – exigências da pietas – à Cristandade.”
(Miguel Ayuso Torres, La Constitución Cristiana de los Estados)