quarta-feira, 5 de abril de 2017

Ceia anglicana em São Pedro

“Quando dentro de poucos dias, em rigorosa consonância com os festejos pelo quarto aniversário da eleição de Francisco, a basílica de São Pedro se veja em transe de suportar a celebração, em seu altar-mor, das vésperas anglicanas por celebrantes isentos de autêntica dignidade sacerdotal, se estará cumprindo um novo marco naquele outro marco que já constitui este ímpar pontificado. Concretamente, se voltará a tentar a Deus no interior mesmo do templo maior de nossa fé, como faz mais de um ano se fez em sua fachada exterior, ao projetar sobre a mesma imagens ecológico-simiescas no mesmo dia da Imaculada Conceição. Ambos fatos merecem um lugar no trio que bem poderia completar-se com a missa satânica celebrada em 1963 na capela paulina no Vaticano, segundo conhecido testemunho de Malachi Martin em seu romance Windswept house.
Trata-se de um sacrilégio, até a data, único em seu gênero. Pois se as visitas a edifícios luteranos da parte de Bento XVI e do próprio Francisco afetavam a potestade, uma tão factível como estrábica interpretação das mesmas (em tempos, como os nossos, de fé desfalecente) podia crer infligida a mancha à pessoa apenas, falível como todas, e não ao cargo; mas a concessão do altar-mor da Igreja, com a sagrada hóstia oculta no tabernáculo sendo ipso facto vilipendiada, já comporta uma profanação inequívoca.
Como já não serve para nada o Magistério, a bula Apostolicae curae de Leão XIII poderá ser entregue às chamas sem escrúpulos, toda vez que aquele papa define ali que “com o íntimo defeito de forma” do ritual de ordenações anglicano, reformado em 1552 após vários anos de ruptura com Roma, “está unida a falta de intenção que se requer igualmente de necessidade para que haja sacramento”, motivo pelo qual, de conformidade com os decretos emanados pelos pontífices precedentes acerca do assunto, “pronunciamos e declaramos que as ordenações feitas em rito anglicano têm sido e são absolutamente inválidas e totalmente nulas” (Dz. 1966). De nada vale, pois, o posterior intento anglicano de recuperar o velho formulário, mais de cem anos depois do cerceamento do primitivo: já então se havia perdido a sucessão apostólica, o que confere às vésperas anglicanas em Roma um valor intrínseco não maior que se lhes cedesse São Pedro para o five o'clock tea, não sem o óbvio efeito sacrílego.
Deste modo, o que se chamou a “evolução homogênea do dogma”, isto é, a explicitação progressiva no tempo do conteúdo implícito na Revelação, veio a ser substituído pela “contra-afirmação heterogênea da doxa”, da mera opinião humana, flutuante e reversível, como para submergir definitivamente toda clareza doutrinal na névoa da ignorância ou na treva das inteligências ofuscadas pelo orgulho. Porque – valha tê-lo sempre presente – a heresia pertence ao âmbito das opiniões, das reservas mentais para com a verdade proposta a nosso assentimento fiel. O que o “livre exame” consagra é a disposição selecionadora do conteúdo da fé, desnaturalizando-a em sua mesma raiz ao pretender arraigá-la na vontade, sendo a fé – como é – uma virtude intelectual. Tudo que provenha desta primeira defecção perpetuará, pois, o erro e o dano.
A exaltação da variedade anárquica, da pluralidade desbocada e o caos que o protestantismo exibe desde seu berço, será caráter logo estendido ao pensamento e à ação – à história moderna, digamos, dimanada daquela violenta ruptura religiosa. O trágico olvido de que só do uno procede o múltiplo impôs um fardo sobre toda a realidade humana, acabando com a instituição monárquica, com as tradições locais e ainda com a família e o matrimônio, âmbito privilegiado da unidade e princípio de sua consolidação civil. É o horror que o caos suscita na consciência humana que inspirou finalmente aos ideólogos a recorrência a uma unidade espúria através do totalitarismo, produto tipicamente moderno capaz de dar acabada conta deste desgraçado processo de atomização e reintegração falaz de cunho voluntarista. Da desintegração extrema à leviatanização: com tal fórmula poderiam sintetizar-se cinco séculos de história moderna.
Unus Dominus, una fides, unum baptisma: na Igreja modernizada ou modernista, da precisa fórmula paulina veio, pois, a escamotear-se o termo do meio, com a finalidade de propiciar uma nova unidade fundada sobre outros princípios, outras opiniões, heterodoxias. “Temos o mesmo batismo, temos que caminhar juntos”, é o galanteio sussurrado nos ouvidos dos protestantes, com crassa omissão de que não temos a mesma fé. A nova unidade, adotada pela “diversidade reconciliada”, é um magma no qual as necessárias distinções ontológicas se dissolvem, onde a virtude e o vício valem o mesmo, onde as noções de bem e mal são frivolidades, onde a ortodoxia equivale à heresia e onde – bem diferente da parábola das bodas reais (Mt 22, 1-14) – todos podem ser admitidos à ceia sem vestir o traje correspondente. Proclama-se, a rigor, um novo e demencial evangelho.
Se pelos gostos se conhece o homem, no caso de Bergoglio conheceremos pelos mesmos também seu programa. O loquaz profeta da nova misericórdia soube apregoar sua afeição pela Crucificação branca de Chagall (quadro no qual o próprio autor assinalou sua intenção de associar o sacrifício de Cristo com o infecto mito da “Shoah”, subordinando inclusive aquele a este), do mesmo modo que não lhe há faltado ocasião de reivindicar “A festa de Babette” como sua película favorita. Assim o expressa em sua controvertida Amoris laetitia:
