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domingo, 24 de abril de 2022

Dylan Thomas: A Mão que Assina o Ato Assassina a Cidade

A mão que assina o ato assassina a cidade.
Cinco dedos reais taxam o ar – é a lei.
Cevam o morticínio e ceifam um país;
Os cinco reis que dão cabo de um rei.

A mão que manda mana de um ombro em declínio,
Cãibras deduram nós nos dedos que a cal cala.
Penas de ganso firmam o assassínio
Que pôs fim a uma fala.

A mão que assina o pacto traz a peste,
Praga e devastação, o gafanhoto e a fome;
Grande é a mão que pesa sobre o homem
Ao rabisco de um nome.

Os cinco reis contam os mortos mas não curam
A crosta da ferida e o rosto já sem cor.
A mão rege a clemência como a outra os céus.
Mãos não têm lágrimas a expor.

Tradução de Augusto de Campos

domingo, 16 de agosto de 2020

Charles Bukowski: Quatro e Meia da Manhã


os barulhos do mundo
com passarinhos vermelhos,
são quatro e meia da
manhã,
são sempre
quatro e meia da manhã,
e eu escuto
meus amigos:
os lixeiros
e os ladrões
e gatos sonhando com
minhocas,
e minhocas sonhando
os ossos
do meu amor,
e eu não posso dormir
e logo vai amanhecer,
os trabalhadores vão se levantar
e eles vão procurar por mim
no estaleiro e dirão:
“ele tá bêbado de novo”,
mas eu estarei adormecido,
finalmente, no meio das garrafas e
da luz do sol,
toda a escuridão acabada,
os braços abertos como
uma cruz,
os passarinhos vermelhos
voando,
voando,
rosas se abrindo no fumo e
como algo esfaqueado
e cicatrizando,
como 40 páginas de um romance ruim,
um sorriso bem na
minha cara de idiota.


Tradução de Jorge Wanderley

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Zbigniew Herbert: Jonas


Jonas filho de Amithai
fugindo de uma missão perigosa
embarcou numa nau que navegava
de Joppen a Tharsis

depois se deram as coisas sabidas
um grande vento uma tempestade
a tripulação joga Jonas nas profundezas
e o mar se aquieta de seu furor
vem nadando o peixe previsto
três dias e três noites
Jonas ora nas entranhas do peixe
que por fim o vomita
na terra seca

o Jonas contemporâneo
afunda como uma pedra na água
se topa com uma baleia
não tem tempo nem de suspirar

salvo
procede mais astutamente
que o seu colega bíblico
pela segunda vez não aceita
a missão perigosa
deixa a barba crescer
e longe do mar
longe de Nínive
sob um nome falso
é comerciante de gado e antiguidades

os agentes do Leviatã
se deixam subornar
não têm o sentido do destino
são funcionários do acaso

num hospital asseado
morre Jonas de câncer
ele mesmo sem saber bem
quem era na verdade

a parábola
aplicada na sua cabeça
se extingue
e o bálsamo da alegoria
não afeta o seu corpo


Tradução de Piotr Kilanowski

terça-feira, 14 de abril de 2020

Elizabeth Bishop: A Arte de Perder

A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subsequente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.


Tradução de Paulo Henriques Brito

sábado, 27 de julho de 2019

Liesel Mueller: Horas Tardias

Nas noites de verão o mundo
se move ao alcance do ouvido
na interestadual com seus silvos
e rugidos, uma ocasional sirene
que nos provoca arrepios.
Às vezes, em noites claras e serenas,
vozes flutuam em nosso quarto,
lunares e fragmentadas,
como se o céu as houvesse liberado
bem antes de nosso nascimento.

No inverno fechamos as janelas
e lemos Tchekhov,
quase a chorar por seu mundo.

Que luxo, sermos tão felizes
que podemos nos afligir
por conta de vidas imaginárias.


https://blogdocastorp.blogspot.com

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Joseph Brodsky: Eu era apenas quanto


Eu era apenas quanto
a tua mão tocasse
ou sobre o que inclinavas,
no breu da noite, a face.

Eu era, embaixo, quanto
notavas turvo, apenas:
traços, no início, vagos;
feições, mais tarde, plenas.

Foste quem logo, ardente,
criou-me a sussurrar,
seja à direita, à esquerda,
a concha auricular.

Foste, a agitar cortinas,
quem, na umidade cava
da boca, introduziu-me
a voz que te chamava.

Eu era cego e, vindo,
sumindo-te de mim,
doaste-me a visão.
Fica um vestígio, assim.

E, assim, criam-se mundos
que são postos de lado,
girando, quando prontos,
presente abandonado.

Em meio, pois, de treva
e luz, calor e frio,
prossegue o nosso globo
seu giro no vazio.


Tradução de Boris Schnaidermann e Nelson Ascher

segunda-feira, 18 de março de 2019

Jorge Luis Borges: Limites


Dos caminhos que estendem o poente
Um (não sei qual) há de ser percorrido
A última vez, por mim, indiferente,
E sem que o adivinhe, submetido

A Quem prefixa onipotentes normas
E uma secreta e rígida medida
Às sombras, imaginações e formas
Que destecem e tecem esta vida.

