sexta-feira, 9 de abril de 2010

Ricardo de São Vítor e a Santíssima Trindade


“Aprendemos, pelo que já foi exposto, que no sumo e plenamente perfeito bem encontra-se a plenitude e a perfeição de toda a bondade. Onde, porém, encontra-se a plenitude de toda a bondade, não pode faltar a verdadeira e suma caridade. Nada, efetivamente, é melhor do que a caridade, nada mais perfeito do que a caridade. Ninguém, porém, é dito propriamente possuir caridade pelo amor particular e próprio de si mesmo. É necessário, portanto, que o amor se estenda a outro, para que possa ser caridade. Onde, portanto, falta a pluralidade das pessoas, a caridade não pode existir de nenhum modo.
Mas dirás, talvez, que ainda que existisse uma única pessoa naquela verdadeira divindade, esta poderia, não obstante, possuir alguma caridade para com a sua criatura, ou melhor, possuí-la-ia com certeza. Porém também com certeza não poderia possuir a suma caridade para com uma pessoa criada. Seria, de fato, uma caridade desordenada. Ora, é impossível que na bondade da suma sabedoria exista a caridade desordenada. A pessoa divina, portanto, não poderia possuir a suma caridade para com outra pessoa que não fosse digna do sumo amor. Para que, porém, a caridade possa ser suma e sumamente perfeita, é necessário que seja tanta que não possa ser maior, é necessário que seja tal que não possa ser melhor. Ora, na medida em que alguém não ama mais ninguém do que a si mesmo, este que possui para consigo mesmo um amor particular tem em si mesmo a prova de que ainda não apreendeu o sumo grau da caridade. A pessoa divina, porém, com certeza não teria ninguém que pudesse amar dignamente como a si mesma se de nenhum modo tivesse outra pessoa condigna de si. Nenhuma pessoa, entretanto, seria condigna da pessoa divina se ela também não fosse Deus. Para que, portanto, naquela verdadeira divindade a plenitude da caridade possa ter lugar, é necessário, além da pessoa divina, outra pessoa condigna de modo que não lhe falte o divino consórcio.
Vês, portanto, quão facilmente a razão nos convence que na verdadeira divindade não pode faltar a pluralidade das pessoas. Certamente somente Deus é sumamente bom. Somente Deus, portanto, é sumamente amável. A divina pessoa não poderia, por conseguinte, exibir o sumo amor a uma pessoa que carecesse de divindade. A plenitude da divindade, porém, não pode existir sem a plenitude da bondade. A plenitude da bondade, entretanto, não pode existir sem a plenitude da caridade, nem a plenitude da caridade sem a pluralidade das pessoas divinas.
Aquilo, porém, que a plenitude da bondade nos convence a respeito da plenitude das pessoas, por razões semelhantes demonstra-o também a plenitude da bem-aventurança. Aquilo de que uma fala, a outra o comprova. E aquilo que a primeira clama, em uma única e mesma verdade a segunda aclama.
Interrogue cada um à sua consciência, e sem dúvida e sem contradição encontrará que assim como nada é melhor do que a caridade, assim também nada é mais feliz do que a caridade. Isto no-lo ensina tanto a própria natureza, quanto a repetida experiência. Assim como na plenitude da verdadeira bondade não pode faltar aquilo de que nada pode ser melhor, assim também na plenitude da suma bem-aventurança não pode faltar aquilo de que nada pode ser mais feliz. É necessário, portanto, que na suma bem-aventurança não falte a caridade. Para que, porém, exista a caridade no sumo bem, é impossível que lhe falte alguém a quem possa ser oferecida, ou possa ser exibida. É próprio do amor, porém, e sem o qual não pode de nenhum modo existir, querer ser muito amado por aquele a quem muito se ama. Não pode, portanto, o amor ser feliz se não for mútuo. Por conseguinte, naquela verdadeira e suma bem-aventurança, assim como não pode faltar o amor feliz, assim também não pode faltar o amor mútuo. No amor mútuo, porém, é inteiramente necessário que haja quem ofereça o amor e quem retribua o amor. Um terá que ser aquele que oferece o amor, e outro terá que ser o que retribui o amor. Onde, porém, nos convencemos que deve haver o um e o outro, depreende-se haver verdadeira pluralidade. Naquela verdadeira plenitude de felicidade, portanto, não pode faltar a pluralidade das pessoas. Consta, entretanto, que nada mais é a suma bem-aventurança do que a própria divindade. A exibição do amor gratuito e a devida retribuição deste amor nos convence, indubitavelmente, que na verdadeira divindade não pode faltar a pluralidade das pessoas.
