segunda-feira, 5 de julho de 2010

Operação Parricídio (I)


“O ano de 1989 d. C motivou a celebração do 200º aniversário da Revolução Francesa em muitos países. No ano de 1880, na França, o 14 de julho, dia da queda da Bastilha, já tinha sido ocasião para todo tipo de frivolidades. Na época, as últimas testemunhas da revolução já estavam há muito tempo mortas. Era-se então dependente de historiadores que idealizavam esse evento de longo alcance em nossa história, porque com a Revolução Francesa a democracia sofreu um reavivamento depois da queda de ponta-cabeça que tivera com a morte de Sócrates.
A Revolução Francesa, contudo, não veio como um relâmpago em céu azul. Carlos I havia sido executado 140 anos antes em Whitehall por fanáticos político-religiosos, e como afirmou convincentemente Jean Lacroix, a República se funda sobre “a morte do Pai”. Fraternidade e Igualdade parece que só se podem realizar por meio do parricídio. O ímpeto por mudanças na França veio não apenas da Suíça, mas principalmente de franceses anglófilos e de um entendimento completamente falso do que tinha acabado de acontecer na América. Foi, de certa forma, o primeiro grande desentendimento euro-americano. Por outro lado, o Governador Morris, embaixador americano em Paris, disse ao orgulhoso Lafayette no começo da Revolução: “Eu sou contra vossa democracia, Monsieur de Lafayette, porque sou pela liberdade”. Em 1815 começou um discurso com as palavras, “Os Bourbons estão de volta ao trono; a Europa está livre de novo” – algo que um americano de hoje mal poderia entender depois de tantos anos de presunçosa estupidez incutida pelas escolas.
A interpretação comum
A interpretação comum da Revolução Francesa (parecida com a da Revolução Russa) baseia-se na teoria do pêndulo que oscila na direção contrária. O povo empobrecido e oprimido, liderado por idealistas altamente inteligentes, livrou-se do domínio insuportavelmente opressivo dos monarcas, aristocratas e padres e criou uma nova ordem, na qual Liberdade, Igualdade e Fraternidade se realizaram. Não nos tinha já dito Goethe que os legisladores e os revolucionários que anunciam simultaneamente Liberdade e Igualdade eram falsos e impostores? Quando não existe o que se chama de “igualdade natural”, ela só pode ser criada pela força bruta. Para trazer igualdade a uma cerca, usa-se uma podadeira. Cem centavos fazem um dólar, mas cada dólar de um determinado ano não é idêntico a todos os demais dólares impressos naquela época.
A primeira fase da Revolução Francesa, que se desdobrou como crescimento econômico, crise financeira do Estado e uma série de reformas liberais, teve um caráter predominantemente aristocrático. As “novas idéias” do primeiro Iluminismo – a incompreendida guerra de independência americana, a anglomania, as visões de Rousseau, a crítica da religião por Voltaire (um homem que desprezava o homem comum) e a ainda turbulenta controvérsia jansenista – tudo isso havia confundido o espírito das classes superiores. A maçonaria, recentemente importada da Inglaterra, também teve um papel nessa transformação. É possível que até mesmo Luís XVI tenha sido maçom. Ele era, sem sombra de dúvida, um devotado leitor da Encyclopédie. Como resultado, um enorme vácuo de crença surgiu, o qual foi rapidamente preenchido pela ideologia esquerdista radical, que imediatamente infectou vastos segmentos da população. A “intelligentsia” esquerdista funcionou como quebra-gelo para a revolução de tal modo que, pelo menos no início, a existência da monarquia mal foi questionada, enquanto a aristocracia e o clero abdicavam e “casavam-se” com a burguesia.
O evento que deflagrou a Revolução Francesa não foi tanto a aliança entre os estados após o encontro em Jeu des Paumes como a tomada da Bastilha, na qual um homem teve um papel tão crucial no curso dos eventos como o de Rousseau.
