quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A paixão pela morte como paixão política na obra de Ernst Jünger (I)

“A idéia da morte é o centro da obra do ensaísta e romancista alemão Ernst Jünger. Parece, entretanto, paradoxal falar de sua paixão pela morte como paixão política, quando ele próprio se define como um "anarca", um artista não engajado, "antes de tudo responsável perante sua obra e não perante tal ou qual orientação política". Se auto-descrevendo através de Manuel Venator, o herói de seu livro Eumeswil, Jünger precisa: "Eu não sou oblíquo, mas reto - não comprometido com a direita ou a esquerda, nem com o alto ou o baixo, nem com o Ocidente ou o Leste, mas sim em equilíbrio. Certamente eu me ocupo dessas oposições, mas apenas historicamente, sem aplicação atual: eu não sou engajado". Assim definido, o anarca, homem livre por excelência e logo eminentemente solitário, opõe-se ao anarquista "parceiro do monarca que ele sonha em destruir". À paixão do poder, o anarca opõe a paixão do observador, botânico, como o herói das Falaises de marbre [Falésias de mármore] entomologista como o foi o escritor, ou ainda historiador. Jünger pretende se ligar ao apolitismo que percorre a tradição alemã desde Goethe, que leva a se interessar pelo mundo como representação e não como vontade. Entretanto, a despeito de todas as suas negações, sua relação passional com a morte é de fato uma relação política, da qual convém destrinchar as implicações e os resultados.
Jünger descobre a paixão pela morte por ocasião de sua experiência como combatente na Primeira Guerra Mundial, "o mais considerável e o mais decisivo acontecimento da nossa época". O espetáculo da guerra, que lhe foi então revelado, assemelha-se ao dos vulcões cuspindo fogo. É nessa fúria ardente da cratera que "irrompe a paixão no seu sentido pleno". Jünger está longe de ser o único a ter experimentado, nas mesmas circunstâncias, emoções de uma tal intensidade. Tanto do lado alemão como do francês, as lembranças concordam. Um oficial francês se recorda de seu entusiasmo ao aproximar-se da zona de combate: "Ah! como a vida nos parecia mais bela, agora que de novo a morte nos ameaçava mais de perto e que voltava a esperança da luta aberta, dos golpes diretos, da batalha de fato!". Ele descreve a vida na linha de fogo nos seguintes termos: "Essa vida que nunca deixa o cérebro vazio, que tensiona as artérias e faz bater mais forte o coração". Ernst Weiss, o amigo de Kafka que se suicidou em 1940 em Paris, onde estava em exílio e em "trânsito", segundo a expressão da romancista Anna Seghers, depõe de forma análoga. Ele faz seu herói em Témoin oculaire [Testemunha ocular] - um médico alemão que, durante a guerra de 1914-1918 adere a uma unidade de combate, ao invés de entrar numa unidade de salvamento - escrever: "É preciso ter vivido uma vez o que é o outro, o que as gerações primitivas conheceram e gostaram há milênios, é preciso ter combatido uma vez à baioneta, feliz por estar lutando (...). O interior, a SENSAÇÃO DE ESMAGAMENTO, a esplêndida pulsão animal, a felicidade bárbara, a embriaguez bárbara, isso não se pode descrever".
A paixão pela morte
Da carreira militar do oficial-escritor Jünger, todos concordam em dizer que foi exemplar. Ele tinha, com 18 anos, manifestado seu gosto pela aventura guerreira escapando até Oran e Sidi-Bel Abbès para se unir à Legião Estrangeira. Após cinco semanas, seu pai conseguiu repatriá-lo. Um ano mais tarde, em 1914, depois de concluir o segundo grau em regime de urgência, e assim ter concluído seu contrato com o pai, alista-se como voluntário e irá combater na frente de batalha da França, até 1918. Será ferido 14 vezes e condecorado com a mais alta distinção alemã, a ordem "Honra ao Mérito", criada por Frederico II. Ele terminará a guerra como lieutenant, nas tropas de choque. Durante todos esses anos ele mantém um diário, que publicará e utilizará em diversas obras. De uma certa maneira, pode-se mesmo considerar que a referência a essa experiência, a Primeira Guerra Mundial, crucial para Jünger como para muitos outros, percorre, como um fio vermelho, todo o conjunto de sua obra.
