sexta-feira, 6 de julho de 2012

A idéia de justiça

“A idéia de justiça compõe-se, aos olhos dos homens, desde a Antiguidade, de duas metades: a virtude triunfa, o vício é punido.
Tivemos a sorte de chegar a viver ainda num tempo em que a virtude, embora não triunfe, não é sempre, apesar de tudo, açulada por cães. À virtude, espancada, combalida, já é permitido entrar com seus andrajos e ficar sentada a um canto, desde que não abra a boca.
Entretanto, ninguém se atreve a pronunciar uma palavra sobre o vício. Sim, mofaram da virtude, mas sem que tenha havido vício. Se alguns milhões foram lançados pela ladeira, não houve culpados disso. E se alguém faz uma simples alusão: “mas enfim, aqueles que...”, recebe recriminações de todos os lados. Nos primeiros tempos, amistosamente: “Ora, camarada! para que voltar a abrir velhas feridas?” E depois a cacete: “Silêncio, sobreviventes! Vocês foram reabilitados!”
Quando, em 1966, na Alemanha Ocidental, foram julgados oitenta e seis mil criminosos nazis, nós engasgamos de alegria, não lamentamos as páginas dos jornais nem as horas de rádio gastas, e mesmo depois do trabalho ficávamos para assistir a comícios onde votávamos: É pouco! Oitenta e seis mil é pouco! E vinte anos é pouco! Há que prosseguir!
Quanto a nós, apenas julgamos (segundo os relatos do Júri Militar do Supremo Tribunal) cerca de dez homens.
O que se faz para além do Oder, do Reno, isso nos inquieta. E o que se faz nos arrabaldes de Moscou e por trás dos verdes tapumes dos arredores de Sótchi, o fato de que os assassinos dos nossos maridos e pais andem pelas nossas ruas e lhes cedamos a passagem – isso não nos inquieta, não nos comove, isso é “remexer no passado”.
Entretanto, se transpusermos os oitenta e seis mil alemães ocidentais para as nossas proporções, isso significará para o nosso país um quarto de milhão!
Não obstante ter passado um quarto de século, não levamos ninguém ao tribunal, receamos abrir as suas feridas. E, como símbolo de todos eles, continua a viver até agora na Rua Granóvski, número 3, satisfeito, obtuso, o Molotov, todo ele impregnado do nosso sangue, atravessando nobremente o passeio e sentando-se no seu comprido e espaçoso automóvel.
É um mistério que a nós, os contemporâneos, não nos é dado decifrar: por que é que a Alemanha precisou castigar seus malfeitores e a Rússia não precisa? Que caminho de perdição será o nosso, se não é possível purificar-nos desse mal que empeçonha o nosso corpo? O que é que a Rússia poderá ensinar ao mundo?
Nos processos judiciais alemães verificava-se um fenômeno extraordinário: o réu levava as mãos à cabeça, renunciava à defesa e nada mais pedia ao tribunal. Dizia que a descrição dos seus crimes, citada e registrada perante ele, o fazia transbordar de repugnância e que não desejava mais viver.
Esse é o maior êxito do tribunal: quando o vício é tão reprovado que o próprio criminoso o repudia.
Um país que oitenta e seis mil vezes, do alto do estrado do tribunal, reprovou o crime (e o condenou irreversivelmente na literatura e entre a juventude) purifica-se ano após ano e de degrau em degrau desse mesmo crime.
E nós, que devemos fazer?... Um dia, os nossos descendentes chamarão a várias das nossas gerações de as gerações dos imbecis: primeiro, submissamente, deixamo-nos massacrar aos milhões, depois, com solicitude, amimamos os nossos assassinos na sua velhice feliz.
Que fazer, se a grande tradição do arrependimento russo é para eles incompreensível e ridícula? Que fazer se o terror animal de sofrerem a centésima parte do que causaram aos outros pesa neles mais do que qualquer inclinação para a justiça? Se eles agarram com mãos ávidas a colheita dos bens criados com o sangue dos que pereceram?
É verdade que aqueles que manipulavam a máquina de picar carne, mesmo que fosse em 1937, já não são jovens, já têm de cinqüenta a oitenta anos de idade, e viveram todos os seus melhores anos desafogadamente, bem alimentados, no conforto. Qualquer castigo eqüitativo chega tarde, já não lhes pode ser aplicado.
Podemos ser generosos, não os vamos fuzilar, não lhes vamos enfiar água salgada pela garganta, não vamos enchê-los de percevejos, amarrá-los, segundo o método da “andorinha”, nem mantê-los durante semanas sem dormir, nem dar-lhes pontapés, nem maltratá-los a “cavalo-marinho”, nem apertar-lhes o crânio com um anel de ferro, nem empilhá-los nas celas como se fossem bagagens amontoadas – não vamos fazer-lhes nada do que eles nos fizeram! Mas perante o nosso país e os nossos filhos estamos obrigados a procurá-los a todos e a julgá-los todos! A julgá-los não tanto a eles, como aos seus crimes. A procurar que cada um deles diga, pelo menos, em voz alta: “Sim, fui um algoz, um assassino”.
E se esta frase for pronunciada apenas por um quarto de milhão, para não ficar proporcionalmente atrás da Alemanha Ocidental, será suficiente?
No século XX já não se pode, e isso há decênios, continuar a confundir as atrocidades, relevando do tribunal o que é “velho”, o passado em que “não se deve remexer”!
Devemos condenar publicamente a própria idéia da violência de uns homens sobre os outros! Calando o vício, fazendo-o entrar no corpo só para que não saia para o exterior, nós o semeamos, e ele surgirá ainda mil vezes mais forte no futuro. Não castigando, nem sequer censurando os criminosos, não apenas os protegemos na sua velhice insignificante, como também solapamos as bases, para as novas gerações, de qualquer fundamento de justiça. É por isso que elas crescem na “indiferença” e não devido à “debilidade do trabalho educativo”. Os jovens compenetram-se da idéia de que a infância nunca é castigada nesta terra, mas é sempre fonte de prosperidade.
Oh, como é desolador, terrível, viver num país assim!”
(Aleksandr Soljenítsin, Arquipélago Gulag)

Tradução de Francisco A. Ferreira, Maria M. Llistó e José A. Seabra