sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A situação dos cristãos na Terra Santa


“Ao longo dos séculos, o Islão político não se mostrou muito afável com as comunidades cristãs nativas sob o seu regime. Episódios de tolerância à parte – que aliás não são raros –, o tratamento que sistematicamente se dá aos cristãos e aos judeus — ambos incluídos na categoria islâmica de dhimmi e tidos como cidadãos de segunda classe — é abusivo e discriminatório sob qualquer ponto de vista. Embora em alguns aspectos os cristãos e judeus tenham melhor sorte sob os regimes islâmicos do que, digamos, os judeus e muçulmanos no tempo da Reconquista espanhola em fins do século XV, os efeitos a longo prazo da dhimmização revelaram-se mais sérios.
Sob o Islão, os dhimmi são proibidos de construir novos lugares de culto ou reformar os já existentes; as suas mulheres podem casar-se com muçulmanos, mas o contrário é estritamente proibido; os dhimmi não têm direitos políticos; e cada comunidade dhimmi, assim como cada uma das pessoas que a constituem, é forçada a viver num estado de perpétua humilhação aos olhos da comunidade predominante.
Ou seja, essas medidas são claramente um método para a liquidação gradual das comunidades minoritárias. Com a notável exceção dos cristãos no Líbano, as comunidades cristãs do Oriente Próximo exibem hoje as cicatrizes de séculos de rebaixamento e de marginalização. São relíquias da devastação provocada por um sistema que, apesar de ter sido tecnicamente abolido nos Estados árabes modernos, continua no nível das políticas oficiais e no das atitudes e práticas populares. Um exemplo de classe dhimmi são os cristãos da Terra Santa — os cristãos palestinos — e seus complexos são um sintoma do que isso representa.
Fontes confiáveis apontam que o número de cristãos de todas as denominações em Israel é hoje de 150.000, incluindo Jerusalém, a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e os territórios vizinhos. Os cristãos de Jerusalém são aproximadamente sete mil. Entre 1947 e 1967, a população cristã na Cidade Velha e redondezas caiu de quarenta e cinco para vinte e oito mil pessoas: uma tendência que aponta claramente para a eliminação da população cristã residual da cidade. Norman Horner, no seu Guia das Igrejas Cristãs no Oriente Médio, escreve: “Durante certo tempo, a emigração ameaçou fazer com que Jerusalém, em vez de ser a sede de uma comunidade cristã viva, se transformasse num simples museu de história cristã”.
Palestinos instruídos referem-se muitas vezes a uma crise de identidade entre os cristãos de seu povo: não sendo nem judeus nem muçulmanos, sentem-se rejeitados pelas duas comunidades maiores. Por serem palestinos, nunca poderão fazer parte de Israel, apesar de alguns até terem passaporte israelense; e por serem cristãos árabes, não é fácil a sua integração com o mundo cristão mais amplo. Acrescente-se a esses fatores as dificuldades econômicas que muitos deles têm de enfrentar (confiscos de terras, arbitrariedades nas contratações ou demissões), as dificuldades de acesso à educação superior (só 5 dos alunos de universidades israelenses são árabes) e o crescente fundamentalismo judeu, muçulmano e de certas comunidades evangélicas, e se verá que a pressão no sentido da emigração é bem palpável. Também não ajuda o fato de a maior denominação cristã — a Igreja Ortodoxa Oriental — ser formada por pessoas de etnia grega, criando assim uma barreira lingüística e cultural entre suas autoridades e as congregações árabes.
De um modo geral, os cristãos palestinos vêem na causa nacionalista um âmbito de convivência com seus conterrâneos muçulmanos. Esse ponto de intersecção é com excessiva freqüência idealizado e transformado num mito, graças à incansável insistência de certos intelectuais e clérigos em afirmar que sempre prevaleceu a harmonia entre cristãos e muçulmanos na Palestina. O bispo anglicano de Jerusalém, Riyad Abu ’Assal, disse-me certa vez em tom enfático: “Em toda a História da Palestina jamais se viu conflito algum entre cristãos e muçulmanos”. Hanan Ashrawi declarou no seu livro This Side of Peace (Deste lado da paz) que, quando era criança, não notava nenhuma diferença entre cristãos e muçulmanos: “Não sabíamos quem era o quê, e isso não tinha a menor importância”.
