“Apesar de alguns recentes discursos aparentemente tranqüilizadores, a Sociedade de São Pio X continua a passar pela crise interna mais séria, em sua complexidade e em sua gravidade, que ela já conheceu.
Esta crise é particularmente séria porque se originou de graves falhas por parte do Bispo Fellay e de seus dois assistentes, tanto no campo doutrinal como no domínio da prudência. Essa é a principal causa da preocupação dos membros da Sociedade.
Alguns são tentados a crer que, como não houve até agora nenhum acordo prático com Roma, o perigo acabou... Mas não concluamos tão depressa!
Apesar das aparências, os superiores da Sociedade não se retrataram de sua nova idéia a respeito do papel da Tradição na Igreja e em particular do relacionamento com a igreja conciliar. Além disso, eles estão longe de assumir qualquer responsabilidade pessoal pela crise interna causada por suas ações imprudentes.
Vale a pena observar atentamente dois aspectos dessa crise interna para não subestimar os efeitos negativos que continuam se produzindo na Sociedade e nas fileiras da Tradição.
O primeiro aspecto se refere ao papel principal da Sociedade na resistência à igreja conciliar e na preservação da Tradição Católica. Se a Sociedade fracassar, o último bastião da Tradição cairá.
O segundo aspecto se refere à grave mudança feita por Menzingen quanto ao principal papel da Sociedade na vanguarda da resposta a essa crise da Igreja: esse novo papel está claramente em oposição ao que foi dado pelo Arcebispo Lefebvre.
Contudo, essa mudança é muito sutil e pode passar despercebida por alguns, porque enquanto afirmam que não querem desistir do combate doutrinal, esses superiores fazem do reconhecimento canônico a prioridade essencial da Sociedade. Alguns aspectos doutrinais ainda estão em sua agenda, mas foram colocados em segundo plano. Assim, tudo deve ser “redefinido” de acordo com essa nova prioridade.
Essa mudança revela neles o mesmo legalismo que afligiu todas as comunidades tradicionais que fizeram acordo com Roma desde 1988. Tal como elas, eles se sentem “culpados” porque foram “excluídos” pela igreja oficial e sonham em se “reconciliar” a todo custo.
Conhecemos a “hermenêutica da continuidade” de Bento XVI, pela qual ele concebeu uma nova interpretação da tradição que integraria a igreja conciliar na Tradição da Igreja.
As autoridades de Menzingen, para justificar sua mudança de posição, também conceberam uma nova “hermenêutica” ou “reinterpretação” do principal papel da Sociedade, pelo qual eles querem integrar sua tradição à igreja conciliar.
Essa “hermenêutica” exige que as autoridades da SSPX realizem um “repensamento” distorcido do que o Arcebispo Lefebvre entendia como sendo a prioridade da Sociedade; por exemplo, eles apenas citam palavras que ele disse antes da ruptura com Roma em 1988, ou suas palavras mais conciliadoras a respeito das autoridades oficiais da Igreja.
Assim, o que antes era vigorosamente rejeitado na igreja conciliar é agora “repensado” com vista a aceitar, se não totalmente, ao menos “parcialmente” ou “sob certas condições”, idéias conciliares.
Deve-se notar que as autoridades da Sociedade traem essa nova atitude mais pelo que elas não dizem em relação às autoridades conciliares, por omissão, do que pelo discurso direto.
Com exceção de algumas frases mais firmes aqui e ali (para tranqüilizar os “mais duros” entre nós), podemos ver uma atitude “positiva” de longa duração voltada para os ensinamentos e as ações das autoridades conciliares, em particular de Bento XVI.
Um recente exemplo dessa “suavização” é certamente o boicote por Menzingen de alguns livros considerados “muito duros”, livros escritos pelo Bispo Tissier e pelo Pe. Calderón sobre a igreja conciliar. Outro exemplo seria o recente Simpósio realizado pela The Angelus, no Distrito dos Estados Unidos, que escolheu como tema deste ano “O Papado” quando estamos comemorando o 50° aniversário da abertura desastrosa do Vaticano II!
Alguns podem então pensar, qual o propósito e com que direito essa nova direção na Sociedade deve ser denunciada?