Se para tudo há término e há compasso
E última vez e nunca mais e olvido,
Quem nos dirá de quem, em nosso espaço,
Sem sabê-lo, nos temos despedido?

Sob o cristal já gris a noite apaga;
Do alto dos livros que um borrão tisnado
Da sombra espalha pela mesa vaga,
Algum deles jamais será folheado.

Há no Sul um portão enferrujado
Com grandes jarras de alvenaria
E tunas que a mim estará vedado
Como se fosse uma litografia.

Para sempre fechaste a porta certa
E há um espelho que te aguarda insano;
A encruzilhada te parece aberta
E a vigília, quadrifonte, Jano.

Entre as memórias sempre existe aquela
Que se perdeu um dia no horizonte;
Não se verão descer àquela fonte
Nem o alvo sol nem a lua amarela.

Não achará tua voz o tom que o persa
Deu à sua língua de aves e de rosas,
Quando ao acaso, ante a luz dispersa,
Queiras dizer as coisas mais preciosas.

E o incessante Ródano e o logo,
Todo o ontem sobre o qual hoje me inclino?
Tão perdido estará como Cartago
Que no fogo e no sal viu o latino.

Creio ouvir na manhã o atarefado
Rumor de uma longínqua multidão.
É tudo o que foi caro e olvidado;
Espaço e tempo e Borges já se vão.


Tradução de Augusto de Campos

domingo, 23 de dezembro de 2018

David Mourão-Ferreira: Ladainha dos Póstumos Natais


Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

William Shakespeare: Soneto LXV

Se a morte predomina na bravura
Do bronze, pedra, terra e imenso mar,
Pode sobreviver a formosura,
Tendo da flor a força a devastar?
Como pode o aroma do verão
Deter o forte assédio destes dias,
Se portas de aço e duras rochas não
Podem vencer do Tempo a tirania?
Onde ocultar - meditação atroz -
O ouro que o Tempo quer em sua arca?
Que mão pode deter seu pé veloz,
Ou que beleza o Tempo não demarca?
Nenhuma! A menos que este meu amor
Em negra tinta guarde o seu fulgor.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Luis de Góngora y Argote: Enquanto, ao Competir com Teu Cabelo

Enquanto, ao competir com teu cabelo,
ouro brunido ao sol deslumbra em vão;
enquanto com desprezo ao rés-do-chão
olha tua alva frente o lírio belo;

enquanto atrás do lábio, por querê-lo,
mais olhos que da rosa agora vão;
e enquanto triunfa com afetação
do luzente cristal teu ser de gelo;

goza gelo, cabelo, lábio e frente,
antes que esta que foi hora dourada
– ouro, lírio, rosal, cristal luzente –

não só em prata ou flor estiolada
se torne, mas tu e tudo juntamente
em terra, em fumo, em pó, em sombra, em nada.


Tradução de Érico Nogueira

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Marina Tsvetaeva: Insinuar-se


Talvez a melhor vitória seja
sobre o tempo e a atração,
passar sem deixar ondas,
passar sem deixar sombras

nas paredes...

Talvez renunciando
vencer? Quem do espelho se apaga?
Tal como Lermontov no Cáucaso
entrar sem inquietude nas fragas.

É talvez a melhor diversão
com os dedos de Sebastian Bach
do órgão provocar o som?
Despedaçar-se sem deixar

cinzas para a urna...

Talvez por engano
vencer? De toda latitude dar-se alta?
Assim no tempo tal oceano
entrar sem inquietar as águas...

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Paul Celan: Distantes


Olho no olho, no frescor,
comecemos também algo:
juntos
respiremos o véu
que nos esconde um do outro
quando a noite se dispõe a medir
a distância que ainda existe
entre cada forma que ele adota
e cada forma
que ele nos deu.


https://copodemar.wordpress.com

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Jorge de Sena: Fidelidade


Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.

quinta-feira, 29 de março de 2018

Paul Celan: Fuga da Morte


Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Um homem mora na casa bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para os seus Mastins
assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos agora toquem para dançar

Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
Um homem mora na casa e bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado

Ele brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem
agarra a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis
cravem mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar

Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado

Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha
nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos
a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
ele atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da Alemanha

teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita


Tradução Modesto Carone

sexta-feira, 9 de março de 2018

Czesław Miłosz: Depois da Penitência


A hipótese da ressurreição,
Que um cientista deduziu da mecânica quântica,
Prevê o retorno aos lugares e pessoas de que gostamos
Em um ou dois bilhões de anos terrenos
(O que no além-do-tempo é igual a um instante).
Estou contente por estar vivo quando se cumpre a profecia
Sobre a possível aliança entre a ciência e a religião,
Preparada por Einstein, Planck e Bohr.
Não levo muito a sério as fantasias científicas,
Embora respeite as fórmulas e gráficos.
Pedro Apóstolo foi mais conciso
Dizendo: A p o k a t a s t a s i s p a n t o n,
A renovação de todas as coisas.
Porém isso ajuda: poder imaginar
Que cada um de nós, em vez da vida, tem um código
Guardado num depósito para a eternidade, o supercomputador do universo.
Nos desmanchamos em podridão, cinzas, microadubo,
Mas aquela cifra, ou seja, a essência, permanece
E espera, até que por fim se reveste de corpo.
E se esta nova corporeidade
Precisa ser lavada do mal e da doença,
A ideia do Purgatório também entra na equação.
Não é outra coisa que os fiéis numa igreja de aldeia
Repetem em coro, pedindo a vida eterna.
E eu com eles. Sem entender
Quem serei, quando acordar depois da penitência.