Esse sentimento é motivado principalmente pelo desejo de uma posição unificada para fazer frente a Israel, mas além disso tem as suas raízes num profundo estado psicológico dhimmi: a ânsia por encontrar — ou, se for preciso, fabricar ou inventar — uma causa comum com a comunidade dominante, a fim de diluir as diferenças religiosas existentes e assim talvez suavizar o peso da inevitável discriminação imposta pelo Islão político. A história da Cristandade palestina é em sua maior parte igual à da Cristandade dhimmi em todo o Crescente.
Antes de Israel entrar em cena, o problema da subserviência dhimmi ainda existia para os cristãos palestinos. E mesmo com Israel sendo visto e proclamado como inimigo tanto por cristãos como por muçulmanos, o espectro da subjugação dos dhimmi continua à espreita, logo abaixo da superfície. Os palestinos, especialmente os cristãos, ficam muito agitados e adotam uma atitude defensiva quando confrontados com relatos de perseguição de cristãos por muçulmanos palestinos. A sua reação reflexa é desconsiderar esses relatos, afirmando que são mentiras inventadas pela campanha de contra-informação israelense.
A Cristandade palestina difere do resto da Cristandade do Oriente Médio por estar marcada pela obsessão com o conflito árabe-israelense e com a questão palestina. Os cristãos da Palestina sustentam a improvável suposição de que toda perseguição contra os cristãos na região seria suavizada, quando não totalmente suprimida, se a questão palestina fosse resolvida. Essa opinião se baseia no mito de que tudo corria bem entre cristãos e muçulmanos antes da chegada de Israel.
Há dois grandes problemas nessa interpretação dos cristãos palestinos. O primeiro é que ela não leva em conta as sutis complexidades e as tortuosas facetas de uma região como o Oriente Médio. Uma vez mais, remover Israel da equação e satisfazer os mais ambiciosos sonhos palestinos não eliminaria a violência contra os não muçulmanos que é inerente ao Islão político. O segundo problema é que ela não é compartilhada pela vasta maioria dos cristãos da região, quer sejam dhimmi quer livres. Os cristãos egípcios e libaneses, as maiores e mais significativas comunidades cristãs do mundo árabe, não compartilham as mesmas ansiedades dos cristãos palestinos. E não se iludem pensando que tudo ficará bem se o problema palestino for resolvido.
Os cristãos palestinos diferem das outras comunidades cristãs também pelo seu profundo desconforto quanto ao Velho Testamento. Eles não recitam certos salmos nem lêem certas passagens do Velho Testamento por causa da sua imediata associação com o atual Estado de Israel e com o confronto árabe-israelense. Essa triste situação equivale a uma versão moderna da heresia de Marcião (ca. 90-165 d.C.), que rejeitava qualquer referência ao Antigo Testamento e insistia em que os cristãos deviam se ater exclusivamente aos Evangelhos e às Epístolas de São Paulo.
Movidos por idéias parecidas, certos cristãos palestinos extirparam ou adulteraram, nos seus textos litúrgicos, as referências específicas ao Velho Testamento e ao Povo de Israel. Esses marcionitas contemporâneos transpuseram as suas tragédias políticas para o âmbito da fé religiosa, do que resultou uma grande confusão doutrinal. Essa desorientação e esse afastamento desnecessário do Velho Testamento de modo algum deve ser estimulado: para os cristãos palestinos, a última coisa de que a sua fé ancestral — tão precária e traumatizada — precisa neste momento é ser oprimida pela heresia marcionita.
Qualquer que seja o ângulo sob o qual a vejamos (exceto no decisivo tema dos dhimmi), a Cristandade palestina não é representativa das mais amplas comunidades cristãs dispersas pelo Oriente Médio. Os cristãos da Terra Santa estão sujeitos a uma intensa perturbação que não afeta os seus irmãos dos países vizinhos. Talvez não haja remédio para essa perturbação, nem para as ansiedades e dúvidas sobre a sua identidade, sobre terem ou não um futuro, e — caso o tenham — sobre como e com quem ele se dará.
Tal como outros, tenho ponderado essas questões por anos a fio, e são poucas as respostas que surgem. Procuro nutrir a esperança de que no seio da Cristandade palestina surja uma compreensão que é exatamente o oposto da heresia marcionita: uma teologia e uma visão moral que reconheçam os judeus como irmãos mais velhos na fé de Abraão e lhes ofereçam livremente a terra. Com base nisso, judeus e cristãos poderiam construir um relacionamento pacífico e sólido em benefício mútuo. Para Deus tudo é possível, e não devemos desesperar de que isso aconteça. Enquanto isso, a sombria perspectiva é a de que logo mais não haverá nenhum cristão na Terra que todos os cristãos chamam de Santa.”
(Habib C. Malik, Christians in the Land Called Holy)

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