Conheço a Sociedade e seu propósito, tendo sido um sacerdote da SSPX por 28 anos. Amo profundamente a Sociedade na qual assumi um compromisso de vida. Conheci pessoalmente o Fundador, que me ordenou, cujos escritos e palavras continuo sempre a estudar. É por causa de meu amor pela Sociedade e por piedade filial ao Arcebispo Lefebvre que penso ser meu dever falar publicamente.
Parece claro para mim que por vários anos tem havido uma mudança fundamental, principalmente entre o Bispo Fellay e seus dois assistentes, com relação ao principal papel da Sociedade de São Pio X nestes tempos de crise na Igreja: preservar inteiramente a Tradição Católica, lutando contra os inimigos da Igreja, tanto internos quanto externos.
O principal objetivo da Sociedade de São Pio X nesta crise da Igreja não pode ser mudado, pois esse objetivo foi claramente estabelecido por seu Fundador em muitas de suas obras, sermões, aulas e ações, especialmente depois de 1988. Conseqüentemente, mudar esse propósito em pontos importantes seria afastar-se perigosamente de seu Fundador, e assim expor a Sociedade a cometer suicídio, caindo nas mãos da Roma modernista, que a Sociedade sempre combateu desde sua fundação.
A experiência nos mostra que aqueles que se desviaram da linha traçada pelo Arcebispo Lefebvre acabaram traindo o combate pela Tradição.
Essa mudança na Sociedade não pode ser justificada, porque em anos recentes não vimos na igreja conciliar nenhuma mudança doutrinal ou prática importante no sentido de um retorno real à Tradição pela condenação dos erros e reformas conciliares.
Gostaria de fundamentar o que acabei de dizer mostrando como as afirmações e ações da atual liderança são completamente contrárias ao que o Arcebispo Lefebvre expressamente declarou. E mesmo quando o Arcebispo Lefebvre não falou expressamente sobre algumas delas, essas mudanças estão em grave oposição ao bem comum da Sociedade e ao básico senso comum.
1. Uma falsa idéia sobre a visibilidade da Igreja
Primeiramente, aparece com clareza que o ponto de partida de seu desvio encontra-se em uma idéia errada sobre a visibilidade da Igreja. Suas declarações públicas descrevem a Sociedade como “carente” de algo fundamental em relação à “visibilidade” da Igreja. Eles muitas vezes falam da Sociedade como estando em uma situação “irregular”, “anormal” e “ilegal”, embora tudo isso, como sabemos, é apenas aparente.
O Pe. Pfluger tratou expressamente desse erro em uma entrevista recente: “Quanto a nós, também sofremos uma ausência, por causa de nossa irregularidade canônica. Não é apenas o estado da Igreja pós-conciliar que é imperfeito, o nosso também é.” E depois: “A obrigação de trabalhar ativamente para superar a crise não pode ser disputada. E esse trabalho começa conosco, querendo superar nosso estado canônico anormal.” (Kirchliche Umschau, 17.10.2012)
As autoridades oficiais da Igreja há anos vêm estigmatizando a Sociedade com esses “defeitos”, por meio de falsas acusações e condenações injustas, quando sabemos, e temos mostrado claramente em nossos escritos e nossas ações, que a Sociedade nunca deixou o perímetro visível da Igreja Católica ou cometeu qualquer crime canônico. Portanto, não precisamos superar nenhuma “falha” canônica ou eclesial pedindo para sermos reconhecidos hoje pela igreja conciliar.
Nesse ponto, as autoridades estão repetindo as mesmas afirmações falsas de Dom Gérard e dos ralliés de 1988, a quem o Arcebispo Lefebvre (Conferência de 9.9.1988; Fideliter n° 66) e o Pe. Schmidberger (Fideliter n° 65) responderam pertinentemente, pouco depois da consagração dos bispos.
O Bispo Fellay também afirmou recentemente o mesmo erro de entendimento quanto à natureza da verdadeira Igreja: “O fato de irmos a Roma não significa que concordemos com eles. Mas é a Igreja. E essa é a verdadeira Igreja. Rejeitando o que não é bom, não se deve rejeitar tudo. Essa é a Igreja una, santa, católica e apostólica.” (Flavigny, 2.9.2012)
Essa afirmação impressionante contradiz flagrantemente o que o Arcebispo Lefebvre disse sobre a igreja conciliar, na conferência acima citada: “... somos nós que temos as marcas da Igreja visível. Se ainda há uma visibilidade na Igreja hoje, é graças a vocês. Esses sinais já não se encontram entre os outros [igreja conciliar].”