Se disséssemos que na verdadeira divindade há apenas uma única pessoa, assim como há uma única substância, então sem dúvida ela não teria a quem poder comunicar aquela infinita abundância de sua plenitude. Mas, pergunto, por que se daria isto? Quereria ela talvez ter a quem comunicá-la, e não o poderia, apesar de querê-lo? Ou não quereria fazê-lo, apesar de ter a quem o pudesse? Se, porém, alguém é sem dúvida alguma onipotente, não poderia ser desculpado pela impossibilidade. Mas o que consta não ser por defeito de potência, poderia sê-lo única e tão somente por defeito de benevolência? Considera, pois, eu te peço, qual e quanto seria o defeito de benevolência se a pessoa divina verdadeiramente pudesse ter, querendo-o, alguém a quem comunicar a abundância de sua plenitude e ainda assim de nenhum modo o quisesse. É certo, conforme dissemos, que nada é mais doce do que a caridade, nada é mais feliz do que a caridade, nada a vida racional experimenta como mais doce do que as delícias da caridade, nem deleitação alguma frui mais deleitavelmente. Destas delícias careceria por toda a eternidade se, carecendo de consórcio, permanecesse solitária no trono de sua majestade.
Por estas considerações podemos advertir qual e quanto seria este defeito de benevolência se preferisse avarentamente reter somente para si a abundância de sua plenitude que poderia, se assim o quisesse, com tanto cúmulo de bem-aventurança, com tanto aumento de delícias, comunicá-la a outrem. Se assim o fosse, se na pessoa divina houvesse tanto defeito de benevolência, merecidamente se envergonharia de conhecer-se a si mesma, merecidamente se envergonharia de ser assim vista, merecidamente fugiria de todos os olhares, merecidamente se envergonharia dos próprios anjos. Mas, que dizemos? É inconcebível que na suprema majestade exista algo em que não possa gloriar-se e por que não possa ser glorificada.
De outra forma, onde estaria a plenitude de sua glória? Pois ali, conforme já havíamos demonstrado, não pode faltar nenhuma plenitude. Porém, o que pode haver de mais glorioso, o que pode haver de mais magnificente do que nada possuir que não se queira comunicar? Consta, por conseguinte, que naquele inexaurível bem e sumamente sábio conselho tanto não pode encontrar-se a avarenta reserva como não pode haver uma desordenada efusão. Eis, portanto, que tens a descoberto, como podes vê-lo, que naquela suma e suprema excelsitude a própria plenitude da glória obriga a que não falte o consorte da glória.
Eis que ensinamos sobre a pluralidade das pessoas divinas por razões tão manifestas que se alguém quiser contradizer afirmações tão evidentes parecerá padecer da doença de insanidade. Quem, senão o que sofre de insanidade, dirá que à suma bondade falta aquilo de que nada é mais perfeito, de que nada é melhor? Quem, pergunto, senão uma mente débil, contradirá dizendo faltar à suma bem-aventurança aquilo de que nada é mais feliz, nada é mais doce? Quem, digo, senão o carente de razão, pode admitir faltar na plenitude da glória aquilo de que nada é mais glorioso, nada é mais magnificente? Nada certamente é melhor, nada certamente é mais feliz, nada mais magnificente do que a verdadeira, sincera e suma caridade, da qual sabe-se que de nenhum modo pode existir sem a pluralidade de pessoas.
