domingo, 14 de março de 2010

Febronianismo, ancestral da colegialidade


“Sistema político-eclesiástico delineado por Johann Nikolaus von Hontheim, bispo auxiliar de Tréveris, sob o pseudônimo de Justinus Febronius, na obra intitulada “Justini Febronii Juris consulti de Stata Ecclesiæ et legitima potestate Romani Pontificis Liber singularis ad reuniendos dissidentes in religione christianos compositus” (Bullioni apud Guillelmum Evrardi, 1763; na verdade a obra foi publicada por Esslinger em Francoforte-sobre-o-Meno). Tomando por base os princípios galicanos que assimilou do canonista Van Espen enquanto prosseguia seus estudos em Louvain, Hontheim avançou por esse mesmo caminho, apesar de muitas inconsistências, até chegar a um radicalismo que superou em muito o Galicanismo tradicional. Desenvolve em seu trabalho uma teoria de organização eclesiástica fundada na negação da constituição monárquica da Igreja. O objetivo aparente era facilitar a reconciliação dos protestantes com a Igreja por meio da diminuição do poder da Santa Sé.
De acordo com Febronius (cap. I), o poder das chaves foi confiado por Cristo ao corpo inteiro da Igreja, que o possui principaliter et radicaliter, mas o exerce por meio de seus prelados, aos quais apenas a administração desse poder é delegada. Entre estes o papa vem em primeiro lugar, embora mesmo ele esteja subordinado à Igreja como um todo. A divina instituição do primado na igreja é reconhecida (cap. II), mas Febronius defende que sua conexão com a Sé Romana não se funda na autoridade de Cristo e sim na de Pedro e da Igreja, de modo que a Igreja tem o poder de vinculá-lo a outra sé. O poder do papa, portanto, deveria se restringir aos direitos essenciais inerentes ao primado que foram exercidos pela Santa Sé durante os primeiros oito séculos. O papa é o centro ao qual as igrejas individuais devem estar unidas. Ele deve ser mantido a par do que está acontecendo em todos os lugares na Igreja, a fim de que possa exercer o cuidado exigido por seu cargo na preservação da unidade. É seu dever fazer cumprir a observância dos cânones em toda a Igreja; ele tem autoridade de promulgar leis em nome da Igreja, e fazer-se representar por legados que exerçam sua autoridade como primaz. Seu poder, como cabeça de toda a Igreja, contudo, é mais de caráter administrativo e unificador do que um poder de jurisdição. Mas desde o século nono, principalmente através da influência dos Falsos Decretos de Pseudo-Isidoro, a constituição da Igreja passou por uma completa transformação, na qual a autoridade papal foi ampliada além de seus devidos limites (cap. III). Por uma violação da justiça, as questões que costumavam ser da alçada de sínodos provinciais e metropolitanos gradualmente se tornaram reserva da Santa Sé (cap. IV), como por exemplo a condenação de heresias, a confirmação das eleições episcopais, a nomeação de assistentes com o direito de sucessão, a transferência e remoção de bispos, o estabelecimento de novas dioceses, e a construção de sés metropolitanas e primaciais. O papa, cuja infalibilidade é expressamente negada (cap. V), não pode, por sua própria autoridade, sem um concílio ou o consentimento do episcopado inteiro, proferir quaisquer decisões em matéria de fé de obrigação universal. Da mesma forma em matérias de disciplina, ele não pode emitir decretos que afetem o conjunto inteiro dos fiéis; os decretos de um concílio geral têm poder vinculante apenas depois de sua aceitação pelas igrejas individuais. Leis uma vez promulgadas não podem ser alteradas pela vontade e desejo do papa. Também se nega que o papa, pela natureza e autoridade do primado, possa receber petições da Igreja inteira.