Estourando numa época quando, exceto "algumas expedições de pilhagem e algumas guerras coloniais, os povos puderam gozar de um período de paz relativamente longo (...), a guerra mundial foi uma das guerras mais populares que a história já conheceu". Popular pela dimensão das massas em ação de um lado e do outro do oceano, por discursos brutais, grosseiros mas eficazes, semelhantes a essas “iscas multicoloridas que se utilizam nas caçadas de tocaia, para direcionar a caça em direção ao campo de mira dos fuzis”. Popular pela intensidade da mobilização em que "toda existência é convertida em energia", não apenas nas primeiras idas ao front, mas pelo vivido no combate, que faz brotar afetos complexos e múltiplos relacionados ao que Freud chamou de pulsão de morte. A leitura e a análise dos textos de Jünger permitem definir os aspectos sociais e políticos desta noção, e compreende-se que ela somente pôde ter sido forjada após a experiência coletiva desta guerra.
Jünger a descreve, de fato, como puro vínculo com a morte. Nessa medida, ela transborda o político, pois faz sentido em si mesma. Em Verdun e em Flandres, "a fuzilaria tinha se tornado um absoluto". A narrativa intitulada Orages d'acier [Tempestades de aço], que tenta dar conta desses tempos em que a morte festejava seus "triunfos inauditos", adota uma cronologia inteiramente marcada pelas batalhas e movimentos das tropas, interrompida apenas por uma folga ou por uma estada no hospital. Os acontecimentos externos praticamente não intervêm. A guerra não é confrontada à vida civil, a não ser por alusões às leituras do jovem tenente: Villon, Rabelais, o Tristam Shandy de Sterne, com o qual ele se refere ao outono de 1918. Ela parece também acontecer independentemente do mundo ou do tempo das políticas.
Pouco importam finalmente o inimigo ou as razões da guerra. A maioria dos jovens alemães indo para o front quase não pensava nisso. Se alguém os interrogasse, "raramente teria ouvido que o combate contra a barbárie e a reação, ou pela civilização, pela libertação da Bélgica ou a liberdade dos mares era justo". "O essencial não é pelo que combatemos, mas a maneira como combatemos (...). É esse o termo que nos faz vencer ou morrer. O ser do guerreiro, o envolvimento da pessoa pesam mais do que todas as cogitações sobre o bem ou o mal". Esse tema retorna recorrentemente em toda a obra de Jünger, enriquecido com os anos de múltiplas reflexões. Ele chega a ver na Primeira Guerra Mundial, e a fortiori na Segunda, guerras não nacionais, mas civis, e em dimensões planetárias. O sentimento nacional é apenas um pretexto para a paixão assassina. Jünger toma consciência disso muito cedo: "Eu tinha matado, não posso negar, e não para me defender mas como agressor. Eu devia também admitir que todos os ideais nacionais e heróicos que até então me haviam animado, nesse estado de paixão, já se tinham evaporado como gotas d´água sobre ferro em brasa".
É o mesmo combatendo o mesmo, um e outro soldados desconhecidos sem nome e sem rosto. Quando o inimigo adquire um rosto, vira uma pessoa, possui uma história, torna-se impossível matá-lo. A fúria guerreira se dissipa, como experimentou Jünger na hora da grande ofensiva de 21 de março de 1918. "Eu avançava furiosamente”, conta, “pelo solo negro arado pelas balas, onde ainda se encontrava a fumaça dos gases asfixiantes de nossos obuses (...). Foi então que me deparei com o primeiro inimigo. Um vulto de uniforme marrom estava de cócoras a vinte passos na minha frente, no meio da depressão, canhoneado pela fuzilaria intermitente, as mãos apoiadas no chão. Nós nos percebemos quando me virei de repente. Eu o vi se assustar; manteve os olhos fixos sobre mim, enquanto me aproximava com a arma apontada. Ele devia ter comandado essa seção da trincheira, pois vi condecorações e insígnias hierárquicas na túnica pela qual o agarrei. Com um gemido, levou sua mão ao bolso para tirar, não uma arma, mas uma foto. Ela o mostrava num terraço, cercado de numerosa família. Depois, considerei uma grande alegria ter me dominado e seguido adiante. Exatamente esse adversário me apareceu com freqüência em sonhos. Isso me fez ter esperanças de que os que me seguiam também o tenham poupado”.