O Arcebispo Lefebvre respondeu explicitamente a Dom Gérard, que invocou, como razão para juntar-se à Roma modernista, a necessidade de juntar-se à “igreja visível”, com estas palavras: “A história de Dom Gérard sobre a Igreja visível é infantil. É incrível que possamos falar da Igreja visível a respeito da igreja conciliar em oposição à Igreja Católica que estamos tentando representar e continuar.” (Fideliter n° 70, julho-agosto de 1989, p. 6)
2. Obter nossa “legitimidade” da igreja conciliar
Como conseqüência do primeiro erro, as autoridades dizem que não é suficiente que a Sociedade reconheça a validade da autoridade do Papa e dos atuais bispos, nem que reze publicamente por eles, nem que reconheça alguns atos legítimos (quando estão de acordo com a Tradição). Para eles precisamos “ir além” e pedir à igreja conciliar que nos dê a legitimidade que nos está faltando!
Aqui de novo eles estão abertamente se afastando do Arcebispo Lefebvre que afirmou que, como a crise na Igreja continua, não precisamos de nenhum reconhecimento da igreja conciliar, porque a autêntica legitimidade ser-nos-á logicamente confirmada quando as autoridades da Igreja retornarem à sã doutrina.
O Arcebispo Lefebvre disse que não precisamos que a igreja conciliar nos dê qualquer “legitimidade” que seja: “Com que Igreja é que estamos lidando – eu gostaria de saber - se estou lidando com a Igreja Católica, ou se estou lidando com uma outra igreja, uma contra-Igreja, uma Igreja falsificada? ... Mas sinceramente acredito que estamos lidando com uma falsificação da Igreja, não com a Igreja Católica.” (18.6.1978)
3. A necessidade de um acordo prático
Assim, começando com esses dois erros, os líderes defendem a necessidade absoluta de um acordo prático com as atuais autoridades, mas sem nenhum acordo doutrinal prévio, contradizendo assim o que o Arcebispo Lefebvre explicitamente afirmou, especialmente depois de 1988, e o que o Capítulo Geral (que, lembremos a Menzingen, tem mais autoridade que o Bispo Fellay) decidiu em 2006. Sua atual procura por um acordo meramente prático é ainda mais surpreendente quando se considera que as recentes discussões teológicas entre nossa Comissão Teológica e o Vaticano chegaram à conclusão de que um acordo doutrinal com a igreja conciliar é impossível!
Dessa forma, a Sociedade buscar um acordo meramente prático com a atual Roma, que continua no erro, é o mesmo que cometer uma “operação suicídio”; seremos “absorvidos” pela igreja conciliar, com toda sua estrutura não apenas enraizada no Concílio, mas trabalhando para implementar as reformas conciliares e pós-conciliares. Sabemos o que aconteceu às oito comunidades tradicionais que se juntaram a essa igreja conciliar sem um acordo doutrinal preliminar; inevitavelmente a mesma coisa pode-se esperar que aconteça conosco...
O Arcebispo Lefebvre colocou claramente antes e em primeiro lugar, principalmente após a consagração dos bispos, como pré-requisito a qualquer diálogo futuro com a igreja conciliar, a solução da questão doutrinal: “Colocarei a questão no nível doutrinal: Concordam com as grandes encíclicas de todos os Papas que precederam vocês?... Estão em plena comunhão com esses Papas e com suas afirmações? Ainda aceitam o Juramento Antimodernista? São a favor do reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo? Se não aceitam a doutrina de seus predecessores, é inútil falar. Enquanto não concordarem em reformar o Concílio considerando a doutrina dos Papas que precederam vocês, não é possível qualquer diálogo. É inútil. Assim as posições ficarão mais claras.” (Fideliter n° 66, novembro-dezembro de 1988, p. 12-13)”
(Pe. Juan Carlos Ortiz, F.S.S.P.X, La Nueva “Hermenéutica” de Monseñor Fellay - ¿Ha Cambiado La Fraternidad su Posición?)