De acordo com Febronius, a corte final de apelação na Igreja é o concílio ecumênico (cap. VI), cujas disputas excluem a pretensa constituição monárquica da Igreja. O papa é subordinado ao concílio geral; ele nem tem a autoridade exclusiva de convocá-lo, nem o direito de presidir a suas sessões, e os decretos conciliares não precisam de sua ratificação. Os concílios ecumênicos são de uma necessidade absoluta, pois até mesmo o consentimento da maioria dos bispos a um decreto papal, se dado pelos indivíduos, fora de um concílio, não constitui uma decisão final e irrevogável. Recursos do papa a um concílio geral são justificados em razão da superioridade do concílio sobre o papa. De acordo com a instituição divina do episcopado (cap. VII), todos os bispos têm direitos iguais; eles não recebem seu poder de jurisdição da Santa Sé. Não é da competência do papa exercer funções episcopais ordinárias em outras dioceses além de Roma. As reservas papais quanto à concessão de benefícios, anatas e isenção de ordens religiosas estão, assim, em conflito com a lei primitiva da Igreja, e devem ser abolidas. Tendo demonstrado, como acredita, que a lei eclesiástica em vigor em relação ao poder papal é uma distorção da constituição original da Igreja, devida principalmente aos Falsos Decretos, Febronius exige que a disciplina original, como delineada por ele, seja restaurada em todo lugar (cap. VIII). Sugere então, como meio de realizar essa reforma (cap. IX), que o povo seja convenientemente esclarecido sobre a matéria, que um concílio geral completamente livre se realize, que sínodos nacionais sejam convocados, mas principalmente que os líderes católicos ajam em concerto, com a cooperação e conselho dos bispos, que os príncipes seculares recorram ao Regium Placet para resistir a decretos, que a obediência seja abertamente recusada até um limite legítimo, e finalmente que se recorra à autoridade secular através da Appellatio ab abusu. As últimas medidas revelam a verdadeira tendência dos princípios febronianos; Febronius, quando aparentemente defende uma maior independência e maior autoridade para os bispos, busca apenas tornar as igrejas em vários países menos dependentes da Santa Sé, de modo a facilitar o estabelecimento de igrejas nacionais naqueles estados, e reduzir os bispos à condição na qual seriam meramente criaturas servis do poder civil. Tentativas de executar suas idéias sempre seguiram essas linhas.
O livro foi condenado formalmente a 27 de fevereiro de 1764 por Clemente XIII. Por meio de um Breve de 21 de maio de 1764, o papa requereu do episcopado alemão que suprimisse a obra. Dez prelados, entre eles o Eleitor de Tréveris, aquiesceram. Enquanto isso, nenhuma medida pessoal havia sido tomada contra o autor, que era bem conhecido em Roma. Apesar do banimento da Igreja, o livro, harmonizado com o espírito da época, teve um sucesso tremendo. Uma segunda edição, revista e ampliada, foi publicada já em 1765; foi reimpressa em Veneza e Zurique, e traduções apareceram em alemão, francês, italiano, espanhol e português. Nos últimos três volumes que Hontheim publicou como suplemento à obra original, e numerados de II a IV (Vol. II, Francoforte e Lípsia, 1770; Vol. III, 1772; Vol. IV, Partes 1 e 2, 1773-74), ele a defende, sob o nome de Febronius e vários outros pseudônimos, contra uma série de ataques. Mais tarde publicou um resumo sob o título "Justinus Febronius abbreviatus et emendatus" (Colônia e Francoforte, 1777). Em complemento ao "Judicium academicum" da Universidade de Colônia (1765), refutações apareceram de um grande número de autores católicos, sendo as mais importantes as de Ballerini, "De vi ac ratione primatus Romanorum Pontificum et de ipsorum infallibilitate in definiendis controversiis fidei" (Verona, 1766); Idem, "De potestate ecclesiastica Summorum Pontifleum et Conciliorum generalium liber, una cum vindiciis auctoritatis pontificiæ contra opus Just. Febronii (Verona, 1768; Augsburgo, 1770; nova edição de ambas as obras, Münster na V., 1845, 1847); Zaccaria, "Antifebronio, ossia apologia polemicostorica del primato del Papa, contra la dannata opera di Giust. Febronio" (em 2 volumes, Pesaro, 1767; 2ª edição em 4 volumes, Cesena, 1768-70; tradução alemã de Reichenberger, Augsburgo, 1768); Idem, "Antifebronius vindicatus" (4 volumes, Cesena, 1771-2); Idem, "In tertium Justini Febronii tomum animadversiones Romano-catholicæ" (Roma, 1774); Mamachi, "Epistolæ ad Just. Febronium de ratione regendæ christianæ reipublicæ deque legitima Romani Pontificis potestate" (3 volumes, Roma, 1776-78). Houve, além disso, refutações escritas do ponto de vista protestante, que repudiavam a noção de que a diminuição do poder papal era tudo de que se precisava para trazer os protestantes de volta à união com a Igreja, por exemplo Karl Friedrich Bahrdt, "Dissertatio de eo, an fieri possit, ut sublato Pontificio imperio reconcilientur Dissidentes in religione Christiani" (Lípsia, 1763), e Johann Friedrich Bahrdt, "Do Romana Ecclesia irreconciliabili" (Lípsia, 1767); Karl Gottl. Hofmann, "Programma continens examen regulæ exegeticæ ex Vincentio Lerinensi in Febronio repetitæ" (Wittenberg, 1768).
