segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

O nome da rosa é politeísmo


“Não, não é um título estrambótico, mas a conclusão de um longo debate interior. O leitor recordará o comentário que dediquei nestas páginas ao romance de Umberto Eco O nome da rosa, afirmando ao final de meu comentário que o segredo do livro estava encerrado na última frase, que rezava assim: “Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus”. Que é, na realidade, todo um programa nominalista. Vamos ver, no artigo de hoje, o que é o nominalismo e que relação têm, por um lado, o romance de Umberto Eco e, por outro, a frase citada mais acima, com algumas das tendências mais ocultas e tenazes da luta filosófica e ideológica atuais e com a intenção mesma do romance do autor italiano. De nossa matizada inquisição dependerá, pois, na medida em que conseguirei levá-la como é devido a cabo, o esclarecimento de algumas idéias e de alguns ideais que tanto dano estão fazendo ao homem contemporâneo e sobretudo ao homem cristão, meta e vítima destas tendências. E pergunto-me ingenuamente: Quem tem posto de relevo até agora, no marco da crítica católica espanhola, o sentido polêmico de O nome da rosa? Ninguém, et pour cause, porque dito silêncio tem uma causa, quero dizer a colaboração entre a rosa e a coisa, por assim dizê-lo, como logo veremos. Então já não há mais teólogos em Salamanca?
A frase citada por Eco significa em português o seguinte: “Permanece a rosa original com o nome, depois, só teremos nomes”. Isto quer dizer, em um sentido nominalista, que a palavra rosa não teria nenhum sentido se as rosas, enquanto realidades, deixassem de existir. Ou seja: É possível falar de idéias gerais acima das coisas que elas representam na terra, ou só há estas coisas visíveis e palpáveis? Existem, sim, conceitos universais ou só os objetos que dão conta deles (nominais ou reais)? Se a rosa em si desaparece, também desaparece o nome da rosa. A polêmica é muito antiga e se encontra, como quase todos os problemas que agitam as filosofias, em Platão e Aristóteles, idealista o primeiro, nominalista ou realista o segundo. Desde o ponto de vista científico, isto tem também seu peso e possibilidade de definição, no mesmo sentido esboçado mais acima, já que “Nominales sunt philosophae qui scientias non de rebus universalibus, sed de rerum communibus vocabulis haberi existimant”. Não de rebus ou coisas universais, mas de rerum ou de coisas comuns que contradizem tanto o abstrato como o geral. Os universais, que apaixonam os platônicos medievais, passando por Santo Agostinho a Boécio (embora este trate de reconciliar as duas tendências e de encontrar uma justa síntese entre seus dois mestres, Platão e Aristóteles) até Abelardo, o qual, no século XII, já apresenta o tema nominalista, no nome da rosa, quero dizer contra os universais. Impressionismo e expressionismo, figurativo e abstrato, na pintura contemporânea, cospuscular e ondulatório, monoteísmo e politeísmo, continuam apresentando diante de nossos olhos o antigo e apaixonante tema medieval, e digo apaixonante porque o polemos que agitou os antigos dá conta perfeitamente da dualidade interior que nos compõe e define e que tem sido posta em nós desde os começos e esclarecida desde o ponto de vista lógico, por Platão e seu discípulo, seu irmão e inimigo ao mesmo tempo.
Umberto Eco se reconhece como nominalista não só na frase final de seu livro, como também nas considerações que estruturam pouco a pouco sua atitude, desde as primeiras páginas até as últimas. Por exemplo: "A ciência tem a ver com as proposições e os seus termos, e os termos indicam coisas singulares" (ver pág. 210 da edição italiana). Com base em sua experiência, como continua afirmando o personagem principal do romance, não há leis universais, já que se estas existissem, implicando "uma determinada ordem das coisas", isto significaria que Deus seria prisioneiro delas, quando sabemos que Deus é um ser livre e que se não fosse assim, o mundo teria outro aspecto. Bastaria dizer aqui que Deus é livre até o ponto em que criou Ele mesmo a ordem e suas leis, e que falar de um Deus prisioneiro de suas próprias leis não tem sentido. Mas não quero entrar aqui em disquisições filosóficas.
