domingo, 7 de fevereiro de 2016

A paixão pela morte como paixão política na obra de Ernst Jünger (II)

“Resta, enfim, o sentimento de exaltação voluptuosa experimentado pela proximidade da morte. Jünger evoca-o várias vezes em sua obra. Esse sentimento se manifesta nos sonhos mencionados em algumas passagens de seu diário. Assim, em 2 de julho de 1942: “A nostalgia da morte pode tornar-se violenta, voluptuosa, como aquela do frescor a bordo do esverdeado e luminoso oceano", e uma semana mais tarde, compara-se aos gatos de Baudelaire que "procuram o silêncio e o horror das trevas". Há aqui algo como a lembrança do que descreveu após ser gravemente ferido em seu último combate: "Dessa vez não tinha mais jeito. No instante em que me senti atingido, compreendi que a bala tinha cortado a vida pela raiz (...). E, estranhamente, esse momento foi um dos raros que posso dizer terem sido realmente felizes. Entendi nesse segundo, como um raio, minha vida em sua estrutura mais secreta. Eu sentia uma surpresa incrédula de que ela devesse terminar nesse lugar preciso, mas essa surpresa estava marcada por uma grande alegria". Essa celebração da morte, como espetáculo e como prazer, celebração espantosa aliás num homem de longevidade excepcional, faz eco a alguns textos de Nietzsche, cuja influência na Alemanha foi imensa. Mas, para o caso de Jünger, ela ultrapassa largamente o nível do fantasmagórico ou do jogo do pensamento, pois se alimenta do vivido de uma experiência ao mesmo tempo pessoal e coletiva, muito próxima do indizível, e que procura, entretanto, comunicar-se.
Não se compreende verdadeiramente essa paixão pela morte, se não se apreende a sua dimensão erótica. Eros e Tanatos, vida e morte, estão intimamente emaranhados. Só há vida pela morte. Na guerra moderna, "a destruição atinge de repente o indivíduo em instantes preciosos em que ele está submetido a um máximo de exigências vitais e espirituais". Ao seu contato, os homens sentem estremecer neles o "grande ritmo da vida". É na extrema proximidade da morte, do sangue e da terra, que "o espírito se reveste dos traços mais duros e das cores mais profundas (...). A irrupção do elementar surge como uma dessas devastações onde se dissimula uma passagem. Quanto mais impiedosa a labareda, mais ela destruirá profundamente a herança do passado, mais a nova ofensiva será móvel, animada e sem escrúpulos". Na proximidade da morte há um paroxismo, um grau orgíaco, que Jünger menciona, de forma abstrata, em Le Travailleur [O Trabalhador] mas que descreve em outras passagens com muito mais precisão.
É nos momentos em que a morte se mostra mais ávida, na hora das guerras, das revoluções, das grandes epidemias, que se manifesta a exasperação de uma sexualidade selvagem. A volúpia da morte, a volúpia do sangue se assemelham, de fato, à volúpia do amor rodeado pelos vapores do álcool. “Quanto mais longa é a guerra, mais profunda nela a marca do amor sexual". Homens e mulheres participam dessa erotização. Os encontros são fortuitos, até brutais, reunindo por exemplo um estudante alemão e uma camponesa da Picardia, cujo marido está no front ou então no fundo de uma tumba, e que acalma sua angústia no rápido encontro com o ocupante estrangeiro. A prostituição ocupa um grande espaço nesses jogos de sexo e de morte, cuja onipresença autoriza a suspensão das interdições. Os militares podem então passear nas ruas das lanternas vermelhas, e gozar das prostitutas, "flores de lótus" do asfalto de Bruxelas ou de Lille. Esse erotismo é o mesmo do estupro, sugerido em alguns trechos nos quais Jünger evoca as horas em que ele e seus camaradas percorriam as ruas das cidades e vilarejos estrangeiros como “lansquenets do amor, sedentos de tudo o que lhes caía na mão, porque não tinham nada a perder (...). Viajantes errantes no caminho da guerra, eles as possuíam com mão firme e sem muito sentimento (...). Colhiam ao mesmo tempo a flor e o fruto, pois lhes era necessário achar o amor onde ele se mostrava sem véus".
