sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O céu é um lugar (II)

Estado de ser e lugar de morada
Essa citação de Santo Tomás é interessante porque apresenta uma outra distinção. Ele ensina que os anjos foram criados no céu empíreo, muito embora, como sabemos, eles não possuíssem inicialmente a visão beatífica (pois a visão de Deus era o prêmio apenas dos que passassem no teste angelical). Isso mostra que o céu empíreo e a visão beatífica são distintos, muito embora (desde a queda dos anjos) ambos simultaneamente constituam hoje a recompensa dos abençoados. O Cônego Ripley o confirma quando ensina que o céu é “tanto a felicidade quanto a morada dos justos na vida eterna.” O Dr. Ott ensina o mesmo: “O céu é um lugar e condição de bem-aventurança perfeita e sobrenatural, que consiste na visão imediata de Deus e no amor perfeito de Deus a ela associado.” Essa distinção é importante porque demonstra ainda mais que o céu é tanto um estado de ser quanto um lugar. Deve-se ainda ressaltar que os abençoados continuam a possuir a visão beatífica mesmo quando viajam fora do céu empíreo, o que é possível. Por exemplo, quando a Santíssima Virgem apareceu às crianças de Fátima, ela continuou a ter a visão beatífica. A distinção entre o lugar do céu e o “estado do céu” (a visão beatífica) é também ensinada no catecismo do Bispo Morrow, Minha Fé Católica:
Questão 83: Que queremos dizer com 'vida eterna'? Por 'vida eterna' queremos dizer que haverá outra existência depois desta vida atual, e nela os justos serão felizes por toda a eternidade. Naquele lugar os justos habitarão no céu com Deus, em perfeita e eterna felicidade. O céu é um lugar e um estado: Nosso Senhor Jesus Cristo desceu do céu, e para lá ascendeu. O céu é um estado: até quando a Santíssima Virgem, por exemplo, aparece aos homens, ela não deixa o céu [o estado de beatitude] que leva consigo, no estado de sua alma. É por isso que os bons e santos têm uma antecipação do céu mesmo aqui na terra, na paz e alegria que possuem em seus corações.
Assim, embora seja verdade dizer que os que estão no céu estão em um estado – o estado de beatitude, isso não deve ser entendido como se o céu não fosse também um lugar criado – um lugar material capaz de receber corpos físicos.
Na obra “As Últimas Quatro Coisas”, Pe. Cochem, O.S.F.C, alerta contra os que imaginam que o céu seja simplesmente um reino espiritual: “Não devemos, como alguns, imaginar-nos um céu inteiramente espiritual. Pois o céu é um lugar definido, onde não apenas Deus está, e os anjos agora estão, mas onde Cristo também está em Sua santa humanidade, e Nossa Senhora com seu corpo humano. Lá, também, todos os abençoados habitarão com seus corpos glorificados após o Juízo Final. Se o céu é uma localidade definida, deve também ser um reino visível, não espiritual; pois um lugar deve ser, por sua própria natureza e até um certo grau, conformável àqueles que habitam nele.”
O Beato Francisco Palau explica que as mansões dos abençoados – a Igreja Triunfante – localizam-se em um determinado lugar do Empíreo chamado céu celestial.
Não há dúvida que a Igreja ocupa materialmente um lugar no Empíreo: todos nós assim acreditamos. Esse lugar é chamado de céu celestial. O céu celestial deve ser considerado um verdadeiro corpo e o pavimento de nossa morada deve ser sólido, capaz de suster nosso corpo, além do seu dom de agilidade, porque lá devemos ter a capacidade de caminhar lentamente e de voar até aquela mais pura das regiões. Como durante esta vida mortal fomos peregrinos e não tivemos ponto de apoio porque nossas misérias nos assaltaram, é justo que lá tenhamos um ponto de apoio, um lugar estável... como o Apóstolo disse, uma cidade permanente no imenso espaço do Empíreo. Isso é o que morada significa em Jo 14,2: “na casa de meu Pai há muitas moradas” e foi isso o que o Apóstolo disse em Heb 13,14: “pois aqui não temos uma cidade duradoura; estamos buscando a que virá”... A Santa Igreja ocupa um lugar no céu celestial... Além disso, esse lugar sendo a eterna morada e descanso dos abençoados, uma figura deve ser dada à matéria para indicar essa mesma estabilidade: e não há nada melhor que a cidade, que denota a Igreja inteira, e cada um de seus membros um distrito, vizinhança, rua, palácio e morada... Devemos considerar a Igreja triunfante como uma cidade no sentido material.
Prosseguindo em seu comentário sobre o reino celeste, Pe. Cochem escreve:
Se nos aventuramos a comentar sobre o interior do reino celeste, podemos supor que o espaço vasto e imensurável do céu não contém somente essas cidades celestiais, mas muitas outras coisas que realçam as delícias daquela terra feliz. Pois assim como reis e príncipes na terra têm jardins e parques ao redor de seus palácios, onde se divertem durante o verão, da mesma forma, afirmam muitos teólogos, existem paraísos celestes, que proporcionam prazeres crescentes aos abençoados... Sto. Agostinho, Sto. Alselmo e muitos outros santos não hesitam em afirmar que existem no céu verdadeiras árvores, verdadeiros frutos, verdadeiras flores, indescritivelmente atraentes e deliciosas ao tato, visão, olfato e paladar, diferentes de tudo que possamos imaginar. Na revelação dos santos, faz-se menção a flores que lá desabrocham; e sabemos da lenda de Sta. Dorotéia que ela enviou a Teófilo pela mão de um anjo uma cesta de flores colhidas no jardim do paraíso celeste, de tão insuperável beleza que a simples visão delas levou-o a tornar-se cristão e a entregar a própria vida pela fé em Cristo.