Demos um salto até nós mesmos para entrar diretamente no tema que nos preocupa e implica. O nominalismo está nos alicerces mesmos do materialismo contemporâneo, cujo pai direto foi David Hume, que nega ao homem e a sua possibilidade de conhecimento qualquer capacidade ou poder metaempírico. Abaixo a idéia, viva a impressão! Conhecemos sobre bases unicamente psicológicas, já que tomamos contato com a realidade através dos cinco sentidos. Nem sequer conceitos como tempo e espaço existem por si, mas só como impressões que se sucedem uma à outra, em um caso, e como impressões que coexistem, no outro. O tempo e o espaço não são mais que puros nomes, como o da rosa ou como o de Deus. A mesma inclinação religiosa do ser humano não brota de sua técnica racional de enfocar o mundo, e tampouco de seus a priori ou a posteriori de tipo metafísico, mas, como disse Hume, "das esperanças e temores que continuamente agitam a alma humana". O homem é, pois, naturalmente politeísta, segundo esta interpretação nominalista, baseada em uma consideração psicológica que elimina os universais e se baseia unicamente sobre o que Hume considera então como "a natureza humana".
Este inciso filosófico nos obriga a retroceder até Francis Bacon e Thomas Hobbes, fundadores, o primeiro, do método experimental, de origem aristotélica também, e, o segundo, de um nominalismo político cujo monumento espantoso tem um nome muito afastado do da rosa, mas em estreita conexão com o mesmo: Leviatã. Sob esta perspectiva, já que não existe senão o individual e concreto, separados de qualquer abstração e categoria, temos forçosamente que ter em conta as características e exigências de cada indivíduo à parte, único conteúdo do real. O ser enquanto indivíduo sai completamente do conceito de bem, por exemplo, pura invenção metafísica, puro nome. O homem concreto não é mais que um complexo de necessidades particulares e positivas, de maneira que a única coisa que interessa, neste sentido nominalista, é o prazer de dita concretude, o prazer que mais tarde encontraremos na base do freudismo e de certo socialismo dos direitos (humanos, naturalmente) que transformam o homem em um tipo de animal individual, concretamente singularizado em um destino sem meta, já que o prazer não pode constituir-se em uma finalidade. Como existem então realidades tão efetivas e tão ligadas ao homem e à abstração como são os Estados? Problema que is nominalistas não souberam resolver ou, quando o fizeram, desmascararam sua falta absoluta de realismo, o que os obrigou a transformar a sociedade e o Estado em obrigações torturadoras, como em toda utopia. A utopia de Hobbes se chama Leviatã e é o nome do Estado moderno, em cujo marco o cidadão está obrigado a assinar um contrato social e renunciar a suas liberdades em nome de uma liberdade geral, que é pura abstração antinominalista e que está na base de todo tipo de totalitarismo. Sua força é a do direito, evidentemente, mas de um direito que ele mesmo se outorga, já que resulta ser, depois da assinatura, também abstrata e antinominalista, do contrato social, o único indivíduo (o Big Brother de Orwell), o grande indivíduo cuja vontade substitui qualquer lei moral, religiosa, política, social ou jurídica. A paz e a guerra, o bem-estar e a miséria dos assinantes estão em suas mãos absolutistas. As tendências politeístas do homem psicológico, tal como Hume o enfocará através de seu mundo fenomênico (cada esperança e cada medo com seu deus, como nas sociedades primitivas) estão já previstas e resolvidas dentro da visão sensorialista e antiespiritualista de Hobbes, cuja sociedade não pode ter outro aspecto senão o do horrível Leviatã que é o nome de uma rosa contemporânea ("nomina nuda tenemus") encarnada no Estado soviético ou na sociedade politeísta, separada de toda abstração metafísica ou religiosa, e que seria o Estado do futuro, pior todavia, já que da rosa prístina não resta nem sequer o nome. Se perecem os homens, realidades concretas dos nominalistas, perecem também as sociedades. Se o homem não é liberdade, senão liberdade entregue ao Leviatã, será difícil buscar o homem na geografia desta terra, no espaço concreto de Hume. Não permanecerá nem sequer seu nome. É o gulag, onde nem a realidade concreta, o homem quantitativo, nem seu nome representam algo, senão uma matéria bruta moldada em nome da utopia. E por quem? é a pergunta que proponho a Umberto Eco. Quem serão os que, em nome do futuro Leviatã, acabarão conosco? E, naturalmente, consigo mesmos, já que, apesar do nominalismo, o homem é uma espécie, uma categoria, uma idéia, que não pode ser cortada em dois sem que desapareça tanto o objeto submetido a esta operação, como a faca, tornada inútil depois da operação que realizou.
Livro terrível o de Umberto Eco, não só anticatólico, como eu já afirmava aqui, faz algumas semanas, mas decididamente anti-humano, como todo politeísmo nominalista e leviatânico."
(Vintila Horia, El Nombre de la Rosa Es Politeismo)