segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O milagre da Idade Média


“Através da confusão da decadência do Império Romano desenha-se uma linha histórica marcada pela era patrística, que culmina com Agostinho, e das ruínas do mundo antigo começa a firmar-se a mais extraordinária e misteriosa experiência histórica: a Cristandade ou Civilização Cristã. Esta idade, ou statio da humanidade, realizada por mais de um milênio no ocidente cristão, se alguém quer admirá-la pelo que ela tem de mais admirável, terá de começar por aquilo mesmo de que ela é acusada pelo trepidante e insensato espírito moderno: terá de começar por admirar sua feição realmente estacionária.
Há na vida comum dos povos o mesmo paradoxo que se observa na vida dos corpos. À primeira vista, e às vezes nas últimas vistas dos espíritos fracos, a vida parece ser antes de tudo um movimento, um crescimento e até uma evolução; é preciso aprofundar o estudo para descobrir que o ser vivo, antes de tudo e principalmente, quer permanecer. Toda a intensa atividade do ser vivo converge para o interesse central que é a mantença de uma forma. Assim também mediríamos a mais profunda e intensa vitalidade de um momento histórico por sua profunda e intensa imobilidade. Enquanto os séculos triviais, ou subservientes ao tempo, têm empenho de passar, como se passar fosse seu ofício próprio, a Civilização Cristã da Idade Média pareceu querer estacionar, não como as civilizações adormecidas ou hibernadas, mas como uma experiência única que mais pareceu querer eternizar-se, pareceu querer rejeitar a História, como se todos os feitos de mais de mil anos tivessem o objetivo de deixar multi-luminosamente abertas até o fim do mundo as rosáceas das catedrais feitas de uma composição impressionista e indelével de pedra e luz.
As trevas da Idade Média – disse o judeu Gustave Cohen – são realmente as trevas de nossa ignorância; e creio que Egon Friedel, outro judeu, disse por outras palavras a mesma coisa.
Rompe-se o equilíbrio no seu esplendor. O século XIII, o maior dos séculos, abre-se para o tormentoso e enlouquecido século XIV. E depois do sombrio corredor de loucuras, luxúrias e flagelações, começa a “via modernorum” pelos dois portões engalanados da Renascença e da Reforma.”
(Gustavo Corção, O Século do Nada)

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