terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O antigo mundo

“Somos conservadores, que seja. Mas conservamos para salvar; eis o que o mundo não pode compreender, porque o mundo só quer durar, subsistir. Ora, o mundo não pode mais contentar-se em durar.
O antigo mundo, sim, poderia talvez durar. Durar muito tempo. Era feito para isso. Era terrivelmente pesado, estava seguro à terra com uma carga enorme. Acostumara-se com a injustiça. Em vez de usar de astúcia com ela, aceitou-a em bloco, toda de uma vez; fez da injustiça uma constituição como as outras, instituiu a escravidão. Oh! Sem dúvida, qualquer que fosse o grau de perfeição a que pudesse um dia atingir, não permaneceria menos sujeito à maldição lançada sobre Adão. O diabo não ignorava isso, sabia-o até melhor que qualquer um. Também, para que lançar a maldição sobre os ombros de todo o “gado humano”, quando se poderia reduzir tanto o pesado fardo? Bastaria que se reservasse a maior soma possível de ignorância, de revolta, de desespero a uma espécie de povo sacrificado, um povo sem nome, sem história, sem bens, sem aliados – pelo menos confessáveis – sem família – pelo menos legal – sem deuses! Que simplificação do problema social, dos métodos de governo!
Mas essa instituição que parecia inabalável era, na realidade, fragílima. Para destruí-la de uma vez, bastaria aboli-la por um século. Por um dia talvez! Uma vez confundidas as classes, uma vez dispersado o povo expiatório, que força seria capaz de o fazer retomar o jugo?
Morreu a instituição. O antigo mundo desmoronou-se com ela. Cria-se, fingia-se crer em sua necessidade; era aceita como um fato. Não se restabelecerá mais. A humanidade não ousará renovar essa triste experiência; arriscar-se-ia demais. A lei pode tolerar a injustiça ou até favorecê-la sub-repticiamente: não mais a sancionará. A injustiça nunca mais há de ter um estatuto legal; acabou-se. Nem por isso, entretanto, está menos espalhada pelo mundo. A sociedade que não ousasse mais utilizar a injustiça para o bem de poucos estaria condenada a prosseguir na destruição de um mal que traz dentro de si, o qual, reprimido sempre pelas leis, reapareceria quase no mesmo instante entre os costumes sociais, para renovar, em sentido inverso, incansavelmente, o mesmo círculo infernal. Por bem ou por mal, deve, de agora em diante, partilhar a condição do homem, correr a mesma aventura sobrenatural. Outrora indiferente ao bem e ao mal, o mundo apenas conhecia a lei de seu próprio poder: o cristianismo deu-lhe uma alma, uma alma para salvar ou perder.”
(Georges Bernanos, Journal d’un Curé de Campagne)

Tradução de Edgar de Godoi da Mata-Machado