quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Iconoclastas

“Se os sequazes do Estado Islâmico quisessem ferir deveras a doce e humanitária consciência do Ocidente neopagão ter-se-iam filmado apedrejando cachorros ou lanceando touros. Mas como os sequazes do Estado Islâmico não são inimigos do Ocidente neopagão, mas seus paradoxais aliados (em uma estratégia comum desenhada pela Nova Ordem Mundial), filmam-se degolando e decapitando cristãos, o que só provoca indiferença (e inconfessável regozijo), exceto quando os cristãos morrem pronunciando o nome de Cristo (pois então conseguem provocar uma careta de repugnância na doce e humanitária consciência do Ocidente neopagão). Para que o entretenimento do Ocidente neopagão não decaia (já se sabe que os gostos estragados pelo vício demandam variedade), os sequazes do Estado Islâmico filmaram-se agora derribando de seus pedestais estátuas assírias do museu de Mosul, que em seguida martelavam com sanha, até reduzi-las a cacos. Um espectador desavisado poderia confundir o vídeo de marretas com uma performance oligofrênica de Joseph Beuys, ou de qualquer desses trapaceiros que expõem seus bricabraques nessa feira das porcarias chamada ARCO, para pasmo de complexados e esnobes.
Com esse vídeo iconoclasta, os sequazes do chamado Estado Islâmico voltam a nos demonstrar sua paradoxal aliança com o Ocidente neopagão. Pois a iconoclastia bárbara dos islamitas, ao fim e ao cabo, não se distingue demasiado da iconoclastia mais refinada do Ocidente neopagão, que leva séculos destruindo arte com diversos álibis estéticos, ideológicos, filantrópicos ou até religiosos, disfarces bonistas com os quais se encobre o ódio à Beleza e, em última análise, a Quem a criou, semeando sua semente em nossas almas. Esse ódio à Beleza adquire no mundo islâmico uma aparência feroz e tremendista; no Ocidente, tal ódio tem-se manifestado ao longo da História de muitas formas diversas, inflamando às vezes o populacho (pensemos nos latrocínios das hordas revolucionárias, nos espólios do exército napoleônico ou no vandalismo sacrílego de tantos espanhóis transformados em hienas durante a Segunda República e posterior Guerra Civil), mas sobretudo envenenando suas elites, que podem chegar a utilizar seu elitismo como álibi de seus desmandos: pensemos no furor iconoclasta de Lutero e demais “reformadores” protestantes; pensemos na avareza saqueadora de nossos mui ilustres desamortizadores, que fomentaram a desagregação, venda e extravio de nosso patrimônio artístico; pensemos nas burradas pós-conciliares que, com o álibi da reforma litúrgica, despojaram milhares de igrejas de seus altares, silhares, sacrários, retábulos, púlpitos e imagens. Pensemos, enfim, em toda a evolução da “arte contemporânea” sincera, cujo propósito último não é outro senão vilipendiar, cuspir, defecar sobre a Beleza, até manchar sua impressão em nossas almas, cumprindo aquele desiderato de Ivywood, o protagonista de A taberna errante, que pregava que a arte devia “romper todas as barreiras”, até deixar de mostrar formas reconhecíveis, até fundir-se no puro nada, até afogar-nos em seu vômito, para negar mais amplamente o trabalho do Criador.
Nesse trabalho iconoclasta, como na perseguição religiosa, os sequazes do Estado Islâmico e o Ocidente neopagão vão de mãos dadas: a um lhe corresponde fazê-lo do modo mais truculento; ao outro, de um modo mais fino e astuto. Ambos, como a Besta da Terra e a Besta do Mar, caminham juntos, fazendo-se carícias e aconchegos, sob a visão satisfeita (enternecida!) da Nova Ordem Mundial.”
(Juan Manuel de Prada, Iconoclastas)