"Ninguém até hoje analisou melhor do que Augustin Cochin esse processo de esvaziamento que se operou na ação capilar das “sociétés de pensée” do século XVIII que, para os historiadores superficiais, continua a deter o campeonato do verniz.
“É no declínio do reino de Luís XV que o fenômeno se difunde na França. O Grande Oriente se constitui em 1773. As sociedades secretas e ordens diversas, Escoceses, Iluminados, Swedenborgeanos, Martinistas, Egípcios, Amigos Reunidos, disputam adeptos e correspondentes. Vê-se, enfim, de 1769 a 1780 saírem da terra centenas de pequenas sociedades semidescobertas, autônomas em princípio, como as lojas, mas agindo em comum, como também as lojas, constituídas à semelhança delas e animadas pelo mesmo espírito “patriota” e “filósofo”, que escondia mil objetivos políticos semelhantes sob pretexto oficial de ciência, beneficência ou divertimento. (...) O reino dos salões da maledicência espirituosa e elegante passou. Começa agora o das sociedades do livre-pensamento.” [Augustin Cochin,
La Révolution et la Libre-Pensée, Plon, 1924, pág. XXIX (introduction)]
E adiante Cochin nos apresenta com incisiva configuração o objeto, ou melhor, o não-objeto dessas academias:
“Elas não são apenas agência de notícias, mas sociedades de encorajamento ao patriotismo, tribunais de espírito público. Para atingir esse fim, criam uma república ideal à margem e à imagem da verdadeira, tendo sua constituição, seus magistrados, seu povo, suas honras e suas lutas. Ali se estudam os mesmos problemas políticos, econômicos etc. Ali se trata de agricultura, de arte, de moral, de direito. Debatem-se as questões do dia, julgam-se os homens eminentes. Em resumo, esse pequeno Estado é a imagem exata do grande, com uma só diferença: não é grande, não é real.
Seus cidadãos não têm nem interesse direto, nem responsabilidade engajada nos negócios de que falam. Seus decretos não passam de desejos, ou votos, suas lutas são meras conversações, seus trabalhos são jogos. Nesta cidade das nuvens, faz-se a moral longe da ação, a política longe dos negócios: é a cidade do pensamento.” [Ibid., pág. XXX]
Augustin Cochin grifa o termo
pensée que, melhor do que a tradução portuguesa, exprime o vazio desse processo mental em que a inteligência
se libera – se podemos empregar esse verbo ainda carregado de certa nobreza para exprimir tão degradante capitulação – do conhecimento real ou da reflexão, para comprazer-se numa efervescência verbal que mal recobre a indigência do espírito que à exigente procura da verdade e do bem prefere essa liberdade que relativiza tudo exceto seu próprio vazio. O liberalismo, que na Inglaterra, com Locke, começa numa depravação do conhecimento que todavia ainda se apega à experiência e ao conhecimento, no país que tem a vocação da inteligência haveria de começar e de se estender ainda mais baixo, desprendido da própria experiência e reduzido ao livre jogo de opinião, à
doxia que não faz questão de ser
ortho nem
hetero, coroado ou paramentado este pouco ou quase nada com o termo mágico:
pensée, libre-pensée.
“Há aí um fato geral que é preciso estudar em si mesmo se quisermos compreender os efeitos no início da Revolução. Todas essas Sociedades têm o mesmo caráter: são Sociedades
igualitárias de forma, e filosóficas de objeto, o que hoje chamaríamos Sociedades de
livre-pensamento. Formavam o arcabouço material da “república das letras” e deram à “filosofia” uma consistência, um vigor, um império sobre a opinião sem exemplo até então.
Com efeito, embora ideal, o novo Estado, a “república das letras” ganhou, entre 1760 e a Revolução, uma prodigiosa extensão. (...) Ora, não está aí um fato capital, e desprezado demais, do fim do século XVIII?
Este estado de coisas, a própria existência das Sociedades de Pensamento, da casta de opinião que nelas se desenvolvia, das condições especiais em que punham os autores e o público, teve efeitos muito graves sobre o movimento das idéias: porque impunha de início, e sem apelo, aos autores e ao público, o ponto de vista “intelectual”, irreal.
Nunca talvez a corrente geral das idéias, da literatura, esteve tão afastada das realidades, do contato com as coisas, como nesse fim de século. Basta mencionar filósofos políticos como Rousseau e Mably, historiador como Raynal, economistas como Turgot, Gocernay e a escola do
laisser-faire, homens de letras como La Harpe, Marmontel e Diderot.
É assim que nasce o filosofismo. A prática da
libre-pensée tem graves conseqüências, desde logo, para começar, na ordem intelectual. Os privilegiados esquecem seus princípios; nós poderíamos citar, do mesmo modo, o cientista a esquecer-se da experiência e o religioso a esquecer-se da fé. O fato da experiência, o dogma religioso, tais são com efeito as duas ordens de fato impostas brutalmente de fora à nossa inteligência, e dispostas a deter o impulso da “filosofia”, ou, como se diz hoje, do pensamento livre. A “filosofia” (ou livre-pensamento) derrubará estes entraves à liberdade: a experiência, a tradição, a Fé.” [Ibid., pág. XXXIII]
Sem pretendermos reduzir a este veio todo o sistema fluvial de causas históricas, podemos talvez afiançar que Augustin Cochin, no que se refere à preparação da Revolução Francesa, dá-nos a fortíssima impressão de estar acertando nos pontos mais feridos e doloridos de uma civilização em processo de niilização. E eu diria que é
en creux que se prepara a Revolução. Os “horríveis trabalhadores” vistos por Rimbaud, numa espécie de retrovisor, não erigem, cavam. São os “escavadores do nada” vistos por Bloy. E a maior impostura da História, a ser ultrapassada pelo comunismo, não é uma explosão – é antes uma implosão.”
(Gustavo Corção,
O Século do Nada)
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