Esta afirmação da pluralidade é confirmada por um tríplice testemunho, pois aquilo que a suma bondade e a suma bem-aventurança clamam concordemente sobre este assunto a plenitude da glória aclama confirmando, e aclamando confirma. Eis que temos assim, sobre este artigo de nossa fé, um tríplice testemunho, sumo entre os sumos, divino entre os divinos, altíssimo entre os profundos, manifestíssimo entre os ocultos, e sabemos que na boca de dois ou três está toda a palavra. Eis o tríplice cordel que dificilmente se rompe, pelo qual, concedendo-nos Deus sabedoria, qualquer impugnador de nossa fé é fortemente atado.
Eis que, conforme podemos manifestamente concluir pelo que já dissemos, a perfeição de uma pessoa exige o consórcio do outro. Descobrimos que nada é mais glorioso, nada mais magnificente, do que nada querer ter que não se queira comunicar. A pessoa que for sumamente boa não quererá, portanto, carecer do consorte de sua majestade. Sem dúvida, porém, para aquele cuja vontade for onipotente, será coisa necessária que seja tal qual quiser sê-lo. Aquele que, entretanto, tiver uma vontade imutável, irá querer para sempre o que tiver querido uma só vez. É necessário, portanto, que a pessoa eterna tenha outra pessoa coeterna, pois uma não terá podido preceder a outra, nem uma suceder a outra; pois naquela eterna e imutável divindade nada poderá mudar como se se tornasse antiquado, nem tampouco nada de novo poderá sobrevir-lhe. É impossível, por conseguinte, que as pessoas divinas não sejam coeternas. Onde, portanto, existir a verdadeira divindade, ali haverá a suma bondade, ali haverá a plena bem-aventurança. A suma bondade, conforme foi dito, não pode existir sem a perfeita caridade, nem a perfeita caridade sem a pluralidade de pessoas. A plena bem-aventurança, porém, não pode existir sem a verdadeira imutabilidade, nem a verdadeira imutabilidade sem a eternidade. A verdadeira caridade exige a pluralidade das pessoas, a verdadeira imutabilidade exige a coeternidade das pessoas.
Devemos observar, no entanto, que assim como a verdadeira caridade exige a pluralidade das pessoas, assim a suma caridade exige a igualdade das pessoas. Nem é cabível que haja verdadeira caridade onde o verdadeiramente amado não for sumamente amado. Não é amor ordenado, porém, aquele no qual se ama sumamente quem não é sumamente amável. Mas na bondade do sumo sábio a chama do amor não arde nem diversamente nem mais fortemente do que o que é ditado pela suma sabedoria. É necessário, portanto, que seja sumamente amado segundo a abundância da suma caridade aquele que for sumamente amável segundo a medida daquele sumo discernimento. Mas a propriedade do amor nos mostra que não será possível existir um sumo amante se o sumamente amado não retribuir o amor. A plenitude da caridade, deste modo, exige que no amor mútuo ambos sejam sumamente amados pelo outro e, por conseqüência, de acordo com a medida do discernimento de que acima falamos, que ambos sejam sumamente amáveis. Onde, portanto, ambos são igualmente amáveis, é necessário que ambos sejam igualmente perfeitos. É necessário, portanto, que ambos sejam igualmente poderosos, igualmente sábios, igualmente bons, igualmente bem-aventurados. Deste modo, nos que se amam mutuamente a suma plenitude do amor exige a suma igualdade da perfeição. Assim como, por conseguinte, na verdadeira divindade a propriedade da caridade exige a pluralidade das pessoas, assim a integridade da mesma caridade na verdadeira pluralidade exige a suma igualdade das pessoas. Para que sejam inteiramente iguais, porém, é necessário que sejam inteiramente semelhantes, pois a semelhança pode ser possuída sem igualdade, mas a igualdade nunca pode ser possuída sem mútua semelhança. Aqueles que, de fato, nada possuem de semelhante na sabedoria, como poderão ser nela iguais? O que, no entanto, digo da sabedoria, o mesmo afirmo da potência e o mesmo encontrarás em todas as demais, se as percorreres singularmente.”
(Ricardo de São Vítor, De Trinitate)

http://www.cristianismo.org.br/r-trintt.htm

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