Essa sexualidade selvagem se reveza com uma sexualidade agora sublimada, cujo objeto são mulheres de sonhos. No romance intitulado Lieutenant Sturm [O tenente Sturm], Jünger evoca essas narrativas que acalentam os jovens oficiais no fundo das trincheiras. Mulheres sem rosto se sucedem: passantes, prostitutas vestidas de seda e envolvidas em perfume, jovens em jardins de verão. Todas oferecidas ao desejo e todas anônimas. Mulheres e combatentes participam de uma mesma desumanização. Mas isso porque seu encontro expressa a extrema proximidade da vida e da morte. Em seu estudo sobre os fantasmas masculinos ligados ao fascismo, que evidencia o inconsciente da política, Klaus Theweleit, que cita muito Jünger, analisou detalhadamente essas múltiplas imagens de mulheres, onde cada uma forma estereótipos complementares uns dos outros. Não se poderia, entretanto, reduzir esses textos de Jünger à expressão de um misticismo guerreiro, nem mesmo à apologia do culto da morte.
A paixão pela morte como paixão política
Na maneira pela qual Jünger fala da guerra manifesta-se, seguramente, uma estética da morte presente até nos seus textos mais críticos em relação ao nazismo e à Segunda Guerra Mundial, tanto em Sur les falaises de marbre quanto em La paix. A guerra é o inferno. Mas na Divina Comédia, são os cantos dedicados ao Inferno, ao pintar o atroz e o horror, os mais belos. Essa referência a Dante, em Jünger, é recorrente. Ela justifica a complacência em achar palavras para representar o intolerável, o polimento de um estilo onde reina a metáfora, e que priva o leitor de qualquer possibilidade de identificação. A escolha das palavras, a escolha das imagens constroem um sentido, eliminam ou minimizam a angústia, o desespero, o caos. É esta estetização assim como a fetichização da técnica, que serviram de argumento a Walter Benjamin, para ver em Jünger, pelo menos no Jünger de Mobilisation totale um teórico do fascismo. "Essa nova teoria da guerra, que estampa a marca da origem mais grosseiramente decadente, nada mais é do que uma transposição sem limites das teses da arte pela arte para o domínio da guerra". Levando-se em conta o conjunto da obra de Jünger, não é aplicável a categoria benjaminiana de "estetização do político", completamente pertinente, em contrapartida, para caracterizar as cerimônias do fascismo.
A dimensão estética é essencial na relação de Jünger com a guerra, mas é uma dimensão que se quer apolítica. Nesse sentido, ainda que ele se utilize ao mesmo tempo do expressionismo e do futurismo, naquilo que aparece à primeira vista como apologia de um apocalipse bem ordenado, ele se mantém a igual distância de um e de outro. É difícil, se não impossível, propor uma interpretação política única das teses de Jünger. Pode-se achar em Le Travailleur, por exemplo, tanto o elogio da técnica em suas formas industriais e militares quanto sua crítica radical. Tratando-se do fascismo, sua mística guerreira foi a de brigadas de franco-atiradores, e entretanto ele próprio teve nelas apenas um breve contato. Decididamente anti-burguês, anti-democrata e hostil à República de Weimar, ele se aproximou durante alguns anos do que se chamou de nacional-bolchevismo. Ele jamais aderiu ao partido nazista. Em 1927, recusa um posto de deputado no Reichstag, abandona alguns anos depois a Sociedade dos autores, tão logo esta exclui seus membros judeus. Ele provoca a hostilidade de Goebbels. O lançamento do Travailleur, em 1932, suscita o seguinte comentário no Völkischer Beobachter, órgão da imprensa nazista: “Jünger se aproxima da zona de balas na cabeça". Se é inegável, como o mostrou Lukács, existir em Jünger uma forma militante da Filosofia da Vida que "fornece o fundamento da demagogia social irracionalista" e conduz à teoria fascista, Jünger não é diretamente um teórico fascista. Ele também não soube ser um oponente declarado. Se, durante a Segunda Guerra Mundial, ele procurou proteger alguns indivíduos isolados (em particular judeus), sempre foi com muita hesitação, medo e ceticismo. Isolado, o guerreiro impetuoso não tem muita coragem.