Refiro-me ao Marquês de Sade. Hoje em dia ele é conhecido principalmente como o epônimo de “sadismo”. No entanto, em seus escritos infinitamente pornográficos e extremamente maçantes, há longas passagens filosóficas e políticas nas quais ele se revela um ateísta furioso, esquerdista e materialista. Foi o principal responsável pela tomada da Bastilha, pois a pedido de sua sogra ele foi – graças a uma lettre de cachet – preso na Bastilha junto com sete contraventores, jogadores de cartas trapaceiros, imbecis e devedores. Da Bastilha, Sade incitou com seu megafone improvisado o povo da vizinhança para vir em auxílio do grupo e libertá-los. De Launay, o comandante militar da Bastilha, estava perdido. Não ousou colocar o prisioneiro numa camisa-de-força (ou em um calabouço) mas pediu, ao invés, que dele o livrasse o rei. Como resultado, Sade foi transferido em 4 de julho de 1789 ao hospital para criminosos loucos em Charenton e solto em 1791. Tornou-se então o líder de uma section des piques revolucionária na qual o “Cidadão Sade” era ativo como um jacobino radical, até que brigou com Robespierre e foi novamente enviado ao dito hospital. Sade, juntamente com o neurótico masoquista Rousseau, que escreveu romances pedagógicos e enviou seus filhos a orfanatos, é o verdadeiro renovador da democracia em nosso tempo e naturalmente também um herói de nossos intelectuais esquerdistas.
A tomada da Bastilha/colapso moral
A tomada da Bastilha em 14 de julho e suas conseqüências imediatas mostraram o que a Revolução Francesa realmente era, ou seja, a conseqüência de um colapso moral que havia sido preparado pelos esquerdistas, radicais-chiques e literatos da época. De Launay negociou com a multidão, que lhe prometeu e à sua minúscula guarnição de inválidos e mercenários suíços livre passagem. Contudo, tão logo os defensores saíram, a multidão os atacou e os assassinou da maneira mais brutal possível. Foram principalmente os inválidos, que não podiam fugir, que foram feitos em pedaços. Durante algum tempo a multidão tentou decapitar de Launay; mas suas facas estavam muito cegas. Finalmente alguém trouxe um assistente de açougueiro, qui savait faire les viandes, e este separou a cabeça do comandante do seu corpo já frio, a qual foi então levada em triunfo pela cidade.
As tentativas de estabelecer uma monarquia constitucional falharam. O impulso por identidade e igualdade, levado ao ponto de ebulição pelo ódio e pela inveja, confirmou a verdade das palavras de Benjamin Constant: “Em certas épocas, deve-se percorrer toda a gama de loucuras antes de se voltar à razão”. Tudo que fosse distinto, mesmo que remotamente, era condenado e perseguido. A conformidade celebrava orgias.
Somente a queda de Robespierre em julho de 1794 impediu novos planos de nivelamento, que Babeuf com toda probabilidade teria realizado. Pois Robespierre planejava não apenas colocar todos os franceses em uniforme (ao modo das “formigas azuis” de Mao), mas também derrubar todos os campanários das igrejas, considerados “não-democráticos”, pois eram mais altos que os demais edifícios e como tais se destacavam por sua postura “aristocrática”. (Em Estrasburgo, preparativos já estavam a caminho para a mutilação bárbara da catedral local.) Outro problema que precisava ser resolvido era a língua dos alsacianos qui ne parlent pas la langue républicaine, também conhecida como francês. Alguém sugeriu retirar todas as crianças da Alsácia-Lorena ou reassentar toda a população de língua alemã pela França inteira. Tais eram planos caros demais e como resultado uma solução mais prática foi aventada, ou seja, o completo extermínio da população germanófona. Como se pode ver, a Revolução Francesa não se interessou apenas no desenvolvimento do assassinato mecânico em massa do bom Doutor Guillotin; ela também se interessava pelo genocídio e não apenas na Alsácia, mas também em outras regiões da République Une et Indivisible.
A Revolução Francesa tem sido vista pela maior parte dos escritores como predominantemente política, social ou (sob influência marxista) até mesmo como um evento econômico. Burke, Young, Rush e outros americanos e britânicos que visitaram a França antes da revolução apontam o dedo para a aristocracia, o clero e as classes altas; contudo, tanto o ceticismo como o ateísmo já se tinham infiltrado nos círculos mais elevados, e existia entre o clero o que Spengler chamava de “ralé sacerdotal”, ou o que chamaríamos hoje de católicos de esquerda “progressistas”. A censura em poder dos precursores dos liberais, que sofriam de esnobismo moderno, favorecia os esquerdistas e perseguia a direita, para não ser rotulada de “reacionária”. Tudo isso gradualmente influenciou também as classes média e baixa.”
(Erik von Kuehnelt-Leddihn, Operation Parricide: Sade, Robespierre & The French Revolution)