As primeiras medidas contra o autor foram tomadas por Pio VI, que instou Clemens Wenzeslaus, Eleitor de Tréveris, a convencer Hontheim a recolher a obra. Somente após prolongados esforços e uma retratação que, expressa em termos gerais, foi julgada insatisfatória em Roma, o eleitor enviou a Roma a retratação corrigida de Hontheim (15 de novembro de 1778), comunicada aos cardeais em consistório por Pio VI no dia de Natal. Fica evidente, em seus movimentos subseqüentes, que tal retratação não foi sincera por parte de Hontheim. É inconteste que não renunciou em absoluto a suas idéias, como se percebe em seu "Justini Febronii Jcti. Commentarius in suam Retractationem Pio VI. Pont. Max. Kalendis Nov. anni 1778 submissam" (Francoforte, 1781; edição alemã, Augsburgo, 1781), escrito com o propósito de justificar sua posição diante do público. Enquanto isso, em que pese a proibição, o “Febronius” havia produzido seus efeitos nefastos, não reprimidos pela retratação. As idéias promovidas pela obra, estando em total acordo com as tendências absolutistas dos governantes civis, foram avidamente aceitas pelas cortes católicas e governos da França, Terras-Baixas austríacas, Espanha e Portugal, Veneza, Áustria e Toscana; e receberam posterior desenvolvimento nas mãos de teólogos e canonistas da corte que favoreciam o esquema da igreja nacional. Entre os advogados do febronianismo na Alemanha devem ser mencionados o professor de Tréveris, Franz Anton Haubs, autor de "Themata ex historia ecclesiastica de hierarchia sacra primorum V sæculorum" (Tréveris, 1786) e "Systema primævum de potestate episcopali ejusque applicatio ad episcopalia quædam jura in specie punctationibus I. II. et IV. congressus Emsani exposita" (Tréveris, 1788); e Wilhelm Joseph Castello, autor de "Dissertatio historica de variis causis, queis accidentalis Romani Pontificis potestas successive ampliata fuit" (Tréveris, 1788). Foram os canonistas austríacos, contudo, os que mais contribuíram na composição do novo código de leis regulador das relações entre Igreja e Estado, posto em prática por José II. Especialmente dignos de nota por terem sido concebidos neste espírito foram os manuais de lei canônica prescritos para as universidades austríacas e compilados por Paul Joseph von Riegger, "Institutiones juris ecclesiastici" (4 volumes, Viena, 1768-72; com várias reedições), e Pehem, "Prælectiones in jus ecclesiasticum universum", assim como, de modo mais pronunciado, o trabalho de Johann Valentin Eybel, "Introductia in jus ecclesiasticum Catholicorum" (4 volumes., Viena, 1777; colocado no Index em 1784).
A primeira tentativa de dar aos princípios febronianos uma aplicação prática aconteceu na Alemanha na Conferência de Coblença em 1769, onde os três eleitores eclesiásticos de Mogúncia, Colônia e Tréveris, por meio de seus delegados, e sob as instruções de Hontheim, compilaram uma lista de trinta queixas contra a Sé Romana, em consonância com os princípios do “Febronius” (Gravamina trium Archiepiscoporum Electorum, Moguntinensis, Trevirensis et Coloniensis contra Curiam Apostolicam anno 1769 ad Cæsarem delata; impresso em Le Bret, "Magazin zum Gebrauch der Staaten- und Kirchengeschichte", Pt. VIII, Ulm, 1783, pp. 1-21). De maior significância foi o Congresso de Ems de 1789, no qual os três eleitores eclesiásticos e o Príncipe-Bispo de Salisburgo, imitando o Congresso de Coblença, e em conformidade com os princípios básicos do “Febronius”, fizeram uma nova tentativa de reajustar as relações da igreja alemã com Roma, visando assegurar àquela uma maior medida de independência; eles também fizeram seus representantes elaborar a Pontuação de Ems em vinte e três artigos; sem alcançar, no entanto, nenhum resultado prático. Foi feita uma tentativa de realizar os princípios do “Febronius” em larga escala na Áustria, onde sob José II uma igreja nacional foi estabelecida de acordo com o plano delineado. Esforços no mesmo sentido foram realizados pelo irmão de José, Leopoldo, em seu Grão-Ducado da Toscana. As resoluções adotadas no Sínodo de Pistóia, sob o Bispo Scipio Ricci, seguindo essas linhas, foram repudiadas pela maioria dos bispos do país.”
(Friedrich Lauchert, Febronianism)

Nenhum comentário:

Postar um comentário