É precisamente nisso que a paixão pela morte atinge em Jünger uma dimensão social e política. Em Bellone ou la pente de la guerre [Bellone ou a inclinação para a guerra] Roger Caillois distingue entre a guerra, "luta coletiva, organizada e metódica", e o puro e simples recurso às armas. A guerra, ele precisa, "não é uma simples luta armada, mas uma iniciativa organizada de destruição". A guerra somente autoriza a conscientização e a satisfação da paixão pela morte por ser um fenômeno coletivo no qual o indivíduo se funde à massa. Jünger constata isso no instante que antecede a batalha: "cada um sentiu nesse momento desaparecer tudo que lhe era pessoal, e o medo saiu dele", da mesma forma que Ernst Weiss. Ainda mais, a paixão pela morte só pode legitimamente se desenvolver respeitando-se estritamente as regras da guerra, sem o que não se trata de guerreiros, mas desses que ele - em seu Premier [Primeiro] e Second Journal parisien [Segundo Diário Parisiense], e em Sur les Falaises de marbre - chama de “lêmures", ou seja, os nazistas. Somente a situação codificada e regulamentada da guerra autoriza a liberação da pulsão de morte. Toda pilhagem, toda destruição gratuita, todo ato de sadismo é indigno do soldado, e não poderia deixar de ter conseqüências funestas.
Ora, o código guerreiro é um código político. Seu desaparecimento anuncia o caos. Não sobra mais nada também da estratégia. "A mesa onde estava o tabuleiro de xadrez foi derrubada (...). O caos se aproximava, com novas dimensões nas quais Clausewitz algum jamais havia pensado". Apenas regras políticas permitem a suspensão da censura que pesa sobre sentimentos difusos e polivalentes; Norbert Elias mostrou em O Processo Civilizador (Uma História dos Costumes) como estes se transformaram em objeto de limitações e proibições cada vez mais severas da Idade Média aos nossos dias. A expressão e a satisfação dos desejos que acompanhavam tais sentimentos ficaram reservados a um grupo limitado com um status de casta: o dos cavaleiros, cuja continuação se deu no corpo de oficiais do exército profissional.
Porém, ressalta Jünger, a Guerra de 1914 opera uma "democratização da morte". Todos estão submetidos ao anonimato dos mesmos perigos. A morte não distingue mais combatentes e não combatentes. "As nuvens mortais de gás se estendem sobre tudo o que vive com a indiferença de um fenômeno meteorológico (...), a criança no berço está ameaçada como todo mundo, e mais ainda do que qualquer outro". Não há mais privilégio de classes ligado à guerra. Cada um é igualmente soldado. Com o declínio e mesmo desaparecimento da casta guerreira, "a defesa armada do país não é mais obrigação e privilégio apenas de soldados profissionais; torna-se um encargo para todos aqueles capazes de portar armas". A economia transforma-se numa economia de guerra e, finalmente, guerra e processo de trabalho confundem-se. Jünger compara os soldados da Primeira Guerra Mundial aos lansquenets, corpo de elite devoto e disciplinado, criado no século XV por Maximiliano de Habsburgo, organizado segundo uma ordem racional e animado por um verdadeiro espírito cívico. Roger Caillois vê nesse corpo de lansquenets o esboço de um exército da democracia. O reverso da democracia, com o desaparecimento da casta guerreira, não seria a nação em armas, o soldado-cidadão, a possibilidade para a massa de ter acesso a essa paixão pela morte?
A leitura dos textos de Jünger sobre a guerra e a morte permite abordar fenômenos que nos parecem ainda mais obscuros por serem normalmente objeto de uma censura severa ou, no mínimo, de uma patologização. As lógicas da guerra são múltiplas. Mas não haveria guerra sem paixão pela morte, ainda que vista como paixão vergonhosa, cujo desencadeamento autorizado por políticas acaba por destruir o político.”
(Sonia Dayan-Herzbrun, A Paixão pela Morte como Paixão Política na Obra de Ernst Jünger)

Tradução de Thomas Taborga