Assim, a guerra só é absurda se a confrontarmos a uma lógica externa. Ela possui uma coerência própria. Mas é preciso que ela respeite essa coerência, senão corre o risco de cair no puro desencadeamento da violência e do caos, como ocorreu na seqüência histórica do século XX. A coerência não exclui o sofrimento nem o horror dos campos de batalhas, das aldeias devastadas e dos hospitais de campanha. O medo, que torce as tripas e esvazia o intestino, mistura-se à excitação da caçada. “Treme-se sob o efeito de dois sentimentos contraditórios: a emoção do caçador levada a seu extremo, e a angústia da caça. A gente é um mundo para si, impregnado desse estado de espírito sombrio e assustador que pesa no terreno deserto". Atravessada pelos vapores dos explosivos e dos gases asfixiantes, rodeada de sangue, de excrementos, de construções em chamas e de cadáveres em decomposição, a guerra tem seu odor próprio, pesado, adocicado, nauseabundo. Esse cheiro desperta "uma exaltação quase visionária, como apenas a presença próxima da morte pode produzir". O horror e o desespero, por mais fortes sejam, não deixam de ser uma das dimensões da paixão pela morte. Esta se manifesta no prazer em ir à luta e matar, na fascinação por aquilo que morre ou acabou de morrer, mas também na felicidade de morrer.
A volúpia do sangue
Diferentemente de outros escritores, Jünger ocupa-se menos do prazer de matar do que da embriaguez do combate, no momento em que o medo desaparece, quando cada soldado se funde com a massa. "A morte tinha perdido seus horrores, a vontade de viver repousava sobre um ser maior que nós, e isso nos tornava cegos e indiferentes ao nosso destino pessoal". A fúria cresce, qual uma tempestade, e com ela a força do combate. “Ela chegava com tanto vigor que um sentimento de felicidade, de serenidade me possuía. O imenso desejo de destruição que pesava nesse campo de morte se concentrava nos cérebros, mergulhando-os numa névoa vermelha. Soluçando, balbuciando, nós nos falávamos frases incompletas, e um espectador desavisado poderia imaginar que sucumbíamos perante o excesso de felicidade". Parece que o soldado, após superado seu medo, experimenta uma verdadeira embriaguez, muito mais possante do que a provocada pelo álcool. Ele descobre em si o sentimento de abrigar inconscientemente forças brutais e insondáveis. “É a volúpia do sangue que flutua acima da guerra como uma onda vermelha sobre um navio sombrio”.
As casas queimadas onde uma carniça apodrece, os objetos familiares despedaçados, os jardins abandonados esburacados pelos obuses, as árvores frutíferas quebradas, constituem uma paisagem sombria e fantástica, provocando horror no observador que, entretanto, não consegue desviar seu olhar. "Eu vinha freqüentemente aqui e pensava naqueles que, ainda recentemente, poderiam ter levado uma existência pacífica". A referência a toda uma tradição romântica de estetização da morte fica patente. Essa estética não deixa de lembrar a dos poetas e pintores expressionistas de Berlim que, tendo em primeiro plano Meidner, às vésperas do conflito representavam cenas de apocalipse, verdadeiras premonições da carnificina que não demoraria a se produzir.”
(Sonia Dayan-Herzbrun, A Paixão pela Morte como Paixão Política na Obra de Ernst Jünger)

Tradução de Thomas Taborga