terça-feira, 9 de outubro de 2018

As três dificuldades dos intelectuais

“Identifico três tipos de dificuldade nos intelectuais que têm impedido praticamente todos eles de fazerem análises aceitáveis da realidade. Não me refiro a dificuldades relativas à aquisição de conhecimento mas a algo que está para além disso.
1. Sinceridade
Esta é uma dificuldade permanente na vida intelectual de todos os tempos. A sinceridade não depende apenas de uma decisão ou disposição mas é uma conquista que depende do aprofundamento da auto-consciência e do domínio da linguagem. Isto não está apenas nas mãos do indivíduo, porque se ele nasceu numa época ou num meio em que a linguagem é pobre, então, o seu nível de sinceridade é baixo porque ele não tem à sua disposição os instrumentos que lhe permitam descrever os seus estados internos ou as situações que pretende analisar.
2. Mentira e falsificação
Quando surgiram os instrumentos para conseguir fazer uma descrição mais sincera da realidade, ao mesmo tempo esses instrumentos podiam ser usados para a falsificação. De certa forma, este é o tema do ‘Górgias’, de Platão. O problema voltou a ressurgir em Roma e depois na Renascença, em que o mundo passou a ser visto como um teatro, mas algo muito pior estava ainda por vir com a emergência do discurso ideológico, sobretudo a partir do século XIX. A ideologia é uma elaboração de um discurso que oferece uma cosmovisão que dá respostas a todas as questões. O intelectual que adere a uma ideologia tem o seu trabalho imensamente facilitado (e fica logo integrado numa rede de influências), mas tem de negar sistematicamente a realidade, pelo menos naquilo que esta contraria a ideologia.
O problema não afecta somente aqueles que aderem formalmente a uma ideologia, porque pedaços das várias cosmovisões ideológicas ficam espalhados na cultura e aparecem como mero “bom-senso”, que nós usamos como lentes para enxergar a realidade sem perceber que estamos a ver tudo distorcido.
3. Coragem intelectual
De certa forma, a coragem intelectual (que é a coragem propriamente humana) é também um problema “de sempre”, já identificado por Platão como uma virtude necessária para manter a justiça e a verdade. Contudo, o problema agudizou-se muito nas últimas décadas e sobretudo nos anos mais recentes. Para distinguir a problemática da coragem intelectual dos pontos anteriores (que também têm implícita a coragem), vou relacionar este ponto com as dificuldades em enfrentar os problemas concretos e próprios da época em que o intelectual vive.
Praticamente todos os intelectuais de hoje mostram duas deficiências gravíssimas: apenas falam daquilo que já faz parte do debate académico ou do “debate público” instituído pelos jornalistas; e nunca levam em conta as implicações psicológicas contidas em todas as grandes manobras políticas e ‘sociais’ das últimas décadas.
No primeiro caso, o intelectual orgulhoso do seu diploma teme ser repudiado pela academia ou de aparecer como um “estranho” face à opinião pública fabricada. Pouco interessa que esse intelectual mostre competência em temas eruditos ou que seja cristão e conservador, porque a sua omissão vai alimentar a espiral do silêncio e empobrecer mortalmente a vida cultural. A estratégia dos revolucionários em democracia conta precisamente com a existência destes intelectuais “moderados” – que na realidade são cobardes – para validar os temas que eles mesmo colocam em pauta e que nunca deviam ter sido aceites como legítimos.
A falta de acuidade psicológica de quase todos os intelectuais é realmente confrangedora. Só um exemplo: na questão do “Brexit” as discussões andam à volta de economia ou de soberania, contudo, a principal efeito da permanência na União Europeia foi uma alteração sem precedentes na psicologia das populações e dos próprios intelectuais (a tão propalada riqueza cultural da Europa está seriamente ameaçada porque os povos perderam muito rapidamente identidade e passaram a reagir de forma assustadoramente uniforme e sempre de acordo com o politicamente correcto).
Existe forma de obter esta acuidade psicológica, mas para isso os intelectuais teriam de sair da sua “zona de conforto”, como se costuma dizer hoje. A auto-consciência é trabalhada em várias áreas – confissão, práticas ascéticas e místicas, artes marciais, alguns tipos de psicoterapia – mas há também riscos, porque nestas coisas há muitos charlatães e gente até perigosa. Mas aquele que quer ser um intelectual de verdade é como se estivesse tentando pertencer a uma elite guerreira, não é para ser carreirista ou algo do género, portanto, é alguém que tem que se arriscar a ir a onde outros não se atrevem.”
(Mário Chainho, As Três Dificuldades dos Intelectuais, e Uma Nota sobre Nacionalismo)

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