As alegrias mais intensas da vida surgem quando se pode provocar a felicidade dos outros, em uma antecipação do Céu. Cabe recordar a feliz cena do filme A festa de Babette, onde a generosa cozinheira recebe um abraço agradecido e este elogio: “Como deliciarás os anjos!”. É doce e consoladora a alegria de fazer as delícias para os outros, vê-los usufruir delas. (§129)
Não tínhamos referências à obra e, por isso, não alcançávamos em toda sua plenitude o que Bergoglio pretendia traficar-nos com semelhante alusão. Veio em nosso auxílio um recente artigo do blog de Barônio, onde se nos noticia da infausta fisionomia da autora do livro no qual se inspira a película, Karen Blixen, uma escritora danesa convencida de que o bem e o mal são intercambiáveis: “somos nós mesmos que julgamos bom ou mau algo que por si é ambivalente, e que se torna bom ou mau segundo nosso juízo, segundo nosso discernimento pessoal. Caso a caso. E recordaremos também que Blixen – quando descobriu haver contraído sífilis de seu primeiro marido, durante sua estada na África – entregou sua própria alma ao diabo, de modo que toda a experiência vivida pudesse ser vertida em seus contos”. O animismo e a bruxaria, ao que parece, foram a obscura religião desta desnorteada nórdica cujas fantasias agradaram tantíssimo a Bergoglio.
Estritamente falando, o que Francisco pondera é a película, que do livro original faz uma interpretação um tanto abusiva. Em poucas palavras, a história trata de uma esplêndida comida oferecida por uma cozinheira francesa a um grupo de comensais noruegueses pertencentes a uma comunidade luterana, doze ao todo, que honram com este ágape a memória do fundador. O que a película não conta é que, na história original, a cozinheira é uma terrorista fugitiva de sua nação que, empregada em uma vila norueguesa pelas filhas de um pastor luterano local como governanta, oferece este banquete com o dinheiro obtido ao ganhar a loteria para demonstrar sua gratidão a seus protetores e, ao mesmo tempo, mostrar sua habilidade nas artes culinárias. Sua condição de francesa poderia sugerir sua filiação católica, se o livro não explicitasse seu passado anarquista e criminoso.
Conclui Barônio:
Babette, portanto, não é um personagem positivo, não é o anjo que deixa entrar uma réstia de luz católica na escuridão na qual se encontram os membros da seita. Ela é antes um personagem dir-se-ia quase infernal, que depois de haver-se beneficiado da generosa hospitalidade de uma pequena comunidade e de haver merecido sua confiança, seduz as mentes e os corações persuadindo-os de que as diferenças doutrinais e ideológicas – mantidas sempre em silêncio – podem ser superadas no encontro naquilo que cremos compartilhar: a mesa […].
A ceia de Babette é o âmbito da vingança hedonista por sobre os sacrifícios dolorosos do passado […] que são reabsorvidos em um presente dionisíaco, diante da memória ridicularizada do Decano, quase obrigado a assistir à traição de sua comunidade. Tampouco deve-se olvidar a reprovação da severidade formalista do defunto, a qual se atribuem as renúncias das filhas Martina e Philippa, frustradas em suas aspirações por uma visão beata e esclerosada da fé.
Aquilo que restava da união com o sacrifício de Cristo na contudo distorcida visão luterana dissolve-se toda vez que Cristo é desterrado do
convivium. Dessa maneira a ceia, que até então congregava em torno da pobre mesa os fiéis da seita para comemorar seu fundador, com babette se transforma em uma celebração da comunidade tornada um fim em si mesma.
A tal ponto torna-se supérflua a figura do sacerdote, que Babette pode permanecer na cozinha. Ela é o
deus ex machina que prepara tudo, assim como Bergoglio prepara uma nova religião, deixando que os acontecimentos falem em primeira pessoa.
Assim, a puro golpe de acontecimentos, com a inexorabilidade dos fatos consumados, se vai acelerando aquilo que a Escritura designa como a “abominação da desolação” e a “supressão do sacrifício cotidiano”, conforme a estratégia revolucionária de pegar primeiro e, se é possível, mais uma e ainda outra vez antes que se produza a tardia reação: tal é a confiança (audácia) que os maus têm na confiança (inércia) dos bons. Primeiro a ruptura litúrgica, com sua sequela indetível e crescente de abusos que ao cabo de algumas décadas tornam irreconhecível o mesmo ritual romano reformado; depois, a dispensa para comungar em pecado mortal segundo a teoria do discernimento, outrora condenada como “moral de situação”. Imediatamente depois, a abertura de lacunas pelas quais enfiar a discussão do diaconato feminino e o celibato sacerdotal, após uma práxis já folgadamente imposta de “ministros extraordinários” do culto. Que falta para que às liturgias inter-religiosas e à ceia anglicana suceda uma iminente modificação na fórmula da consagração, para evitar que a importuna Vítima sacrificial se faça presente sequer entre os degradados paramentos do Novus Ordo?
Ubi corpus, ibi aquilae. Umas, as águias congregadas para alimentar-se, que “seguem o Cordeiro onde quer que este vá” (Ap 14, 4); outras, que descem a pique para proscrever Deus de nossos altares. O sacrossanto Corpo de Cristo está no centro da guerra escatológica.”

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