Anna Katharina Emmerich recebeu inúmeras visões do céu, que ela descrevia como “uma cidade bonita e bem ordenada”. Ela explica que “os diferentes graus de glória alcançados pelos eleitos são demonstrados pela magnificência de seus palácios, ou os frutos e flores maravilhosos com os quais os jardins são adornados... Na Jerusalém Celeste tudo é paz e harmonia eterna... a cidade é cheia de construções esplêndidas, decoradas de maneira a fascinar todo olhar e encantar todo sentido; os habitantes desse lugar encantador transbordam de êxtase e arrebatamento, os jardins felizes têm lindas flores, e as árvores estão cobertas de deliciosos frutos...”
Aqui vemos o céu descrito como um lugar real onde os santos hoje habitam. Mas podem almas espirituais, separadas de seu corpo, morar em um “lugar”? Segundo Santo Tomás a resposta é sim. Ele diz:
O céu empíreo é um lugar material, contudo logo depois de feito ele foi ocupado pelos santos anjos, como Beda diz. Sendo os anjos, enquanto almas separadas, imateriais, deveria, ao que parece, também existir um lugar destinado a receber as almas separadas. Isso se confirma pelo que diz Gregório (Dial. IV), que as almas depois da morte são transportadas a vários lugares materiais... Portanto, depois da morte as almas têm certos lugares para sua recepção. … E embora as almas depois da morte não tenham corpos que lhes sejam conferidos... apesar disso, certos lugares materiais são-lhes destinados...
Ressalte-se que, em resposta a uma objeção levantada no mesmo artigo sobre como um anjo, ou alma separada, podia estar em um lugar, Sto. Tomás escreve:
As coisas imateriais não estão em um lugar de um modo que nos seja conhecido e familiar, como dizemos que os corpos estão propriamente em um lugar; mas estão em um lugar de um modo próprio às substâncias espirituais, a nós não totalmente manifesto.
No livro Ressuscitado dos Mortos, Pe. Hebert, S.M. inclui um capítulo contendo histórias de almas que foram levadas ao céu. “Aqueles a cujas almas se permitiu visitar o céu geralmente o descrevem em termos de figuras e cenas familiares às faculdades sensíveis terrenas. Essas pessoas privilegiadas vêem jardins do paraíso, ouvem coros gloriosos dos santos,... sentem fragâncias celestiais. Elas vêem principalmente Jesus (em Sua humanidade) e a Santíssima Virgem Maria em grande beleza e esplendor.” Ele então conta a história de Sta. Liduína de Schiedam, cujas “visitas ao outro mundo eram impressionantes mesmo entre os santos. Ela viu o céu como um grande salão de festa em um palácio, com taças de cristal e ouro... [ela viu] um belo jardim do Éden com árvores e flores magníficas. Por belos caminhos os santos cantavam as glórias de Deus em uma bela e eterna manhã de primavera.”
Isso confirma que o Céu Empíreo – o terceiro céu – é um lugar, que foi visitado por almas privilegiadas ainda sem a posse da visão beatífica, tal como São Paulo, confirmando com isso, mais uma vez, que o lugar do céu é distinto da recompensa definitiva dos santos – a visão de Deus Todo-Poderoso.
Conclusão
Embora seja verdade que o céu empíreo não está “nas nuvens” (o primeiro céu) ou em “alguma estrela distante” (o segundo céu), disso não se segue que Nosso Senhor não ascendeu ao céu empíreo (o terceiro céu) – o lugar onde Ele hoje habita materialmente com Sua Mãe e os anjos e santos. O céu é mais do que um “relacionamento pessoal com a Trindade”, que é simplesmente, como o Bispo Morrow disse, “uma antecipação do céu” - algo que os que estão em estado de graça podem possuir até neste vale de lágrimas. O céu criado é distinto da morada incriada onde a Santíssima Trindade habitava antes da criação. O céu empíreo, onde Deus “preparou Seu trono”, é um lugar material criado onde as moradas dos santos se localizam, onde os corpos ressurrectos dos santos habitarão pela eternidade, e onde os abençoados, com o intelecto aperfeiçoado pela lumen gloriae, verão a Deus face a face e serão elevados e transformados em um estado de perfeita beatitude.
As doutrinas da fé estão interligadas de tal modo que a negação de uma leva inevitavelmente à negação das outras. Quando se nega a existência de um céu material, logo depois serão negados um inferno material, um purgatório material, a descida de Nosso Senhor ao limbo e até o próprio limbo.
Depois que tais são negados, os próximos a partir são a ressurreição do corpo físico e, conseqüentemente, a ascensão de Nosso Senhor e a assunção de Nossa Senhora. As doutrinas da fé podem ser comparadas aos fios de uma tapeçaria; basta que um seja negado e o conjunto começa a se desfiar.”
(Robert Siscoe, Is Heaven a Place?)