terça-feira, 3 de julho de 2012

Bondade técnica e bondade moral

“O bem, como já vimos ao tratar dos transcendentais, é idêntico ao ser. Em si mesmo, portanto, um ser é bom na medida em que é. Toda a ação tende para um fim; no seu gênero, portanto, como ação, é tanto mais plenamente quanto mais perfeitamente realize o seu fim. Correlativamente, o ato é bom, e quem o pratica é bom, sob o aspecto considerado, quando é proporcionado ao fim que se procura.
Se o fim é um fim próximo, o ato é bom dum ponto de vista particular; é bom tecnicamente, digamos assim. Por exemplo: é bom serralheiro o que sabe fazer a obra da sua especialidade; e trabalha bem quando executa as operações capazes de produzirem uma peça perfeita. Se, pelo contrário, consideramos o fim último, o ato é bom moralmente. A bondade moral é a do fato olhado sem quaisquer restrições, no plano em que por Natureza se coloca; como ato dum homem, e na sua proporção para o fim natural do homem.
Entre a bondade técnica e a bondade moral não há nenhuma relação necessária. Forçar bem um cofre, por exemplo, pode ser um ato moralmente bom, se é feito a pedido dos herdeiros legítimos do antigo dono, morto sem indicar o segredo da fechadura; é um ato mau se é feito para roubar. E há até certas técnicas que são sempre más. Roubar bem, por exemplo, é saber empregar os meios necessários para roubar sem ser apanhado pela polícia; mas, por muito bem que se roube, o roubo é sempre um ato moralmente mau. É preciso insistir neste ponto, porque há casos em que o bem técnico consegue um tal prestígio que toma, aos olhos desprevenidos, o aspecto de bem moral.
Um caso que deve ser tratado em especial é o da arte. Já disse que o belo e o bem transcendentais são idênticos, e portanto que uma coisa é boa na medida em que é bela. A obra de arte exprime um pensamento do artista; é bela, tecnicamente, se há conformidade, harmonia, entre a forma de expressão e o pensamento expresso; e, nesse caso, é tecnicamente boa, porque o exprime convenientemente. Mas isso não basta para ser boa moralmente; porque então é preciso que o próprio pensamento que traduz seja bom. Não basta à moral a bondade relativa, proporção da obra de arte para o pensamento do artista, a que corresponde a beleza relativa como meio de expressão desse pensamento. É necessária a bondade absoluta, proporção entre a obra de arte e a verdade profunda das coisas; bondade a que corresponde a beleza absoluta, como meio de expressão da realidade, e, em última análise, do pensamento de Deus.
Há muitos casos da vida em que é necessário fazer uma distinção análoga. Veja-se, por exemplo, o nudismo. A beleza do corpo humano não desculpa a sua exibição pública. O corpo humano é belo, e é um bem que assim seja. Mas exibi-lo não é bom; nem é bonito, como diz a linguagem familiar, exprimindo, mais pelo que adivinha do que pelo que sabe, uma verdade profunda. Lisonjeia as paixões; e lisonjear as paixões é falsear a sua verdadeira função; nos sentimentos que o nudismo provoca, e às vezes revela, não há por isso nem verdade, nem bondade, nem beleza. O belo é idêntico ao bom; o parcialmente belo, o tecnicamente belo, é idêntico ao parcialmente bom, ao tecnicamente bom; mas o moralmente bom só é idêntico com o moralmente belo, com o belo até a medula.”
(Manuel Correa de Barros, Lições de Filosofia Tomista)