Tradução de Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Czesław Miłosz: Œconomia Divina


Não achei que viveria momento tão singular.
Quando o Deus dos trovões e cumes rochosos,
O Senhor dos Exércitos, Kyrios Sabaoth,
Humilhasse mais duramente os homens,
Permitindo que agissem como bem quisessem,
Deixando-lhes as conclusões e não dizendo nada.
O espetáculo não lembrava, com efeito,
O ciclo de séculos das tragédias da realeza.
Estradas sobre vigas de concreto, cidades de vidro e ferro fundido,
Aeroportos inda maiores que territórios tribais
De súbito careceram de fundamento e ruíram.
Não em sonho, mas à luz do dia, porque amputados de si
Duravam como só dura o que não deveria durar.
Das árvores, pedras do campo, até dos limões na mesa
Fugiu toda a matéria e seu espectro
Não era mais que o vazio, fumaça numa película.
Deserdado dos objetos pululava o espaço.
Toda parte era parte alguma e parte alguma, toda parte.
As letras dos livros se apagavam, vacilavam e sumiam.
A mão não lograva traçar o signo da palmeira, o signo do rio, nem o signo do íbis.
Num alarido de muitas línguas era anunciada a morte da palavra.
O lamento era proibido, porque só lamentava a si mesmo.
Acometidas de inexplicável tormento as pessoas
Despiam-se nas praças, para que sua nudez intimasse o juízo.
Mas em vão ansiavam por horror, piedade e fúria.
Pouco fundamentados
Eram o trabalho e o descanso
E o rosto e os cabelos e os quadris
E toda e qualquer existência.


Tradução de Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Jorge Manrique: Oh Mundo, pois que Nos Matas‏


Oh mundo, pois que nos matas,
fosse a vida que existe
toda vida!
Mas segundo cá nos tratas,
o melhor e menos triste
é a partida
de tua vida, tão coberta
de tristezas e de dores,
despovoada,
de bens sempre tão deserta,
de prazeres e dulçores
despojada.

É teu começo choroso,
tua saída sempre amarga
e nunca amena;
o do meio, trabalhoso,
e a quem dás vida mais larga
lhe dás pena.
Assim os bens mal morrendo
e com suor se procuram
e no-los dás;
os males chegam correndo
depois de chegados duram
muito mais.


Tradução de Rubem Amaral Jr.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Marina Tsvetaeva: Andas, Pareces Comigo


Andas, pareces comigo,
Com os olhos abaixados.
Eu também os abaixava!
Passante, queira parar!

Leia – deixe seu buquê:
Botão de ouro, papoula –
Que me chamavam Marina
E quantos anos eu tinha.

Não ache que é um túmulo,
Que surgirei, assombrando…
Eu amei demais sozinha
Ria, quando não podia!

Sangue fluía na pele
E meus cachos enrolavam…
Eu, passante, também fui!
Passante, queira parar!

Pegue um galho selvagem
E depois uma amora:
Morango de cemitério
Não há maior nem mais doce.

Só não fique aí sombrio,
Cabeça baixa no peito.
Em mim pense levemente,
E me esqueça levemente.

Como luz te ilumina!
Coberto de pó de ouro…
– Que não te deixe confuso
Minha voz que vem da terra.


Tradução de Helder da Rocha

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Anna Akhmátova: A Mulher de Lot

E o homem justo seguiu o enviado de Deus,
alto e brilhante, pelas negras montanhas.
Mas a angústia falava bem alto à sua mulher:
"Ainda não é tarde demais; ainda dá tempo de olhar
as rubras torres da tua Sodoma natal,
a praça onde cantavas, o pátio onde fiavas,
as janelas vazias da casa elevada
onde destes filhos ao homem amado".
Ela olhou e - paralisada pela dor mortal -,
seus olhos nada mais puderam ver.
E converte-se o corpo em transparente sal
e os ágeis pés no chão enraizaram-se.
Quem há de chorar por essa mulher?
Não é insignificante demais para que a lamentem?
E, no entanto, meu coração nunca esquecerá
quem deu a própria vida por um único olhar.


Tradução de Lauro Machado Coelho

sábado, 7 de outubro de 2017

Cesare Pavese: Virá a Morte e Terá os Teus Olhos

Virá a morte e terá os teus olhos
esta morte que nos acompanha
de manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês toda manhã
quando sozinha te aproximas
ao espelho. Ó querida esperança,
nesse dia saberemos também nós
que és a vida e és o nada.
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver no espelho
ressurgir um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Desceremos no remoinho mudos.


Tradução de Carlos Leite